“Wanda, por favor, prefiro pegar a Covid logo e você me deixar voltar a trabalhar do que ficar parado.” “Eu tenho que alimentar a minha família, meus filhos.”
Os apelos do gestor de obra Dário de Carvalho Leitão, 63, e do pedreiro Elizeu Medeiros Rodrigues, 38, feitos à empreendedora social Wanda Foresti, 39, mostram o quanto a pandemia afetou o Arquitetos da Vila, negócio de reformas habitacionais a baixo custo em zonas vulneráveis.
Wanda e o marido, o historiador Lucas Vasconcelos, que já atuavam sem salário, desdobravam-se para pagar as contas da empresa. “Não dá para descrever o apuro. A gente criou a empresa há um ano e meio e, quando nos preparávamos para crescer, veio a pandemia”, diz a arquiteta. Eles atuam no Aglomerado da Serra, uma das maiores favelas do Brasil, que abriga 8 vilas e cerca de 120 mil pessoas em Belo Horizonte (MG).
Com o risco de contágio, as reformas rarearam e também ficaram mais difíceis, pois eles não poderiam entrar na casas sem se expor e também expor o ambiente.
O Arquitetos da Vila encontrava-se a ponto de fechar quando foi salvo pelo Fundo Emergencial Volta por Cima.
Criado por quatro empreendedores sociais, Maure Pessanha, da Artemisia, Marcelo Rocha, o DJ Bola, de A Banca e Anip, Edgard Barki, do FGVcenn, e Alessandra França, do Banco Pérola, o fundo justifica o nome, por atuar em emergências, e por ser inovador.
“Da ideia até a execução, seleção dos projetos, foram 25 dias. Um ligava para o outro. Havia um senso de urgência e de propósito muito grande”, diz Maure, 38, diretora-executiva da Artemisia, que trabalha com a aceleração e capacitação de negócios sociais.
A primeira inovação se deu no formato do fundo, já que ele investe apenas em negócios e projetos sociais que atuam em periferias. Com o dinheiro, os selecionados ainda recebem mentoria dos empreendedores do fundo.
“O Volta Por Cima se tornou uma grande rede, um ‘ninguém larga a mão de ninguém’. Estamos juntos com os projetos, e eles estão com a gente”, diz Barki, que é administrador e professor do Centro de Empreendedorismo e Negócios da FGV.
E o estar junto representa que cada projeto ganha acompanhamento mensal, que envolve saber do uso do dinheiro (impacto), desenvolver o capital humano (gestão do negócio), incentivar as relações sociais (acesso a redes) e dar atenção psicológica (terapia individual).
Outra inovação está na operação do fundo, que doou R$ 15 mil a cada projeto, com 6 meses de carência e pagamento em 12 parcelas sem juros.
Essas condições, únicas, exigiram adequação do Banco Pérola, de Alessandra, 35. “Foi tudo novo para nós e estruturado com cada um de sua casa. A gente já operava digitalmente, mas havia urgência e tinha de fazer com que nosso sistema identificasse juro zero, que não existe no mercado”, diz a diretora do banco, que beneficiou 3.000 famílias desde 2009.
Ao todo, de 250 projetos mapeados, 55 foram selecionados para receber R$ 15 mil cada um. Foram três rodadas de liberação dos recursos, entre junho e agosto.
“Esses empreendedores selecionados fazem micro revoluções num bairro, num grupo de pessoas ou num segmento. É um dinheiro, que permite pagar contas e manter o negócio. É dinheiro que chega aonde o poder público não chega”, diz DJ Bola, 39.
Para ele, que mora e atua no Jardim Ângela, bairro que já foi considerado o mais violento de São Paulo, a pandemia “teve vários efeitos na quebrada”, tanto positivos, “como a solidariedade, com pessoas com pouco ou quase nada dividindo o que tinham”, e muitos negativos, que vão “da extrema pobreza escancarada e internet que não chega até falta de renda”.
Os desafios de operar o fundo foram superados pela ligação dos quatro empreendedores, cada um também lutando para manter suas entidades. São todos voluntários no fundo, reunidos com senso de família, pois se consideram “irmãos”, “incansáveis” e “construtores de pontes”.
“A gente se gosta muito. E o nosso melhor está em fazer acontecer a partir dessa relação”, afirma Maure, mãe de quatro filhos.
O embrião da amizade entre todos perpassa pela Artemisia, que já acelerou o Banco Pérola, e que uniu Maure, Bola e Barki no comando da Articuladora de Negócios de Impacto da Periferia —foi do mapeamento feito pela Anip que vieram os projetos beneficiados, que abarcam iniciativas de educação, empoderamento feminino, energia solar, empregabilidade e arquitetura, entre outros.
Foi também da Artemisia que saíram os contatos para atrair investidores para o fundo, que juntou R$ 1,2 milhão, vindo de parceiros como Instituto Vedacit, Fundação Arymax, Potencia Ventures e Fundação Tide Setubal.
“Na pandemia, quase todos os negócios sociais ficaram em risco. Não podia deixar um trabalho de tantos anos perder valor ou propósito. Decidimos criar um fundo, em que manteríamos o DNA de nossas ações e o propósito de nossa existência”, diz Maure.
Entre os 55 negócios de impacto social, que estão em 21 cidades e 10 estados do país, 85% dos empreendedores dizem estar se recuperando, como Wanda. Para ela, o fundo foi salvação e redenção.
“Estamos voltando a ter serviços, consegui manter meus funcionários e o mais legal é que, quando eu pagar o que o fundo me deu, eu sei que esse dinheiro será dado para outro projeto conseguir dar a volta por cima.”
FUNDO EMERGENCIAL VOLTA POR CIMA
- 500 empreendedores diretamente impactados
- R$ 1,2 milhão em recursos mobilizados
- 55 negócios de impacto social provenientes de periferias em 10 estados receberam aportes do fundo
- 60% dos empreendedores se autodeclararam do gênero feminino, 40% pretos(as) e 21,8% pardos(as)
Fonte: Folha