“Se vier uma nova onda da Covid-19, a gente já sabe como fazer.” Esta certeza é de Kdu dos Anjos, 29, criador do Centro Cultural Lá da Favelinha, no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, onde vivem mais de 120 mil pessoas.
É uma das maiores favelas do Brasil. Dois meses depois do início da pandemia do coronavírus, o Lá da Favelinha e a Associação Comunitária de Moradores do Cafezal, uma das oito vilas do Aglomerado, uniram-se no projeto Frente Humanitária para ajudar os moradores a superar os impactos da crise sanitária, social e econômica.
Com a lógica do “nós por nós”, lideranças comunitárias somaram experiências para solucionar o problema mais grave no auge da pandemia: a fome.
Com a ajuda de moradores e comerciantes locais, durante 81 dias, foram entregues também 168 mil marmitas —2.000 por dia, em média.
Além de alimentar 70 mil pessoas por mês e garantir a higiene necessária para evitar a contaminação pelo vírus, a Frente Humanitária criou 75 empregos diretos e 300 indiretos e estimulou o comércio local. “Nós nos fortalecemos no meio do caos”, diz Kdu. “É coisa nossa. A gente se vira.”
Kdu é Carlos Eduardo Costa dos Anjos, MC de hip hop e funk, produtor de moda, poeta, compositor, ator, agitador cultural e arte educador. Em 2015, ele criou o Centro Cultural Lá da Favelinha, iniciativa que promove educação, cultura e desenvolvimento humano no Aglomerado da Serra.
Kdu dividiu a direção geral da ação com Cristiane Pereira, a Kika, 43, produtora cultural há 16 anos e presidente da Associação de Moradores da Vila Cafezal há dois anos. Reconhecida pelo trabalho que faz com hip hop, foi dela a ideia de fazer marmitas para idosos, doentes e quem não tinha como preparar refeições. “Oferecemos comida e dignidade para a população”, afirma ela.
O trabalho humanitário virou alternativa ao tráfico. “É um problema sério e sempre a primeira opção de trabalho para os jovens daqui. Quando alguns saíram da boca para entregar cestas básicas, viram que existem pessoas em situação pior que a deles e que podem ganhar dinheiro de outra forma”, relata Kika.
Mesmo com o fim da campanha, os ex-traficantes continuam monitorados pela associação. “Não vamos deixar que voltem para o tráfico. Queremos oferecer oportunidades para todos.”
Com Kika e Kdu trabalharam a gestora social e cultural Danny Mendes, especialista em políticas de diversidade para mulheres negras e mestre em administração pela Universidade Federal de Minas Gerais, e Welleton Carlos, o Negona Dance, dançarino e militante.
“Demos oportunidade para a juventude negra LGBTQ+ e os artistas”, afirma Danny, 26. “E o principal: durante três meses demos alimentação, porque a fome não espera.”
Gestora da Associação Comunitária dos Moradores da Vila Santana do Cafezal, ela foi a responsável pela coordenação e administração financeira do projeto.
“Negona Dance ficou responsável pelos recursos humanos. Era quem lidava com nossa equipe era gigante.”
Negona Dance estuda dança na UFMG, é coreógrafo do Grupo Identidade Oficial, o qual dirige, e do Favelinha Dance, em que é dançarino.
Também fizeram parte da ação emergencial mães solo, jovens que estavam na criminalidade, que tiveram a oportunidade de ter o primeiro emprego e pessoas que perderam fonte de renda.
A Frente Humanitária começou com apoio de parceiros da sociedade civil, mas o projeto chamou a atenção da Fundação Unibanco, que doou R$ 5,4 milhões.
O rapper Djonga, da comunidade, destinou R$ 100 mil de uma live para a ação. Para dar conta do recado, cozinheiras produziam o cardápio na cozinha industrial que Kika ergueu com recursos doados pelo artista.
Os coordenadores montaram equipes de entregadores das marmitas com jovens artistas, dançarinos e modelos das comunidades.
O transporte era organizado por taxistas e motoristas de aplicativo que vivem na favela. Um app foi criado para cadastrar as pessoas que recebiam cestas básicas e kits de higiene.
As informações sobre as ações e dicas de prevenção à Covid-19 eram levadas aos moradores pelo jornal “Pega na visão morador?”. Todo o trabalho foi registrado e transformado em três minidocumentários. “Nossa logística foi perfeita”, orgulha-se Kdu.
O comércio e o empreendedorismo locais foram fortalecidos e todo o patrocínio conquistado para a ação foi investido na favela. “As pessoas estão voltando ao trabalho e parece que o pior já passou”, afirma Kdu.
“Comparado ao começo do ano, a vida na comunidade está melhor”, avalia.
O jovem empreendedor social também saiu fortalecido. “Conseguir alimentar 70 mil pessoas por mês é bem maior do que montar uma biblioteca para fazer shows de rap e emprestar livro.”
E conclui com a sensação de dever cumprido: “Empoderar financeiramente mulheres negras é o maior ato revolucionário deste século. Elas sustentam e carregam nas costas a periferia. E a periferia tem fome, e não só de comida. Tem fome de alimento crítico, político, ideológico. Na pandemia, a gente resolveu a fome mesmo, a que mais dói”.
FRENTE HUMANITÁRIA LÁ DA FAVELINHA E ACM CAFEZAL
- 70 mil pessoas impactadas
- R$ 5,4 milhões em recursos mobilizados
- 168 mil marmitas
- 18 mil cestas básicas e kits de higiene
- 60 mil máscaras
- 75 empregos diretos foram gerados pela iniciativa e 300 indiretos
Fonte: Folha