Estudo da organização Gênero e Número concluiu ainda que 41% das mulheres entrevistadas sentem que estão trabalhando mais durante a quarentena
RIO — A pandemia transformou as condições de trabalho do brasileiro, sobretudo para as mulheres, ao acentuar a sobreposição das tarefas domésticas às funções remuneradas. De acordo com uma pesquisa realizada pela organização de mídia Gênero e Número, em parceria com a SOF Sempreviva Organização Feminista, metade das pessoas do sexo feminino entrevistadas passaram a cuidar de alguém durante a crise.
Dentre o público que se dispôs a cuidar de outras pessoas durante o período de isolamento social, 80,6% passaram a assistir familiares, 24%, amigos; e 11%, vizinhos.
O estudo analisou as respostas de 2.641 mulheres entre os meses de abril e maio, e levou em consideração variáveis como etnia e área de residência das participantes, se moram em zonas rurais ou urbanas.
Giulliana Bianconi, diretora da Gênero e Números, diz que a proposta do estudo também envolve a discussão sobre a “crise do cuidado”, isto é, uma desvalorização das tarefas de assistência e das atividades domésticas em geral.
— O que vimos na pesquisa é que muitas mulheres já exerciam essas tarefas de cuidado antes mesmo da pandemia, a diferença é que elas tinham o suporte de outras mulheres. Agora não há mais esse suporte, o que leva à sobrecarga — comenta. — O cuidado está no centro da sustentabilidade da vida. Não há a possibilidade de discutir o mundo pós-pandemia sem levar em consideração o quanto isso se tornou evidente nesse momento de crise global.
Além disso, as participantes da pesquisa relataram que a ausência de funcionários no domicílio ou a paralisação de creches e escolas pesou muito na nova rotina desse grupo. Essa situação se reflete na taxa de 41% de mulheres que dizem estar trabalhando mais durante a quarentena.
‘As mulheres se cobram muito’
Em casa, a produtora de rádio Rita Sousa, de 39 anos, enfrenta os desafios da tripla jornada. O trabalho não está somente em frente à tela do computador, mas também nos afazeres domésticos e no cuidado com sua filha Lívia, de 8 anos, com quem mora em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense.
— Por conta da pandemia, meu horário de trabalho aumentou muito. O que mais dói é a culpa, pois não consigo estar presente como gostaria nas rotinas escolares da minha filha. O home office é desafiador, especialmente para mães que acumulam a responsabilidade de trabalhar com os serviços de casa — diz a produtora.
Divorciada, Rita conta que precisou insistir com o ex-marido para que ele colaborasse no cuidado de Lívia. E ele só começou no final de maio, dividindo o cuidado quinzenalmente — só durante o final de semana. Pressionada, ela explica que buscou ajuda profissional em meio à ansiedade gerada pela sobrecarga de funções:
— O resultado de ser multitarefa foi uma crise psicológica, cheguei a me machucar. Agora, aos sábados, passei a ter sessões online com uma psiquiatra. As mulheres se cobram muito, é difícil conciliar todas as tarefas de maneira equilibrada — conclui.
Bianconi ainda enumera estratégias para evitar a sobrecarga das mulheres ao conciliarem as tarefas domésticas com o trabalho remunerado:
— (Uma das estratégias é o) debate público intenso em espaços midiáticos, políticos e de educação, inclusive partindo das escolas, nesse debate de volta ou não, abordando o cuidado como dimensão da vida, e não como problema. E observação mais atenta de todas as pessoas interessadas em avançar num contexto de menos desigualdades sobre formas possíveis de divisão de tarefas e de cuidado que não se resumem à terceirização das trabalhadoras negras ou sobrecarregando mulheres em geral.
Desafios para o cenário pós-pandemia
As pesquisadoras também concluíram que a maior parcela das mulheres que continuaram trabalhando remuneradamente depois da implementação da medida de confinamento domiciliar são brancas. Elas chegaram ao índice de 58% de mulheres negras desempregadas.
Essa situação reflete em outro dado: 40% das mulheres entrevistadas afirmaram ter dificuldades em pagar o aluguel ou as contas básicas — desse total, mais da metade (55%) são mulheres negras. As mulheres negras também são o público que apresenta menos suporte nas tarefas de cuidado. Além disso, elas representam 61% da parcela que depende de economias solidárias.
— As mulheres negras são já a maioria entre as que estão na informalidade, nos trabalhos precários, e são também a maioria entre as desempregadas. Então é uma situação de desigualdade aprofundada pela pandemia, e justamente amplia esses desafios para essa população quando a gente pensa no pós-pandemia — avalia Tica Moreno, socióloga da SOF Sempreviva Organização Feminista.
Fonte: O Globo