Miriam Guerra Damboriarena Másson, 40 anos, descobriu, de um dia para o outro, como é a vida quando homens e mulheres têm direitos iguais e não só na teoria. Desde 2002, a advogada e psicopedagoga de Santana do Livramento vive na Islândia, considerada, pelo oitavo ano consecutivo, o país mais igualitário do mundo, de acordo com Relatório Anual de Desigualdade Global de Gênero, do Fórum Econômico Mundial (FEM).
Casada com um islandês e mãe de três filhos bilíngues: Helen Björk, cinco anos, Thomas Thor, quatro anos, e Laura Jóhanna, cinco meses. Miriam conta para a Revista Donna como é, na prática, ter um marido que não ajuda em casa, mas divide as tarefas, e não correr o risco de ser preterida no emprego por temerem que ela engravide em um país onde a igualdade é tão defendida a ponto de haver uma lei para proibir que mulheres adotem o sobrenome do marido.
A mudança
Quando me vi me mudando para uma ilha no norte da Europa, com pouco mais de 330 mil habitantes (o equivalente à população de Canoas), não parei para pensar em como seria viver em um país considerado o melhor para mulheres no mundo. Era o ano de 2002, e o amor me chamava – e isto me deu toda segurança de que eu precisava para cancelar o curso na Ajuris e partir para a Islândia. O processo de adaptação foi quase que nascer novamente em um outro mundo. Mas ter que se adaptar a um lugar melhor em muitos aspectos facilitou muito minha vida. Comecei a aprender a língua, fazer amigos, provar todas aquelas comidas diferentes e aceitar aquela nova cultura. Hoje, posso dizer que já me adaptei e me sinto completamente inserida na sociedade islandesa. O fato de eu estar vivendo em um dos melhores lugares do mundo para ser mulher foi decisivo.
Igualdade na prática
A Islândia é um dos melhores exemplos do mundo de uma sociedade de gênero igualitária onde as mulheres detém o controle em muitos aspectos – e isso funciona muito bem. Vivenciamos um grande equilíbrio que se reflete na igualdade de obrigações e direitos entre homens e mulheres. Já as facilidades oferecidas pelo Estado estão em educação, maternidade, saúde, segurança e estabilidade econômica. Claro que nem tudo é um paraíso e ainda temos muitos problemas a superar. Mesmo com tantos direitos conquistados, a disparidade salarial segue sendo o maior exemplo de desigualdade.
Maternidade com direitos
Das três vezes em que estive grávida, meu marido, um típico islandês, me deu aulas práticas em igualdade entre homens e mulheres. Os homens dividem as obrigações de forma igualitária com a maior naturalidade do mundo. Sem eu nunca ter pedido, ele me surpreendeu tomando conta total das tarefas domésticas nos últimos meses da minha gestação e ainda trabalhava em tempo integral. A partir dos sete meses de gravidez, a mulher tem o direito de parar totalmente de trabalhar, apresentando apenas uma solicitação de seu médico – ou em qualquer momento antes, caso haja recomendação médica. O salário segue sendo pago de forma integral. A licença dura nove meses, em que a mãe tem direito a seis meses, e o pai, mais três meses. Desses seis meses da mãe, ela também pode usar apenas três e transferir os outros três para o pai. Ambos podem esticar até o dobro de tempo, caso optem por receber 50% do salário. Assim, a mulher não é vista como um fator de risco no mercado de trabalho, já que a licença-paternidade pode durar o mesmo tempo que a licença-maternidade. O governo planeja aumentar a licença para 12 meses já que as mulheres acham pouco o tempo concedido hoje. Graças a esses meses de licença, pude passar temporadas com minha família no Brasil. Meu filhos puderam fortalecer os laços de família com meus pais, tios e primos, sem mencionar a fala e o vocabulário em português.
Eles não ajudam, dividem
Educar os filhos e realizar as tarefas domésticas não é de maneira alguma apenas papel das mulheres. Meu marido e eu sempre dividimos todo o trabalho da casa. Se eu o elogio, ele não se acha nem merecedor, já que enxerga essa postura como cumprimento de mera obrigação. Isso é cultural. As mães ensinam seus filhos desde pequenos a ajudarem nas tarefas domésticas. Aulas de direitos humanos e igualdade de gênero estão no currículo de escolas e faculdade. Tenho que confessar que não reclamo quando meu marido me pede para ir passear com as crianças para que ele possa fazer melhor uma faxina lá em casa.
Mercado de trabalho
Nunca vi nenhuma casa com empregada doméstica. O acesso gratuito à universidade faz com que quase 40% das mulheres tenham curso superior completo. A Islândia é líder mundial em matéria de força feminina no mercado de trabalho. Quase 80% estão empregadas. Fundos financeiros destinados a abertura de negócios para mulheres também incrementam o empreendedorismo feminino. Entretanto, o fato de terem ou não uma faculdade não está relacionado ao sucesso na carreira ou ao respeito auferido às mulheres. Você já deu certo na vida se faz o que gosta. A mulher banca o que ela é. O alto nível cultural não impõe nenhum tipo de pressão moral ou social, permitindo ser o que se quer ser sem medo de retaliações. Uma médica e uma atendente de uma lanchonete são vistas com o mesmo respeito: frequentaram a mesma escola, moram no mesmo bairro e tomam banho nas mesmas piscinas – que são todas públicas. A igualdade de gênero pressupõe uma igualdade social. Não adianta você lutar por uma justa licença-maternidade se não tem sequer uma oportunidade de emprego. Eu terei também que trabalhar até os 67 anos como os homens, para garantir minha aposentadoria. Afinal, igualdade é igualdade. Quando nosso segundo filho entrou na escolinha, pude logo retornar ao mercado de trabalho. Em 2007, cheguei até a iniciar um mestrado em Direito na Faculdade da Islândia, mas acabei mudando de área. Em 2015, já bem melhor na língua islandesa, tive a oportunidade de começar a trabalhar junto à Imigração do governo islandês. Lá pude sentir que as mulheres atingiram quase que plenamente a igualdade de gênero no ambiente de trabalho. Minha chefe, que já foi delegada de polícia, comanda agora com firmeza quem permanece ou sai do país e quem adquire a cidadania islandesa. As decisões, entretanto, são sempre tomadas em reuniões conjuntas com as outras colegas – que são, na maioria, mulheres.
A história
Essa luta pelo reconhecimento da força feminina na Islândia não é nada recente. Em 1975, elas fizeram uma paralisação nacional. Organizaram-se por um ano e finalmente, neste dia, se recusaram a trabalhar exigindo igualdade de direitos. Esta grande paralisação foi um divisor de águas e, a partir deste momento, elas começaram a ser vistas de outra forma. A Islândia se firmou na vanguarda pela luta da igualdade de gênero. Logo que cheguei, já notei que elas estavam presentes de forma efetiva no mercado de trabalho. Meu voo foi pilotado por uma mulher. A motorista do ônibus era também mulher, e as islandesas saíam para trabalhar enquanto os maridos ficavam em casa cuidando das crianças. Uma vez por ano, nós, mulheres, saímos mais cedo do trabalho para relembrar a greve geral de 1975, quando islandesas pararam para chamar a atenção da importância de seus trabalhos e da luta pela igualdade salarial.
Pioneirismo na política
As islandesas conquistaram o direito ao voto em 1915 – 15 anos antes das ativistas dos Estados Unidos. E a Islândia saiu mais uma vez na frente em 1980, ao eleger democraticamente a primeira mulher no mundo para o cargo de presidente de um país. Vigdís Finnbogadóttir exerceu o poder por 16 anos consecutivos. Fomos vizinhas e tive a chance de conhecê-la. Certo dia, tomando um chá em sua casa, ela me disse muitas coisas de que nunca esqueci: “Estude, estude e estude! Se especialize no que você mais gosta. Seja influenciadora, isso é mais importante do que buscar empoderamento. Acredite em você acima de tudo. Somos diferentes dos homens, é claro, mas tão capazes quanto. E eles sabem bem disso, não são bobos”.
Independência até no nome
Certa vez, liguei para o Ministério da Justiça para confirmar uma informação sobre o direito de agregar o sobrenome do meu marido a meu nome. Como já possuía cidadania islandesa, a advogada que me atendeu me informou que eu não poderia mais fazer isso, pois a lei proibia mulheres islandesas de agregar o sobrenome dos maridos. Ela ficou longos minutos no telefone tentando me convencer a não fazer isso, alegava que eu deveria demonstrar independência.
As islandesas não agregam o sobrenome de seus maridos porque o país utiliza o sistema patronímico. Ao nascer, o sobrenome da filha será o nome de seu pai acrescido do sufixo “dóttir” (filha) e “son” (filho). Meu marido chama-se Jón, então o sobrenome de minhas filhas é Jónsdóttir e de meu filho Jónsson. Entretanto, as mulheres estrangeiras têm por tradição cultural adotar o sobrenome dos maridos. Então, não me dei por vencida e fui estudar a tal lei de registro do nome civil e achei uma brecha. Fiz um pedido embasado no capítulo para mulheres de origem estrangeira e enviei meu requerimento. Foram seis meses de ligações e espera até conseguir. Um retrocesso para aquela advogada do governo, uma vitória pessoal para mim.
E O BRASIL, HEIN?
Nas nossas últimas férias de verão no Rio Grande do Sul, meu marido viu na TV um concurso de beleza. Ele dava risadas enquanto eu o observava sem entender nada. Então, me explicou que achava engraçado termos um concurso que valorizava acima de tudo a aparência da mulher. E completou dizendo que um tipo de concurso desses nunca daria certo com as mulheres islandesas, pois elas iriam querer provar, acima de tudo, que eram inteligentes e capazes. Fiquei outra vez sem resposta quando ele me questionou por que assistimos a um programa onde um apresentador homem aparece à frente de várias mulheres dançando de biquíni todo o tempo, apenas sorrindo. Em 2010, Jóhanna Sigurdardóttir, a então primeira ministra, determinou a proibição de todos os clubes de striptease. Declarou que os homens teriam que se acostumar com o fato de que as mulheres não estavam mais à venda. Vale lembrar que ela foi a primeira homossexual publicamente assumida a ocupar este cargo no mundo.
Melhoras a caminho
Está em votação um projeto de lei que obriga todos os locais de trabalho com mais de 25 funcionários a terem um selo de igualdade salarial entre homens e mulheres. E para obterem essa certificação, devem provar que oferecem igualdade de remuneração sem distinção de gênero, etnia, sexualidade ou nacionalidade. Todos esses direitos e igualdade não vêm simplesmente de concessões do governo, e sim de lutas e reivindicações. As mulheres se mobilizam e exigem essa igualdade. Aprendi que temos que nos atrever a dar novos passos, a ser ousados na luta contra qualquer tipo de injustiça.
Fonte: Revista Donna