A venezuelana Mauge, 27, chegou a Boa Vista sem nenhum tostão, ficou uns tempos na casa de um amigo do irmão e acabou obrigada a morar na rua, perto da rodoviária.
Desesperada, foi trabalhar como prostituta no bairro do Caimbé. Num bar, conheceu Fátima, uma cafetina de garimpo. Com a perspectiva de ganhar bem, Mauge e uma amiga toparam ir com a cafetina para um garimpo perto de Paramaribo, no Suriname.
O acesso era muito difícil, levou dias para chegarem lá, por terra e voadeira. “A Fátima nos apresentava aos garimpeiros como suas ‘secretárias’, e os homens já sabiam o que significava esse código. Logo que chegamos, entendemos que estávamos com ela como uma espécie de ‘presente’ para os garimpeiros que negociavam peças e outras mercadorias com ela.”
No segundo dia no garimpo, no final da tarde, chegaram 15 homens. Depois de negociar com Fátima, eles entraram no quarto onde estavam Mauge e a amiga. “Tivemos que servir os 15 homens de uma só vez. Foi uma das piores noites da minha vida. No dia seguinte eu não conseguia nem me levantar. Meu corpo inteiro doía. Minha amiga teve febre, de tão machucada que ficou. Depois disso, todas as outras noites foram iguais.”
Fátima chamava de sexo grupal. “Mas aquilo era estupro coletivo, porque era eu sozinha para dar conta de mais de 20 homens numa noite.” Tudo o que ganhava dos garimpeiros, inclusive alguns gramas de ouro, Mauge tinha que repassar a Fátima, que havia prometido fazer a divisão quando voltassem para Boa Vista. “No final, ela pagou menos de R$ 1.500 para cada uma. Não deu nem para pagar as medicações que precisamos para cuidar das infecções que pegamos na viagem.”
A roraimense Madá tinha 18 anos quando aceitou a oferta de emprego dos sonhos: ganhar R$ 4.000 por mês trabalhando como cozinheira em um garimpo na Guiana. Um homem, que ela conheceu em um bar perto de sua casa, em Rorainópolis, prometeu pagar seu transporte de avião, garantiu que ela só ia cozinhar e que os garimpeiros iam respeitá-la. Madá largou a escola no segundo ano do ensino médio, deixou a filha bebê com a avó e foi para o garimpo. “Resolvi conhecer o mundo…e fiz a leseira da minha vida”, conta.
Em vez do garimpo, ela foi levada para um bordel em Georgetown, capital da Guiana. Lá, foi informada de que devia R$ 8.000 por despesas com passagem, comida e hospedagem e que ia ter que ficar no bordel “fazendo programa” até quitar a dívida.
“Quando cheguei, a primeira coisa que o cara fez foi pedir meu documento. Minha mãe me ensinou a não ter medo. Mas, para todo lado em que eu olhava, tinha um cara armado.” Havia várias mulheres no bordel na mesma situação, e muitas pareciam menores de idade. “Eu achava que ia ser mil maravilhas, nunca imaginei o que iria acontecer, me levaram pra me vender.”
A venezuelana Stephany trabalhava como prostituta perto de Caracas, mas a situação no país estava muito difícil, especialmente para mulheres trans como ela. Foi chamada para trabalhar em Boa Vista por um venezuelano que conheceu no Facebook. Chegando à casa onde ia ficar, encontrou outras quatro mulheres trans.
O venezuelano ficava com os documentos de identidade e protocolos de refúgio de todas —então, ninguém podia ir embora. “Tínhamos que dar todo o dinheiro do trabalho para o homem, para pagar a comida, o quarto onde a gente dormia e a conta de luz. Só de luz ele cobrava R$ 20 por dia”, conta Stephany, que ganhava cerca de R$ 50 por programa. Ela começou a roubar, porque dava mais dinheiro, e o homem a deixava ficar descansando um pouco, sem fazer programas.
Mauge, Madá e Stephany foram vítimas de tráfico de mulheres para exploração sexual. Os nomes foram trocados para proteger suas identidades e evitar retaliações dos traficantes. Roraima, estado que faz fronteira com a Venezuela e a Guiana e recebe grandes contingentes de migrantes, é um dos pontos críticos do tráfico de pessoas —crime que descreve o recrutamento, transporte e alojamento de pessoas, recorrendo a ameaças, uso da força e engano, para forçar as vítimas a se prostituir, a sofrer exploração sexual ou a trabalhar de maneira forçada ou análoga à escravidão.
As mulheres e adolescentes são as principais vítimas do tráfico de pessoas com objetivo de exploração sexual. Segundo o relatório global sobre tráfico de pessoas do Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC), 69% das vítimas de tráfico de pessoas na América do Sul são mulheres e 31%, homens. Entre todas as pessoas vítimas de tráfico, 64% são submetidas a exploração sexual, 35% a trabalho forçado e 1% a outros tipos de exploração. Quase a totalidade (96%) das vítimas que sofrem exploração sexual são mulheres.
“Na maioria das vezes, são mulheres na pobreza, que acreditam em falsas promessas de ficar ricas e acabam exploradas”, diz Socorro Santos, coordenadora do Centro de Promoção às Vítimas de Tráfico de Pessoas da Assembleia Legislativa de Roraima.
Santos atendeu 15 casos de mulheres vítimas de tráfico desde 2015. Ela alerta que as características do aliciamento e da exploração estão mudando. “Não é igual a antigamente, que era cárcere privado. Muitas vezes, as pessoas não ficam trancadas, mas não conseguem fugir porque têm dívidas ou estão sem seus documentos. Os aliciadores oferecem comida, roupas, e, depois de um tempo, começam a cobrar”, explica.
Veronica Cisz, membro da comissão de direitos humanos da Polícia Rodoviária Federal, concorda que o modus operandi dos aliciadores mudou. “Antes os traficantes sequestravam e trancavam as mulheres no quarto, as deixavam realmente em uma prisão. Hoje, elas são recrutadas pelas redes sociais, os aliciadores nem precisam ir para a porta das escolas, e muitas têm liberdade de ir e vir”, diz.
Muitas vezes, as vítimas não se dão conta de que estão sendo exploradas.
Em julho, a Polícia Rodoviária e a equipe de Socorro Santos resgataram duas adolescentes vítimas de exploração sexual em um bar em Rorainópolis.
“A aliciadora dava de comer, de vestir, e as meninas a viam como uma espécie de mãe. Elas não entendiam que estavam sendo exploradas”, conta Santos. As adolescentes iam ser levadas para um garimpo na Guiana. Depois da operação, foram encaminhadas para o conselho tutelar.
A Polícia Rodoviária faz regularmente um levantamento dos pontos mais vulneráveis à exploração sexual de crianças e adolescentes em todas as rodovias federais, chamado projeto Mapear.
A legislação brasileira pune o tráfico de pessoas com pena de 4 a 8 anos de reclusão. Também é ilegal o “favorecimento da prostituição ou outra forma de exploração sexual”, que consiste em induzir ou atrair alguém à prostituição ou facilitá-la, impedir ou dificultar que alguém a abandone, e o rufianismo, mais conhecido como cafetinagem —tirar proveito da prostituição alheia.
Mas há grande subnotificação dos casos de tráfico e poucas estatísticas sobre o crime. Não existe um sistema unificado de coleta de dados sobre o tráfico de pessoas para fins de exploração sexual para dimensionar o problema no Brasil.
“Há baixa integração de bancos de informações dos diferentes órgãos e a dificuldades de caracterização do crime pelos agentes públicos”, diz Graziella do Rocha, coordenadora de projetos para o enfrentamento ao tráfico de pessoas da Associação Brasileira de Defesa da Mulher, Infância e Juventude (Asbrad). “Além disso, as vítimas têm medo de registrar a denúncia e sofrer retaliações dos perpetradores e o genuíno desejo de esquecer a violência sofrida, não querendo colaborar com processos que podem se estender por anos.”
Segundo a Polícia Federal, há, neste momento,145 investigações sobre tráfico de pessoas em andamento no país, sendo 11 em Roraima. Nos primeiros meses de 2021, foram resgatadas no Brasil 42 mulheres estrangeiras e 23 brasileiras vítimas do tráfico de pessoas.
O aumento na migração de venezuelanos, fugindo da crise política e econômica em seu país, colabora para o problema, segundo o superintendente da PF em Roraima, o delegado José Roberto Peres. “Os migrantes que estão chegando agora são pessoas em extrema pobreza.”
Segundo ele, é comum a investigação de casos em que mulheres que recebem convites para trabalhar em salões de beleza em São Paulo, com promessa de um bom salário, e acabam forçadas a entrar na prostituição.
Na periferia de Boa Vista, não é difícil encontrar cartazes de adolescentes ou mulheres desaparecidas, colados em muros de escolas ou postos de gasolina. As jovens vão dormir na casa de uma amiga e fogem para o garimpo, sem avisar a família.
“Muitas famílias descobrem que a filha está no garimpo e, por vergonha, não denunciam, dizem que foi para São Paulo, por exemplo. Há um pacto de silêncio”, diz Márcia Maria de Oliveira, professora de Sociologia da Universidade Federal de Roraima. Muitas vezes, garimpeiros postam fotos no Facebook mostrando essas jovens no garimpo, e circulam pelo WhatsApp vídeos das adolescentes nuas nos prostíbulos.
Oliveira aponta que há um elo entre taxistas, que transportam as mulheres, pousadas em Boa Vista e aliciadores que levam as jovens para os garimpos.
Para muitas brasileiras, o garimpo representa a possibilidade de mudar de vida. “No ensino médio, conversando com meninas, muitas dizem: ‘quero ir para o garimpo, tenho amigas que foram, estão ganhando R$ 1.000 por semana e se divertindo’”, conta a pesquisadora.
De acordo com Rodrigo Chagas, coordenador do curso de Ciências Sociais na Universidade Federal de Roraima, o mercado ilegal e informal está ganhando uma dimensão muito grande, atraindo muita gente para o garimpo. Segundo o professor, que pesquisa o crime organizado em Roraima, o PCC está dentro dos garimpos, oferecendo “segurança” na currutela, onde ficam o prostíbulo e o tráfico de drogas.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM), agência da ONU para as migrações, atua na prevenção do tráfico de pessoas. Na fronteira, seus funcionários distribuem folhetos em português e espanhol e fazem sessões de orientação. “Sua vida e sua segurança são o mais importante. Desconfie se a oferta for boa demais”, diz um dos informes.
Os encarregados da OIM orientam as pessoas a duvidar sempre de propostas de emprego muito fáceis e rentáveis, a não dar a ninguém seus documentos e a buscar informações sobre a empresa ou pessoa que está fazendo a oferta de trabalho. Também treinam equipes para identificar sinais de que uma pessoa é vítima de tráfico: o passaporte ou documento de viagem está na mão de terceiros; a pessoa não sabe o endereço da casa ou local de trabalho para onde vai; e fala pouco ou nunca com familiares e amigos.
“Os aliciadores se aproveitam da vulnerabilidade das mulheres e meninas e propõem soluções milagrosas. Eles também se valem dos sonhos das jovens de viajar o mundo”, diz a irmã Eurides Alves de Oliveira, da rede de combate ao tráfico de pessoas Um Grito Pela Vida, vinculada à CNBB.
A venezuelana Stephany, apresentada no início deste texto, conseguiu denunciar o homem que a obrigava a se prostituir e ficava com seu dinheiro, e ele foi preso. Ela mora hoje em um abrigo para migrantes e ainda faz programas para viver.
Ela gostaria de trabalhar em um salão de cabeleireiros. Mas seus olhos brilham quando fala sobre uma conhecida, também trans, que foi levada para a Alemanha. “Ela foi trabalhar lá para uma mulher e ganhou de graça a cirurgia para colocar próteses nos seios. Estou tentando achar uma maneira de ir”, diz. Não tem medo de sofrer exploração sexual de novo? “Não, lá é diferente, lá não nos tratam mal”, confia.
Madá foi resgatada por um garimpeiro que conhecia sua família havia muitos anos. Ele pagou a dívida de Madá e a levou de volta para o Brasil. Por muito tempo, ela não falou para a família o que tinha acontecido. “Alguns anos atrás, contei para minha filha, porque eu tinha medo de ela também cair nesse conto de fadas”, diz.
Depois que voltou do Suriname, Mauge trabalhou em garimpos no rio Uraricoera, em Roraima, submetida a exploração sexual. Começou a ter muitas infecções urinárias. Embora a “dona do bar” do garimpo dissesse que ela tinha que trabalhar, seu estado de saúde foi piorando, ela tinha muito corrimento e sangramento.
Voltou para Boa Vista e procurou um posto de saúde. O médico informou que ela tinha câncer de colo de útero em estado avançado. Em janeiro de 2021, Mauge pediu ajuda financeira para um grupo de professoras no Centro de Ciências Humanas na Universidade Federal de Roraima. Ela queria ir para Goiânia se tratar, havia conseguido a passagem, mas precisava levar algum dinheiro para se manter.
Mauge quis contar sua história e autorizou o uso de sua narrativa, preservando seu anonimato. Ela deu um longo depoimento à professora Márcia de Oliveira, do qual foram extraídos trechos citados nesta reportagem.
As professoras fizeram uma vaquinha, e Mauge conseguiu ir para Goiânia pouco depois. No final de março de 2021, ligaram para a venezuelana para saber como andava o tratamento. A pessoa que atendeu o telefone comunicou que Mauge tinha morrido naquele mês.
Vítimas ou testemunhas podem denunciar o tráfico de pessoas pelo Disque 100 (basta teclar 100 de qualquer telefone fixo ou celular) ou pelo Ligue 180 (basta teclar 180). Os serviços funcionam 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados. As ligações são gratuitas.
Fonte:Folha de São Paulo