A legislação sobre assédio está em vigor há duas décadas, mas “relatos e pesquisas mostram que o sistema judiciário e a polícia tendem a diminuir a importância do relato da vítima mesmo quando está fisicamente machucada”
As denúncias contra o ex-presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, acusado de assédio sexual, moral, importunação sexual, constrangimento e outras condutas criminosas e abjetas vão além dos fatos. Mais do que suscitar investigações e – espero – punições, revelam como as instâncias de poder injetam ânimo no assediador para cometer atrocidades no ambiente de trabalho.
Num cargo importante, é comum ver homens se sentirem à vontade para estender o poder de ofício aos corpos femininos. Investidos no cargo, passam a acreditar que podem interferir em como as pessoas – sobretudo mulheres, mas não só elas, uma vez que homens também são assediados – se vestem ou se comportam. Sentem-se inteiramente livres para assediar, constranger, tocar, gritar, humilhar, fazer convites indecorosos.
Uma vez no poder, transformam o próprio desejo no comandante de suas ações, sem qualquer preocupação de punição. E, normalmente, levam junto outros homens, que se desnudam de qualquer comprometimento moral para seguir o líder, tornando-se muitas vezes semelhantes a eles. O séquito machista naturaliza a agressão, classificando como “apenas uma cantada” ou “bastava dizer que não”. Uma vez denunciados, perseguem a vítima e investem contra sua carreira.
A legislação sobre assédio está em vigor há duas décadas, mas “relatos e pesquisas mostram que o sistema judiciário e a polícia tendem a diminuir a importância do relato da vítima mesmo quando está fisicamente machucada. Se isso acontece com o estupro, imagine com o assédio”. A constatação é da professora do Departamento de Antropologia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP), Heloisa Buarque, em entrevista ao Correio.
O medo de retaliação transforma os casos em números esparsos. Há poucas denúncias para o tamanho do problema. A presidente do TCU, Ana Arraes, disse bem: “Esse episódio recente, que merece ser investigado e, se confirmado, punido com todo rigor, é apenas um sintoma grave de um problema muito maior, que é a ausência de políticas eficazes de prevenção e combate ao assédio nas organizações públicas”.
Na verdade, nas organizações públicas e privadas. Assim como no ambiente doméstico. Veja só: 40% das servidoras e magistradas que atuam no sistema de Justiça brasileiro já sofreram algum tipo de violência doméstica, de acordo com um estudo que publicamos.
Não há trégua nem espaço privilegiado quando o machismo impera. Vivemos na cultura do patriarcado, na qual o homem branco dá as cartas e define as regras do jogo. Felizmente, isso está mudando. Campanhas como #chegadefiufiu ou #metoo colocam o dedo na ferida e expõem o agressor.
Cada vez que uma mulher denuncia, uma onda se forma, cobrindo outras mulheres de coragem para denunciar também. Mas a única forma de acabar de vez com isso é ter uma parcela significativa de lideranças femininas. Mulheres devem ocupar espaços de poder. Pense nisso nas próximas eleições.
Fonte: Correio Braziliense