A relação entre a epidemia de Zika vírus e o surto de microcefalia tem feito as mulheres procurarem o aborto clandestino.
A possibilidade da mulher decidir não ter o filho tem sido defendida pela antropóloga Debora Diniz, representante de um grupo de ativistas que vai pedir ao Supremo Tribunal Federal um pacote de medidas de saúde pública, incluindo aflexibilização do aborto. A pesquisadora também batalhou no STF pela legalização da interrupção da gravidez de anencéfalos.
Ao HuffPost Brasil, a antropóloga argumentou que o País vive uma situação de calamidade pública, resultado de negligência do Estado no combate ao mosquito Aedes Aegypti, que transmite o Zika vírus, a dengue, a chikungunya e a febre amarela.
São as mulheres pobres as principais vítimas da ineficiência das autoridades sanitárias do Brasil em exterminar o vetor dessas doenças. “Temos uma cena de epidemia onde as vítimas no sentido de maior dano são mulheres, pobres e nordestinas”, defende Diniz.
Reportagem publicada pela Folha de S.Paulo mostra que, desde a confirmação das infecções por Zika, as mulheres estão recorrendo ao misoprostol. O princípio ativo do Citotec tem a venda proibida em farmácias desde 1998.
Elas temem que o bebê que esperam nasça com cérebro menor que o normal — condição da microcefalia, relacionada ao desenvolvimento irregular do cérebro.
Dados mais recentes do Ministério da Saúde, divulgados no último dia 23, mostram que há 270 casos confirmados de microcefalia e outros 3.448 suspeitos sendo investigados.
A antropóloga conversou com o HuffPost Brasil sobre a epidemia do vírus. Leia a íntegra:
HuffPost Brasil: Qual a sua avaliação sobre a epidemia do Zika vírus?
Debora Diniz: Temos um cenário nacional de epidemia, mas, embora nacional, ele é localizado na região Nordeste do País e atinge principalmente mulheres pobres para quem a legalidade dos atos é a condição da possibilidade de acessar um aborto e cuidados de saúde. O retorno do mosquito já tem 40 anos. O que estamos vendo é o resultado tardio de negligência do Estado brasileiro. São quatro décadas. A novidade é a hipótese de o mosquito causar a microcefalia. Essa é a hipótese mais forte para o que está acontecendo.
Quem são as vítimas?
Temos uma cena de epidemia onde as vítimas no sentido de maior dano são mulheres, pobres e nordestinas. O que é tão cruel é que até o ministro da Saúde,Marcelo Castro, diz que perdemos a guerra e temos que forçá-lo a entender que a única forma de combate é ganhar a guerra.
Em que consiste o pedido que será feito ao STF?
Demandamos do Estado um pacote de ações de políticas públicas amplas relacionadas à sexualidade e à reprodução, com acesso a métodos contraceptivos, ao diagnóstico precoce e seguro da microcefalia, além de um bom pré-natal e o direito ao aborto em caso de diagnóstico positivo. As mulheres que já deram à luz precisam de uma diversidade de escolha, com política social forte no amparo a infância.
O Ministério da Saúde diz que elabora um pacote de amparo…
O ministério não apresentou nenhuma novidade. A prestação continuada e a renda mensal a famílias pobres já existem. É preciso uma geração amparada por um marco constitucional brasileiro. O desafio está diante de nós. Precisamos de uma política ampla para essa geração de crianças com necessidades singulares e que o Estado brasileiro não está preparado para acolher.
Como você reage as críticas relacionadas à flexibilização do aborto por causa dos diferentes níveis de microcefalia?
A microcefalia existe em diferentes graus. Pode ter um caso de microcefalia com um grau de comprometimento extremamente grave, assim como pode ser leve. Se generalizar, transforma-se em algo perigoso. Poderia ser permitido o aborto de uma criança que talvez tivesse um grau de de sequela mínimo. Esse é sempre um argumento, mas não estamos fazendo um paralelo com a anencefalia, que é incompatível com a vida.
Já temos o excludente demográfico no caso de estupro, em que as condições de vida do feto não estão em jogo e na qual o Estado reconhece o a situação em que a mulher vive de sofrimento na gravidez. Hoje temos mulheres com um dano indevido pela não prevenção ao mosquito. Não é questão de conversar sobre o feto. Estamos em uma situação de epidemia e não estamos obrigando nenhuma mulher a tomar nenhuma opção. Mas queremos que o Estado reconheça que ela pode ter opção.
Sabemos que a Justiça brasileira é lenta. Não há o temor de uma decisão tardia?
No caso da anencefalia, foram oito anos de tramitação. Se for pelo antecedente, iria com pessimismo tremendo. Espero que o Supremo entenda como ação de emergência e dê a celeridade da urgência da saúde pública.
E a pressão da Bancada Evangélica?
Se for por esse temor, nenhuma outra instância da democracia no País funciona. Se for levar em conta a sobreposição entre religião e política de forma que coloca o aborto como tema evidente, em meio a um um escândalo político, uma crise econômica, a porta está fechada. Nossa coragem tem que ser maior, capaz de enfrentar o problema.
Houve negligência do Estado?
A epidemia é resultado de ineficiência do País no combate ao mosquito. Já fomos capazes de eliminar uma vez; se ele volta, quem tem que responder por isso não é a bacia do vizinho. Não há dúvida que houve demora para agir.
Como é o cenário internacional no caso de abortamentos de mulheres com Zika vírus?
O aborto já é autorizado na maioria dos países, então essa discussão não vem ao caso e chega a causar espanto quando relatamos a realidade brasileira.
Fonte: Brasil Post