Segundo desembargador, lei estadual aprovada em 2019 usurpou e invadiu a esfera de competência da União.
O TJ-SP (Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo) decidiu nesta semana que a lei estadual que liberava cesáreas no SUS (Sistema Único de Saúde) a partir da 39ª semana de gestação, sem indicação médica, é inconstitucional.
Batizada de “lei da cesárea”, medida é de autoria da deputada Janaína Paschoal (PSL) e foi sancionada pelo governador João Doria (PSDB) em agosto de 2019, após aprovação em caráter de urgência pela Assembleia Legislativa.
Na decisão, o Órgão Especial do TJ-SP entendeu que a lei paulista invade a competência legislativa da União, a partir de uma ação movida pelo PTB (Partido Trabalhista Brasileiro), que contestou a validade da medida na Justiça.
A ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) protocolada pelo partido questionava a lei em três pontos: a competência do estado em legislar sobre um tema que seria federal; o aumento de despesa pública sem que tenha sido especificado de onde virá o recurso no orçamento; e a adoção de uma política pública que colocaria a mulher e a criança em maior risco.
Segundo o relator do processo no TJ-SP, desembargador Alex Zilenovski, a lei estadual usurpou e “invadiu a esfera de competência da União”. O voto do relator foi seguido pelos 25 membros do Órgão Especial do TJ-SP.
“Há que se concluir, à luz da síntese dos argumentos trazidos até então, que a lei estadual em foco invadiu a esfera de competência da União ao disciplinar matéria, como norma geral, que já fora regrada de modo diverso (restando afastada, com isso, a hipótese de competência legislativa plena por parte do Estado de São Paulo)”, afirmou em acórdão publicado nesta quinta (2).
Em seu texto, o desembargador destacou a existência de lei estadual que, desde 2015, “assegura o direito ao parto humanizado nos estabelecimentos públicos de saúde do Estado e dá outras providências e que disciplina, legitimamente, aspectos periféricos do parto de modo a aprimorar as rotinas correlatas, tudo dentro do regular âmbito normativo estadual.”
O governo de São Paulo, à época, não considerou a recomendação contrária enviada pela Defensoria Pública do Estado, que reuniu pareceres técnicos de profissionais de saúde questionando a validade jurídica e técnica do projeto.
Para o presidente do diretório paulista do PTB, deputado estadual Campos Machado, a lei, “além de ser uma aberração jurídica, pretendia criar uma indústria das cesáreas, trazendo graves consequências à saúde de milhares de mulheres”.
Em resposta ao deputado e à decisão do TJ, Janaina Paschoal afirmou, em rede social que, com a decisão, “as mulheres de São Paulo perderam um instrumento de poder e dignidade.”
Em defesa do seu projeto, a deputada Janaína Paschoal sempre justificou que a lei aumentava a autonomia da mulher e poderia diminuir a mortalidade materna e de bebês, um argumento contestado por evidências científicas.
Texto da proposta afirma que “a parturiente (mulher em trabalho de parto) tem direito à cesariana eletiva, devendo ser respeitada em sua autonomia” e prevê ainda que em maternidades e hospitais de São Paulo placa com dizeres: “Constitui direito da parturiente escolher cesariana, a partir da trigésima nona semana de gestação” deverá ser afixada.
Em debate realizado em julho de 2019, a deputada afirmou que vai “levar essa briga até o final. E vou ganhar. Estou trabalhando pelas mulheres pobres. Podem rir porque no final quem vai rir sou eu e são elas”, disse em audiência pública na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher em Brasília.
O que diz o projeto de lei criado por Janaina Paschoal
Paschoal, na justificativa do projeto, sustenta que “formadores de opinião que defendem a supremacia do parto normal à cesárea”, “defendem o direito de a parturiente escolher (e ser respeitada) apenas quando a parturiente escolhe o parto normal, ou o parto natural.”
O Núcleo de Defesa da Mulher da Defensoria Pública estadual (Nudem), que reuniu pareceres técnicos de vários profissionais da área da saúde à época, se posicionou de forma contrária ao projeto da deputada.
A principal preocupação da entidade é que o projeto servisse de álibi para a realização de partos cesarianas desnecessários, que costumam ser mais rápidos, mas apresentam maior risco de infeção e recuperação lenta.
Já entidades médicas se dividiram sobre a questão. A Associação de Obstetrícia e Ginecologia do Estado de São Paulo (Sogesp) se pronunciou contra o projeto de Paschoal. A entidade emitiu uma nota em que alega que a proposta não está clara e que falta embasamento científico.
Já o Conselho Regional de Medicina de São Paulo (Cremesp), se posicionou a favor do projeto. Em nota, diz que “entende que a avaliação de qualidade da assistência perinatal é multifatorial e não deve se basear nos ‘índices ideais de cesáreas’, desconsiderando as indicações médicas e a vontade materna.”
O alto número de cesáreas no Brasil
O Brasil, segundo o estudo científico publicado na revista The Lancet 2018, é o segundo País com maior taxa de cesáreas do mundo, ficando atrás somente da República Dominicana. A porcentagem de nascimento por cirurgias no País chega a 55,5%, quando segundo a ONU o ideal seria algo em torno de 15%.
Os números são ainda mais assustadores se compararmos a rede pública a privada. Segundo a UNICEF, as cesarianas representam 40% dos partos realizados na rede pública e 84% na particular. Esta lei só colocaria o país no topo do mundo.
O número de cesáreas no Brasil é muito superior ao de outros países. De acordo com dados de 2016 do Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos, as cesáreas são 55,6% do total de nascidos vivos no País. Só perde para a República Dominicana, onde o índice é de 56%.
No cenário brasileiro, os partos cesarianos na rede privada chegam a 84%, mais do que o dobro dos 40% registrados no SUS (Sistema Único de Saúde).
A recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) é no sentido de reduzir esse número. Estudos da organização apontam que a cesárea pode causar mortes e sequelas permanentes, especialmente se feita fora das condições adequadas e levar a possíveis casos de violência obstétrica.
Este tipo de violência atinge uma em cada quatro mulheres brasileiras, de acordo com a pesquisa Nascer no Brasil, de 2014, coordenada pela Fiocruz.
Definição é aceita pela OMS e pela Figo (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) e trata-se de uma violência sofrida por uma mulher durante o pré-natal, parto ou pós-parto.
O termo já é usado há anos e oficializado no Brasil há quase uma década para designar um tipo de violência contra a mulher, que acontece no momento do parto. Mas, recentemente, foi ameaçado.
Em despacho oficial publicado em maio de 2019, o Ministério da Saúde orientou que a expressão fosse evitada e, possivelmente, abolida de documentos de políticas públicas do governo.
Segundo o MS, “a expressão ‘violência obstétrica’ não agrega valor e, portanto, estratégias têm sido fortalecidas para a abolição do seu uso com foco na ética e na produção de cuidados em saúde qualificada”.
Fonte: Huffpost