Althea Harding é indigena do povo karib, da vila Kwebana, localizada na Guiana. Seu trabalho visa capacitar mulheres de sua comunidade para que elas fujam de um ciclo de violência doméstica e vulnerabilidade.
FOTO DE CESAR MARTINEZ CONSERVATION INTERNATIONAL
Apoiadas por um programa de conservação que visa proteger a maior floresta tropical do mundo, mulheres indígenas usam conhecimentos ancestrais para preservar o meio ambiente e suas expressões culturais.
No coração da Amazônia boliviana, uma planta endêmica está sendo conservada por sua capacidade de salvar vidas. Suas defensoras são um grupo de artesãs locais, que lutam para que essa fauna seja protegida. Já no Equador, outro grupo de mulheres usa conhecimento ancestral para cuidar de parte da floresta, enquanto no território da Guiana, é através da educação que líderes femininas indígenas desejam tirar os povos originários da vulnerabilidade.
Esses são alguns pontos chave de projetos inovadores realizados por mulheres indígenas que estão tomando a liderança a fim de conservar o seu lar e a sua cultura na floresta amazônica.
“Tudo que faz parte do ecossistema tem uma razão de existir, uma função a fazer, até mesmo o ser humano. Se queremos conservar esse ecossistema, cada animalzinho ou planta deve ser cuidado e preservado”, diz Elibeth Peredo, 40 anos, liderança do povo Mojeño Trinitario, que vive em Beni, na Bolívia, enquanto brinca com um boto cor-de-rosa de pelúcia em entrevista por videoconferência à National Geographic.
O brinquedo, que acompanhou Elibeth durante toda a conversa, faz parte de uma coleção desenvolvida por ela e outras mulheres artesãs em um projeto que visa proteger a fauna local enquanto preserva um importante traço cultural do povo Mojeño. “Nosso lema é ‘tradição sem extinção’”, diz.
Assim como ela, dezenas de mulheres lideram projetos em comunidades de sete países que abrigam a maior floresta tropical do mundo como parte da iniciativa Nossas Futuras Florestas–Amazônia Verde, um programa de incentivo da Conservation International, uma organização não-governamental (ONG), sediada nos Estados Unidos, que visa a proteção de ecossistemas críticos que fornecem alimentos e água, sustentam economias e regulam o clima.
O programa tem como objetivo conservar até 12% da floresta amazônica (cerca de 73 milhões de hectares) até 2025 e trabalha fornecendo ferramentas, treinamento e financiamento para iniciativas de conservação de 27 grupos indígenas e comunidades locais.
Mulheres indígenas têm papel fundamental na preservação ambiental
Para que a preservação de fato aconteça, colocar mulheres entre os tomadores de decisão está entre os pilares do projeto da ONG. “As mulheres indígenas desempenham um papel de destaque na gestão ambiental, lutando contra ameaças e protegendo seus territórios da violência”, diz Bruna Pratesi, coordenadora de Gestão afiliada ao Amazônia-Verde.
Segundo a coordenadora, elas também são fundamentais na administração das terras e no conhecimento de plantas e seus ambientes, como suas famílias funcionam e quais são suas necessidades. “Portanto, essas mulheres estão na vanguarda do trabalho local”, afirma.
Em concordância, a Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres, também conhecida como ONU Mulheres, afirma que mulheres possuem conhecimentos e experiências únicas e, portanto, sua inclusão nos processos de tomada de decisão é fundamental para uma ação climática eficaz. No nível local, a ONU Mulheres diz que a participação das mulheres na gestão dos recursos naturais está associada a uma melhoria nos resultados de conservação do meio ambiente e da cultura.
Desde 2021, o projeto Amazônia Verde apoiou mais de 60 mulheres indígenas no fortalecimento de sua liderança, no uso dos recursos naturais e na produção sustentável, utilizando o conhecimento e a sabedoria ancestral como base de suas estratégias.
“Nossos projetos têm como base integrar mais mulheres, sejam adultas, anciãs ou jovens, em um propósito de preservação das nossas tradições, práticas e costumes, da nossa própria língua e da nossa nacionalidade”, afirma Katty Guatatoca, 30 anos, turismóloga, indígena do povo quíchua de Pastaza, no Equador, uma das mulheres líderes selecionadas para o programa da CI.
Katty Guatatoca, indígena do povo quíchua de Pastaza, no Equador, uma das mulheres líderes selecionadas para o programa Nossas Futuras Florestas–Amazônia Verde.
FOTO DE SEBASTIAN ESPIN/CONSERVATION INTERNATIONAL
Para conservar a fauna amazônica sem que parte de sua cultura seja afetada, o projeto de Elibeth tem como lema “Tradição sem extinção”. Na foto, Elibeth posa com um traje típico de seu povo.
FOTO DE CESAR MARTINEZ CONSERVATION INTERNATIONAL
Preservar a Amazônia e o modo de vida quíchua
O projeto que Guatatoca está encarregada é fortalecer as habilidades das mulheres de sua comunidade com base nos conhecimentos ancestrais de seu povo. “Na comunidade temos mulheres artesãs, que conhecem a medicina natural e entendem de gastronomia tradicional. O projeto é uma forma de conservar nossa nacionalidade e tudo que faz parte dela, nossos costumes, nossa língua, tradições, nossos cultivos e nossas matas”, afirma Guatatoca em entrevista à reportagem.
A turismóloga conta, orgulhosa, que hoje sua iniciativa tem o apoio de 23 mulheres de sua comunidade, cujas atividades incluem desenvolvimento da culinária local, rede de apoio a mulheres ligadas a esquemas de trabalho urbano, suporte à produção de alimentos locais, educação ambiental e produção e comercialização de artesanatos feitos com plástico reciclado.
“Minha vontade é que mais e mais mulheres se envolvam e pensem em alternativas de preservação. Porque coisas duras vêm por aí”, avisa. “Nosso presente é golpeado pelo extrativismo, por danos ambientais e perda de culturas tradicionais. Combinar ideias e conhecimentos de mulheres – até de outras nacionalidades – para pensar em soluções como um só povo, um continente, é o que me motiva.”
Katty é turismóloga e seu projeto está desenvolvendo a economia local com base nos conhecimentos ancestrais de seu povo, com especial atenção à preservação da fauna e flora amazônicas.
FOTO DE SEBASTIAN ESPIN CONSERVATION INTERNATIONAL
Mulheres na liderança: como manter a tradição sem prejudicar a fauna local?
Por sua vez, o projeto liderado por Elibeth Peredo, na Bolívia, tem a missão de preservar os animais amazônicos sem que uma certa tradição do povo Mojeño Trinitario suma por isso.
Segundo ela, o povo originário que vive na região de Beni, na amazônia boliviana, tem uma dança típica chamada de Danza de los Macheteros, comum em rituais religiosos, festividades e casamentos. Aqueles que performam a dança, os macheteros, usam grandes e coloridos adornos na cabeça tradicionalmente feitos com penas de araras, como a arara-de-garganta-azul (Ara glaucogularis), que ocorre apenas nessa pequena área do centro-norte da Bolívia.
“Os adornos usam as penas maiores e mais frondosas das araras e pegar essas penas causava a morte de muitas aves. Isso estava atrapalhando o acasalamento delas porque muitas têm apenas um parceiro durante toda a vida”, conta Peredo.
Em seu projeto, a líder indígena envolveu artesãs e artesãos da comunidade para fabricar um tecido com o qual pudessem fazer penas sintéticas e, assim, poupar os pássaros amazônicos. “Desenvolvemos uma plumagem muito parecida com a real e que pode ser lavada, retirada, trocada e guardada”, diz. Hoje, o uso de penas reais nos adornos só é permitido aos anciãos da comunidade de Peredo. Todo novo adorno é feito com material sintético. “Com isso, acredito que estamos atingindo o objetivo de manter a ‘tradição sem extinção’”, explica ela.
Elibeth Peredo, liderança do povo Mojeño Trinitario, traja as vestes tradicionais da Danza de los Macheteros, incluindo o principal adorno na cabeça que precisavam de penas de araras para serem feitos. O projeto de Elibeth está mudando isso.
FOTO DE CESAR MARTINEZ CONSERVATION INTERNATIONAL
Além dos adornos, a equipe de artesãos também produz bichos de pelúcia da arara-de-garganta-azul e de outros animais amazônicos, como o boto-cor-de-rosa, que servem na divulgação sobre informações de conservação. “São produtos secundários que ajudam no objetivo de sensibilizar a comunidade e visitantes para a preservação da nossa linda Amazônia e ainda fortalece a economia da comunidade”, diz Peredo enquanto aponta para um boneco de pelúcia de uma arara colocado habilmente como cenário para a videoconferência.
Conhecimento de medicina natural promove a preservação de planta endêmica
Também na Bolívia, Evelyn García, liderança indígena do povo Monkosh Chiquitana, que vive no território indígena de Lomerio, guiou um projeto em que combina o conhecimento da flora local, a conservação ambiental e maior acesso à saúde na comunidade.
A planta conhecida como ‘kutuki’, explica García, é usada para preparar uma mistura de sabor forte comumente usada para combater doenças respiratórias e resfriados. Durante a pandemia de Covid-19, o medicamento natural foi usado para prevenir e tratar a doença. Segundo García, a mistura ajudou a reduzir a gravidade da pandemia em sua comunidade e em povos vizinhos.
“Tivemos que recorrer aos conhecimentos de nossos ancestrais, dos nossos pais e avós, que sabiam da importância desse produto medicinal no tratamentos de males respiratórios”, conta García em entrevista à National Geographic.
O modo de preparo do remédio é herdado de geração em geração. De acordo com García, o kutuki deve ser fervido ou macerado e combinado com outras ervas locais e álcool. Também se pode incluir limão ou mel para ajudar no sabor.
O processo de fabricação do medicamento é feito inteiramente pelos locais, com especial atenção para o manejo sustentável dos recursos. “O que fazemos é colher a planta natural pela floresta, escolhendo as que têm folhas maiores e deixando as menores para que possamos sempre usá-las sem o risco dela desaparecer”, explica García. O próximo passo é começar um cultivo familiar do kutuki.
Evelyn Garcia, liderança indígena do povo Monkosh Chiquitana, localizada na Bolívia.
O remédio feito com a planta kutuki é eficaz no combate às doenças respiratórias e foi essencial para os locais no auge da pandemia de Covid-19.
FOTOS DE CESAR MARTINEZ CONSERVATION INTERNATIONAL
Mulheres indígenas protegem sua cultura aprendendo a ler e a escrever
Já o projeto liderado por Althea Harding, de 35 anos, professora do nível primário e indígena do povo karib que vive na vila de Kwebana, na Guiana, foca em dar autonomia às mulheres de sua comunidade.
“Muitas sofreram com abusos, violência doméstica, foram mães adolescentes assim como eu e, por isso, não tiveram oportunidade de se qualificar”, diz Harding em uma entrevista por telefone a National Geographic. “Sem qualificação, muitas acabavam deixando a comunidade e nossa cultura estava desaparecendo. O objetivo é que elas sejam independentes e possam participar da comunidade sem se colocarem em posições vulneráveis”, completa.
O projeto consiste em aulas de alfabetização, workshops de artesanato, atividades físicas aos fins de semana e sessões de leitura. “Dessa forma, desenvolvemos certas habilidades que podem garantir o sustento dessas mulheres de forma que elas possam cuidar delas e da família. Assim manteremos nossa comunidade e cultura vivas”, afirma Harding.
Além da qualificação, Harding também pretende registrar a cultura karib na história ao transmitir a língua nativa falada para o papel. “Criar uma linguagem escrita para a língua karib é importante para evitar que ela desapareça, mas não é fácil”, conta Harding. “O que faço é traduzir os sons em uma grafia próxima a da língua inglesa, para que qualquer um possa ler e saber como pronunciar aquela palavra.”
A partir de um registro, Harding espera que seja mais fácil preservar os conhecimentos ancestrais e culturais de sua comunidade. “A língua transmite muito da nossa identidade e é importante para nos aproximar como povo e evitar que sabedorias ancestrais se percam”, ressalta.
Retrato de Althea Harding, uma das mulheres agraciadas pelo programa de bolsas da Conservation International. Althea é professora e quer usar sua liderança para registrar, por escrito, a língua karib falada em sua comunidade.
FOTO DE CESAR MARTINEZ CONSERVATION INTERNATIONAL
Empoderar líderes indígenas mulheres impulsiona novas gerações
Enquanto trabalham pela preservação de seus lares e suas tradições, os projetos dessas mulheres carregam a missão comum de empoderar adultas e meninas das comunidades de forma a garantir um futuro com mais oportunidades.
“Também estávamos em perigo de extinção”, afirma Elibeth Peredo. “Agora, trabalhando com novas gerações de meninas e meninos, conseguimos contribuir para a construção e preservação da cultura, que também envolve a nossa floresta”, acrescenta Peredo.
“É importante envolver cada vez mais mulheres em iniciativas locais e servir de exemplo para as mais novas. Para que elas também pertençam à cultura e possam ajudar a preservar sua própria herança”, completa Evelyn Garcia.
Além de envolver, Katty Guatatoca diz que as atividades locais também devem criar uma motivação, um “espírito positivo”, para que as mulheres continuem a fortalecer suas vozes e lideranças. “O trabalho que estou liderando ainda pode servir de grande exemplo, o que eu receberia com muita humildade e satisfação. O objetivo é continuar caminhando junto e fazer com que as mulheres, nós, nos sintamos inteiras e com propósitos maiores do que as ameaças e vulnerabilidades”, conta.
Essas líderes carregam consigo uma riqueza de conhecimentos e tradições que são cruciais para o desenvolvimento sustentável e a preservação do meio ambiente e de culturas únicas. E, como objetivo em comum, elas trabalham para que outras mulheres também se inspirem para a construção de um mundo mais justo e equitativo.