Apesar dos inegáveis avanços e conquistas civilizatórias relacionadas aos direitos das mulheres, o modo de produção e reprodução da sociedade contemporânea ainda dá demonstrações de tolerabilidade quanto às violências e discriminações baseadas no gênero. Isso se deve, em larga medida, à histórica – e distorcida – concepção ontológica de mulher, deliberadamente associada ao pertencimento a um homem, permitido, de quebra, o uso de violência para perpetuação desse domínio.
O cotidiano revela que ainda vivemos em uma sociedade marcada por relações assimétricas de poder, responsáveis por profundas desigualdades sociais e naturalização da violência contra a mulher, essa compreendida como um sistema amplo de dominação masculina.
Mas se é fato que a discriminação de gênero, enquanto fenômeno social que afeta o pleno desenvolvimento da sociedade em geral, e das mulheres em particular, se acha presente indistintamente em todas as culturas, também é notório que ela não atinge de idêntica forma todas as mulheres, especialmente quando considerada sua combinação com os demais marcadores sociais, tais como raça, etnia, religião, classe socioeconômica, identidade e orientação sexual.
E a intersecção desses diferentes fatores de subordinação tem definido historicamente a posição social das mulheres negras em inegável desvantagem em relação aos demais grupos sociais.
Em diversas nações, as mulheres negras aparecem como a maioria das vítimas de violência (aqui compreendidas a violência física, moral, patrimonial, psicológica, sexual, simbólica, nas relações de trabalho etc) – e no Brasil essa condição de maior vulnerabilidade também é evidente. Pior. Ela tem se incrementado de forma assustadora.
Prova disso são os números do estudo “Mapa da Violência 2015: Homicídio de Mulheres no Brasil” realizado pela Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso) e ONU Mulheres, divulgado neste mês.
Segundo os dados da pesquisa, a década de 2003 a 2013 revelou aumento de 54,2% no total de assassinatos de mulheres negras. Proporcionalmente ao tamanho das respectivas populações, concluiu-se que no ano de 2013 foram assassinadas 66,7% mais meninas e mulheres negras em relação às brancas.
O estudo também destaca o aumento de 190,9% de outras formas de violência contra essas meninas e mulheres, na mesma década.
De fato, segundo dados da Central de Atendimento à Mulher (ligue 180), relativos ao ano de 2013, 59,4% dos registros de violência doméstica referem-se a mulheres negras.
Com relação às agressões físicas, segundo o dossiê Mulheres Negras do IPEA, também de 2013, 74% das violências contra as mulheres negras ocorreram dentro de sua rede de relações afetivas e de parentesco ou conhecimento.
O Dossiê Mulher 2015, do Instituto de Segurança do Rio de Janeiro, aponta que 56,8% das vítimas dos estupros registrados no Estado em 2014 eram negras. Além disso, há registros de que nos exames sexológicos e demais perícias, são elas as menos “tocadas” e analisadas pelos médicos.
De acordo com o Ministério do Trabalho, as mulheres negras são também a maioria dentre as vítimas de assédio moral e sexual, bem como entre as vítimas de tráfico de pessoas.
Mulheres negras são maioria entre as pessoas que realizam visitas a familiares em instituições prisionais e as que mais sofrem com as revistas vexatórias; bem como são as que mais sofrem com a revitimização por parte dos agentes públicos, invariavelmente desconfiados de sua narrativa — lamentável situação que acontece, por exemplo, quando comparecem à delegacia de polícia e são mais questionadas, tratadas com desprezo, menos valorizadas na sua dor…
Na mesma linha, conforme dados do Sistema de Informações sobre Mortalidade do Ministério da Saúde de 2012, mulheres negras são 62,8% das vítimas de morte materna – e não se deve perder de vista que especialistas consideram esse tipo de morte evitável com o acesso a informações e atenção adequada.
Mais ainda: 65,9% das mulheres submetidas a algum tipo de violência obstétrica no Brasil (manifestação de violência de gênero ainda pouco estudada no país) também são pretas ou pardas, segundo o estudo Desigualdades sociais e satisfação das mulheres com o atendimento ao parto no Brasil, estudo nacional de base hospitalar publicado em 2014. Há registros de que sejam as menos anestesiadas, como se fossem mais resistentes e tivessem que “suportar mais a dor”.
Mas não é apenas na temática “violência” que os índices relacionados às mulheres negras são alarmantes.
Dados do Ministério do Trabalho sinalizam que essas mulheres são contratadas em menor número e em ocupações mais precarizadas.
Além disso, revela-se que a mulher negra recebe salários menores para exercer a mesma função desempenhada pelo seu semelhante masculino, seja ele branco ou negro.
O mesmo se afirma em relação à sua participação em postos de comando. A falta de representatividade das mulheres negras nos espaços de poder é, talvez, a mais eloquente demonstração do lugar social a ela destinado, limitando, portanto, suas possibilidades de exercício da cidadania plena.
Não bastasse, é fato que a sociedade cria estereótipos de gênero distintos para mulheres brancas e negras. E isso se reveste em inaceitável forma de violência simbólica.
Sob essa ótica, a menina sofre diante da imagem de mulher perfeita vendida pela mídia, de forma massificada, inatingível para padrões da raça negra: cabelo liso, loira, olhos e pele clara.
A mulher negra passa a ser adjetivada como “beleza exótica”, mesmo compondo 25% da população brasileira, o que pode resultar na diminuição de sua autoestima em função do padrão de beleza racista, desde muito cedo.
A cultura de discriminação à mulher negra perpetua a hiperssexualização de seu corpo, tratado como objeto sexual, com curvas atraentes e formas exuberantes, de que são expoentes as famosas mulatas, em trajes mínimos, cujas imagens são “vendidas” em larga escala aos estrangeiros, o que favorece e estimula a acentuada exploração sexual no Brasil.
Aliás, o debate sobre os estereótipos de raça e gênero faz lembrar a famosa frase da feminista negra e pioneira Lélia Gonzalez:
“Além disso, o seguinte: sou negra e mulher. Isso não significa que sou uma mulata gostosa, a doméstica escrava ou a mãe preta de bom coração. Escreve isso aí, esse é o meu recado para a mulher preta brasileira.”
Portanto nesse dia em que celebramos a Consciência Negra, há muito para refletir.
Os dados apresentados sobre as condições de segurança, trabalho e saúde das mulheres negras revelam mais que estatísticas frias de vidas homogeneizadas e massificadas. Desnudam que, além das opressões e violências características das desigualdades de gênero, as mulheres negras ainda enfrentam as idiossincrasias de sua cor da pele.
E experimentam, cotidianamente, as manifestações mais perversas do racismo e do sexismo no Brasil.
Fonte: Brasil Post