“‘Também quero ser um homem’. Essa foi a reação da minha filha de 8 anos, quando contei sobre um parente trans. Apesar do incômodo – e de ainda não entender que minha filha, na verdade, se entendia como um menino, que hoje chamamos de Miguel – a criança não sabia que existiam pessoas trans, e, quando descobriu, o brilho nos olhos foi espontâneo.
“Naquela época, eu ainda tentava postergar a conversa e respondia: ‘Quando você crescer, poderá ser o que quiser’. O que eu não sabia, ou ignorava, é que a construção de identidade acontece ainda na primeira fase da infância. No caso do Miguel, os sinais de inadequação de gênero apareceram aos 3. Eu ouvia questionamentos sobre o que era ser menina e menino, e a criança dizia que queria ser um menino”.
Inicialmente, por acreditar que esse desejo tinha fundamento nos privilégios que percebia nos amigos, sempre deixei claro que não tinha limitações por conta de seu gênero. Comprei os livros ‘Mulheres Incríveis’ e ‘Histórias de ninar para garotas rebeldes’, e líamos juntos antes de dormir. Meu objetivo era apresentar novas referências femininas na sociedade para a criança.
Mesmo com esses artifícios, algo continuou incomodado. Eu, em conversas, repetia: ‘Quando você crescer, poderá ser o que quiser’. Eu não sabia o que fazer, era a forma que encontrei para lidar com essa situação. Até que um dia, deitados na cama antes de dormir, me perguntou: ‘Mamãe, eu sou um menino?’. Com aquela pergunta, me pedia que encarasse com seriedade aquelas questões que floresciam dentro dele.
‘Será que nós temos um filho trans?, nos perguntamos’
Episódios como esse passaram a ficar mais frequentes. Me lembro, num deles, de estar com seu pai, e nos questionarmos: ‘Será que temos um filho trans?’. O que nos assustava não era a possibilidade de ele ser trans, mas de ser uma criança de quatro anos. Ao longo do tempo, passou a pedir para cortar o cabelo, e se recusou a usar vestido. Na escola, preferia os uniformes masculinos, e gostava de brincar apenas com os meninos.
Aos seis, começou a ficar cada vez mais triste. Uma vez, ao ganhar de presente uma roupa feminina, se perguntou: ‘Por que eu só ganho roupas assim? Eu quero me vestir com roupas radicais’. Diante disso, decidimos comprar roupas com aspectos que ele chamava de ‘radical’, ou seja, mais masculinos. Foi sua felicidade.
As novas roupas, corte de cabelo chanel, desenho animado e brinquedos, foram, talvez, a forma mais fácil de chegar perto do desejo de ser um menino naquela época. Já no início do ano passado, com o corte de cabelo e a roupa mais masculinos, as pessoas passaram a confundi-lo. Quando eu corrigia, ele me olhava bravo: ‘Mãe, não corrige’. Percebi que essa confusão era exatamente o que o Miguel queria. Cenas como essas fizeram subir minha bandeira de alerta. Dali, percebi que o trem da vida passava, e caso eu não quisesse que o Miguel atravessasse o trilho sozinho, precisava embarcar logo.
“Eu conhecia pessoas trans, mas elas não eram parte do meu cotidiano, não era uma temática que eu conhecia afundo. Na prática, quando você não vivencia, não há representatividade que te faça enxergar a possibilidade de ter um filho trans”.
Me chamem de Miguel, ele disse a todos’
A situação ficou mais evidente em uma segunda-feira, um mês depois de começarem as aulas de 2020. Antes de ir para a escola, meu filho me fez um pedido: ‘Mãe, meus amigos já me chamam de Miguel. Eu também pedi para a professora, mas ela disse que só pode depois que você escrever um bilhete na agenda. Você pode fazer isso para mim?’ Eu fiquei completamente assustada, pois falar com a professora não me permitiria postergar mais o assunto.
Foi uma semana intensa. Inicialmente me senti sozinha, mas determinada a buscar ajuda. Entrei em contato com um rapaz trans que conhecia e ele me acolheu. Depois de longas conversas, me recomendou uma psicóloga especialista em gênero e sexualidade. E fui mais uma vez acolhida. Durante nossa conversa, ela me tranquilizou, e disse que, antes de qualquer coisa, eu precisava acolhê-lo.
“Eu, como bióloga, também pesquisei e li artigos científicos. Um dos aprendizados, em tantas leituras, foi aprender que abraçar meu filho traria mais benefícios para todos nós. Porque oprimi-lo em um padrão de cisnormatividade, como furar a orelha ou vesti-lo com uma determinada roupa, é ainda mais violento”.
Aos poucos, durante as brincadeiras na rua, em casa ou na escola, passou a pedir para ser chamado de Miguel. Além disso, diferentemente dos adultos, seus amiguinhos se adaptaram rapidamente. Uma vez, a vizinha contou que ao chegar em casa, sua filha apresentou o meu filho a todos, e chamou a atenção para que todos o chamassem não mais pelo nome feminino, mas de Miguel. E pronto.
‘Na escola, não me senti acolhida’ Essa transição consciente começou bem no início da pandemia, algumas situações foram interrompidas, e outras intensificadas. Contei para algumas pessoas, e deixei que outras soubessem sozinhas pelas redes sociais. Na minha família, apesar de ter uma relação difícil com a minha mãe e não tê-la incluído neste processo, fui acolhida pela minha tia, sua irmã, que respeitou prontamente meu filho.
Já a mulher do meu primo inicialmente afastou seu filho do nosso convívio. Em uma de nossas longas conversas eu fui incisiva, e disse que essa era uma oportunidade que ela tinha de educar seu filho a ser empático com as diversidades. Mas caso ela continuasse com aquela postura, a educação seria oposta. Passados alguns meses, em setembro, recebi uma mensagem propondo um encontro entre as crianças. Foi lindo. E hoje os dois são inseparáveis.
Nas escolas foram diferentes reações, enquanto a creche procurou nos acolher, a escola dificultou o convívio. Fiz uma reunião com a coordenação e me senti pressionada. A diretora, ao tratar do assunto, foi desrespeitosa. Ao contrário do relatado por outras mães de crianças trans, explicou que foi instruída a não usar o nome social do meu filho, e sim aquele que estava na chamada.
[Em 2018, o MEC autorizou, em deliberação do Conselho Estadual de Educação, “a possibilidade de uso do nome social de travestis e transexuais nos registros escolares das instituições de educação básica e superior que integram o Sistema de Ensino do Estado do Rio de Janeiro”].
Ao longo desses meses, durante a pandemia, eu continuei em diálogo com algumas profissionais que estavam abertas à questão. Enviei texto e lives. E, atualmente, a professora respeita o nome social do Miguel, processo importante para ele, que já percebeu que apesar de seus amigos o chamarem pelo nome, há colegas que só o farão legitimados pela professora.
“O Miguel fica 15 dias na minha casa e 15 na casa do seu pai, por causa da pandemia. Seu pai, apesar de um pouco mais resistente que eu, também mergulhou no tema. Buscou saber mais e tem sido parceiro nesta jornada”.
Lembro que no primeiro fim de semana após este turbilhão de eventos, nós conversamos, e ele disse: ‘Eu já nem chamo mais de outro nome, é Miguel e pronto’.
Fonte: Universa