Entre elas o desemprego é 30% maior que entre eles. A coisa fica pior entre pretas e pardas, com 47% a mais de desocupação. Mulheres em idade fértil são as que mais sofrem
Verônica*, 42 anos, fazia um tratamento para engravidar quando recebeu a notícia de que seria demitida da empresa na qual trabalhava como representante comercial há três anos. Ficou atônita. “Eles nunca reclamaram do meu trabalho. Será que eu devia ter ficado calada sobre os meus planos de me tornar mãe?”, questiona-se. Verônica é parte do contingente de brasileiras que perderam o emprego em 2015, o ano em que mais uma crise econômica fincou suas raízes no país.
Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostram que as mulheres são as maiores vítimas da recessão. De janeiro a novembro do ano passado, a taxa de desocupação feminina chegou a 7,9% – enquanto a média geral foi de 6,8%. Os números saltam se forem consideradas apenas as mulheres negras: nesse grupo, o desemprego acumulado em 11 meses foi de 9%.
Na idade reprodutiva, o desemprego é ainda mais severo: 26% das mulheres entre 18 e 49 anos, em comparação com 19,7% dos homens na mesma faixa etária. Isso acontece porque, no contexto de crise, a possibilidade de uma gravidez virou uma desvantagem competitiva.
Não há nenhum estudo específico sobre a taxa de desocupação entre mães ou gestantes, mas perguntas sobre as pretensões de maternidade e a dedicação aos filhos são comuns em processos de seleção de todas as áreas. “Eu ouvi coisas como ‘mas você é mãe, né? Precisamos de gente sem hora para sair e com dedicação total à empresa’”, lembra Andressa Bristotti, 33 anos, que foi demitida pouco depois de voltar da licença-maternidade. Cansada de tentar conseguir uma recolocação no mercado de trabalho, ela acabou abrindo seu próprio negócio.
Pela lei trabalhista brasileira, a mulher tem direito à estabilidade no emprego desde o início da gestação até 150 dias após o parto – inclusive se a descoberta da gravidez ocorrer durante o aviso prévio. Foi o que aconteceu com a representante comercial Verônica, que procurou a Justiça para ser recontratada pela empresa. Hoje, às vésperas de se tornar mãe, ela teme o que pode acontecer no futuro, quando não tiver mais a proteção legal.
Leia mais: “Nunca quis ser mãe”, dizem mais e mais brasileiras
Outros direitos da gestante incluem a possibilidade de se ausentar para consultas e exames e para amamentar o bebê (veja mais no quadro abaixo). Quem se sentir constrangida durante a gestação pode pedir a chamada rescisão indireta, uma espécie de “justa causa” promovida pelo empregado contra a empresa. Nesse caso, o empregador precisa pagar todas as verbas rescisórias como se estivesse demitindo a trabalhadora, incluindo a multa de 40% sobre o fundo de garantia. “De forma geral, os empresários têm consciência de suas obrigações, ao menos nas grandes cidades”, comenta a advogada trabalhista Clarisse Dinelly. “O difícil é garantir o respeito às leis no interior, onde muita gente nem sequer paga o salário mínimo”.
Assédio e preconceito
A ideia de que a contratação de mulheres é mais “arriscada”, uma vez que elas engravidam e precisam se afastar temporariamente do emprego, está profundamente enraizada no Brasil. Não raro, ataques, assédios e constrangimentos a gestantes ou funcionárias com filhos pequenos são protagonizados, inclusive, por outras mulheres. “Minha chefe fazia questão de dizer que havia voltado ao trabalho 15 dias após o nascimento dos filhos, como se fazer qualquer coisa diferente disso fosse sinal de preguiça da minha parte”, lembra a jornalista Priscila*, 31 anos, mãe de uma menina de 10 meses.
A publicitária Paula Motta, 28 anos, conta que sua ex-chefe parou de cumprimentá-la ao ficar sabendo da sua gravidez. “Dias depois, ela me disse que o fluxo de trabalho havia diminuído e que eu iria para a rua. Ressaltei que estava à espera de um bebê e ela me disse: ‘ah, tem isso aí. Fica tranquila que eu te pago mais um salário’”. Paula trabalhava como pessoa jurídica, mas tinha todos os vínculos de um funcionário fichado e conseguiu ganho de causa na Justiça contra a empresa.
“Esse tipo de discriminação é uma forma de violência contra a mulher”, afirma Ana Lúcia Keunecke, diretora jurídica da Artemis, uma organização não governamental que luta pelos direitos femininos. “Se o desemprego ocorre porque as mulheres podem se tornar mães, isso não é uma questão trabalhista, e sim uma grave violação dos direitos humanos”, aponta.
O Brasil é signatário de uma série de acordos internacionais pela não discriminação de gênero, mas ainda engatinha para cumprir as determinações – sem falar que encara a disseminação de preconceitos na esfera pública. No início do ano passado, por exemplo, o deputado Jair Bolsonaro (PP/RJ) afirmou que mulheres deveriam ganhar menos que homens, justamente porque a elas é assegurada a licença-maternidade.
Em novembro, uma pesquisa global divulgada pelo Fórum Econômico Mundial revelou que o país é o segundo pior no quesito igualdade de salário entre homens e mulheres, na frente apenas de Angola. Por aqui, mulheres ganham 30% a menos que os homens.
“Infelizmente, em pleno século 21, continuamos a ver as mulheres sendo discriminadas ou excluídas pela falta de oportunidades”, lamenta o procurador Sandoval Alves da Silva, da Coordenadoria Nacional de Promoção da Igualdade de Oportunidade e Eliminação da Desigualdade, do Ministério Público do Trabalho (MPT). “Essa situação é histórica, mas, em tempos de crise, se torna ainda mais predatória.”
Em 2014, o MPT no Distrito Federal conseguiu a condenação de uma empresa de tecnologia que pagou R$ 2 milhões por assédio moral coletivo a gestantes. Segundo a investigação, as trabalhadoras eram obrigadas a ficar isoladas dos demais empregados, em locais insalubres e sofrendo ameaças caso denunciassem a situação. Em Tocantins, um grande banco está sendo processado pelo MPT por não ter deixado uma funcionária que sofreu um aborto espontâneo sair da agência até fechar a tesouraria. De acordo com a denúncia, o feto ficou guardado em um saco plástico.
Os abusos não são exclusividade das empresas privadas. No início do ano passado, o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, entrou com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) no Supremo Tribunal Federal (STF) contra a lei estadual que regulamenta a licença-maternidade de servidoras públicas em estágio probatório. Se o estado obtiver ganho de causa na Corte, os seis meses de afastamento não serão computados nos três anos iniciais de serviço. “Será mais uma situação em que as mulheres ficarão para trás na carreira e nas oportunidades de aumento de salário”, comenta Ana Lúcia.
A maternidade e o “não trabalho”
Para além dos constrangimentos legais sofridos pelas mães, há uma falta de entendimento generalizada sobre a função social da criação dos filhos. Enquanto em muitos países europeus há um estímulo para que mulheres e homens dediquem mais tempo exclusivamente a essa atividade, no Brasil e em outras nações latino-americanas, isso passa longe de ser uma prioridade. “Não há uma política pública que reconheça a maternidade como um exercício social, uma forma de criar bons cidadãos para o futuro”, destaca a diretora jurídica da Artemis.
O período de afastamento previsto na legislação trabalhista é visto como um estorvo pelas empresas, que cobram uma alta produtividade da mulher assim que ela regressa ao trabalho – normalmente, com um bebê que segue acordando de madrugada. Não à toa, a média de aleitamento materno exclusivo no Brasil é de apenas 54 dias – enquanto a recomendação da Organização Mundial da Saúde (OMS) é de seis meses.
“A sociedade brasileira ainda enxerga a mulher como prioritariamente responsável pela manutenção do lar. Nos últimos anos, elas ingressaram mais maciçamente no mercado de trabalho, mas isso não foi acompanhado de um aumento da participação dos homens nas tarefas domésticas”, ressalta a secretária de Políticas do Trabalho e Autonomia Econômica da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), Tatau Godinho. “Não houve uma mudança no padrão de responsabilidade masculina”, frisa.
Leia mais: A Revolução vai acontecer na pia
A pesquisa mais recente do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea) sobre o assunto, divulgada em 2012, revela que as mulheres dedicam 26,6 horas semanais às atividades domésticas. Os homens, por sua vez, se comprometem com menos da metade: 10,5 horas, em média. Uma tentativa de mudar essa equação é o aumento da licença-paternidade, em discussão no Congresso Nacional. A proposta é que os atuais cinco dias aumentem para 20.
Outro desafio a ser vencido é a fragilidade nas políticas públicas de apoio às famílias com crianças pequenas. Embora o número de vagas em creches tenha dobrado desde 2003, o índice de meninas e meninos atendidos é de apenas 24%. As maiores prejudicadas acabam sendo as mulheres negras e pobres, que raramente podem deixar de trabalhar para ficar com o bebê e dependem de terceiros para cuidar dos filhos.
Alternativa
Para as que podem “se dar ao luxo” de deixar o emprego formal, um caminho que tem atraído cada vez mais adeptas é o do empreendedorismo. Nas redes sociais, há uma série de grupos de mães donas de seus próprios negócios. Elas usam o espaço como vitrine para produtos e serviços, fazem pesquisa de preço e compartilham o ideal de comprar e vender para outras mulheres na mesma situação, fomentando o empreendedorismo materno.
Criado no ano passado, o Maternativa é um desses grupos. De tanto sucesso, virou um site, com mais de 570 empresas cadastradas, todas tocadas por mulheres mães. Além do site, a rede mantém um blog, um canal no YouTube e realiza encontros para formação em empreendedorismo – tudo gratuitamente. A designer Camila Conti e a pedagoga Ana Laura Castro, responsáveis pela iniciativa, acreditam, porém, que o empreendedorismo materno é muito mais uma necessidade do que um desejo – pelo menos por enquanto.
“Muitas mulheres gostam de ser funcionárias, preferem o emprego, o salário e os benefícios garantidos. O mercado de trabalho é tão opressor, contudo, que muitas pedem demissão ou são demitidas após o fim da licença-maternidade”, diz Camila.
Para ela, um dos maiores desafios é a formação para que as mulheres possam empreender com qualidade. “A gente cresce ouvindo que ‘mulher só sabe gastar’ e muito disso fica no nosso subconsciente. No grupo, percebemos o quanto elas têm dificuldade para gerir as contas da empresa.”
Além disso, há o problema do gerenciamento do tempo. A maioria das mães que abrem negócios são também responsáveis pelo cuidado com os filhos e com a casa. Não é raro que se frustrem ao perceber que o sonho de dedicar-se mais às crianças acaba sendo substituído pelo grande volume de trabalho.
São esses medos que rondam a cabeça da arquiteta Júlia*, 35 anos, mãe de uma menina de 3 meses. Depois de três anos atuando em um escritório – que pediu aos funcionários para que passassem a receber como pessoa jurídica – ela foi mandada embora, grávida, sem nenhum de seus direitos respeitados. “Fiquei chocada! Meus chefes são também pais de família, eles sabem como o momento da chegada de um bebê é delicado”, revolta-se. Júlia está movendo um processo contra a empresa e pensando como será seu futuro, talvez como empreendedora. “Eu não sou a primeira e não serei a última a passar por essa situação, infelizmente. Tudo acabou sendo um aprendizado, parei para refletir como nossa sociedade reage à notícia de uma gravidez, que deveria ser só felicidade.”
Fonte: AZ Mina