Caso da equatoriana Paola Guzmán Albarracín, que se suicidou após sofrer abuso sexual imposto pelo diretor da escola, chega à Corte Interamericana de Direitos Humanos
(El País, 26/01/2020 – acesse no site de origem)
“Não é verdade, princesinha?” teria dito o diretor da escola à Paola Guzmán Albarracín. Paola tinha 16 anos quando se suicidou com “diabinhos”, uma substância tóxica a base de fósforo branco. Deixou três cartas onde detalhou o que o direito penal classifica como “nexo causal”: Paola se matou porque era vítima de violência sexual na escola. A tragédia de Paola é, ao mesmo tempo, singular e comum: é só dela, pois só ela viveu o que uma das peritas médicas do caso descreveu como “barbárie da autópsia”. É comum, pois são tantas outras meninas as que sofrem violência sexual em espaços onde deveriam ser protegidas, como a casa, a igreja ou a escola—dos 14 aos 16 anos, Paola foi abusada pelo diretor e guardou em silêncio a persistência da tortura.
Suas cartas foram breves, porém deixaram um rasgo raro de testemunho às vítimas de tortura. Uma das cartas foi para a mãe, Pepita Albarracín, um texto inocente de despedida e solidão —como outras suicidas que guardam segredos no próprio corpo, Paola pedia desculpas pelo “engano”. A mãe não imaginaria o sentido do “engano” de que falava Paola, uma menina sem razões aparentes para o gesto das desesperadas com a vida. As duas outras cartas foram endereçadas ao estuprador: Paola o nomeia, acusa e oferece a verdade que o Estado equatoriano ignorou durante nove anos de processos e recursos sem resposta justa às violências alegadas. Dezoito anos depois do suicídiu de Paola, o “caso Paola del Rosario Albarracín Guzmán y familiares” alcançou a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), e será objeto de audiência pública no dia 28 de janeiro deste ano. É o primeiro caso de “violência sexual contra meninas em escolas” na Corte IDH, descrito como um crime da extensão de quem rompe o futuro da humanidade —direito à vida, integridade, proteção à honra e dignidade, igualdade, educação, saúde. Para além dos termos judiciais do caso, nós descreveríamos Paola como mártir dos suplícios do patriarcado contra a meninas.
O diretor da escola estuprava Paola. Para o poder político que busca o porquê para além do mandato de masculinidade que naturaliza a rapinagem dos corpos das meninas, Paola necessitava de reforço escolar. O diretor ofereceu-lhe ajuda, e seu poder na escola transformou-se em poder soberano sobre seu corpo. Foram dois anos de violência sexual, até que Paola engravidou. A solução do diretor foi o aborto com ajuda do médico da escola, que aceitou socorrê-la desde que Paola se relacionasse sexualmente com ele. Acossada pelos dois homens, confidenciou a colegas de escola sobre o resultado positivo do teste de gravidez e a violência sexual sofrida —as meninas se silenciaram. Iniciou a agonia da morte em um corredor da escola, quando contou a uma supervisora administrativa sobre os “diabinhos” que a matavam. A resposta foi como o julgamento final do patriarcado: “Imediatamente lhe sugeri pedir perdão a Deus pelo que havia feito e começamos a rezar”.
Foram anos de processos e recursos judiciais até que testemunhas começassem a falar: professoras que sabiam, mas calavam; colegas de classe que acompanhavam as investidas do diretor, mas resistiram em contar o que sabiam. Por que todas essas meninas e mulheres se calaram, até mesmo depois da morte de Paola? Porque o patriarcado tem o poder de emudecer as vítimas —para cada uma dessas meninas e mulheres havia uma sentença pré-determinada pela ousadia de testemunhar a violência sofrida por Paola: a demissão, a injúria, a vergonha ou a perseguição. Remoer os anos de violência de Paola na escola até o suicídio exige uma autópsia dos silêncios impostos pelo patriarcado a meninas e mulheres. Por isso, a cena descrita por Pepita Albarracín, a mãe de Paola, com o médico legista é tão significativa sobre a granularidade do poder patriarcal: Pepita foi apresentada a um corpo morto, aberto e dissecado, sem útero nas vísceras, pois o médico lhe exibia um órgão vazio para atestar que não haveria gravidez no que o corpo não mais contaria. “O médico me chamou e ao meu lado estava o corpo nu de minha filha, minha filha aberta e os órgãos. Ele disse: ‘Senhora (mostrando as mãos), há uma carnosidade, esse é o útero. Não há gravidez’, ‘Eu me pergunto, se sou uma mulher ignorante, como eu posso saber se era ou não uma carnosidade? Não posso saber se era um útero”, resignou-se Pepita à subserviência ao poder médico masculino. A perícia foi considerada duvidosa após o caso ter migrado do Equador para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH).
Foram organizações feministas que insistiram na judicialização, que contestaram a negligência das cortes como perpetuações da violência, que insistiram na prisão dos diretores foragidos, que esperaram 18 anos para que Paola fosse um nome de menina contra um Estado patriarcal. Mas se autópsia é “olhar para si mesmo”, o que a tragédia de Paola move nas cortes, além da linguagem jurídica de reparação financeira ou moral? Uma autópsia do patriarcado. E para quê? Para que não exista violência sexual nas escolas contra meninas. Quem ofereceu a sentença para a reparação foi Pepita, a mãe de Paola. Basta agora a Corte IDH escutá-la.
Debora Diniz é brasileira, antropóloga, pesquisadora da Universidade de Brown. Giselle Carino é argentina, cientista política, diretora da IPPF/WHR