“A lei do feminicídio surgiu não para aumentar a pena, mas para dar mais visibilidade ao problema da violência contra as mulheres, uma vez que essa lei nomeia o problema”, diz a socióloga Luanna Tomaz à IHU On-Line. Nesse sentido, avalia, a lei do feminicídio “é importante e significativa em um País como o Brasil que, historicamente, tratou esse assunto de forma não explícita”.
Na entrevista a seguir, concedida por telefone à IHU On-Line, Luanna Tomaz comenta os dados do estudo realizado pelo Banco Mundial, o qual aponta um aumento de 75% da taxa de feminicídio nas regiões Norte e Nordeste entre 2003 e 2013. “Há vários fatores que precisam ser considerados quando se trata de entender esses dados. Em primeiro lugar, Norte e Nordeste são duas regiões que têm um número maior de pessoas negras e indígenas, e os estudos têm mostrado – Mapa de Homicídios e outros – que a violência contra as mulheres brancas tem diminuído e tem aumentado o índice de violência contra mulheres negras. Isso mostra que as políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher não têm contemplado a diversidade das mulheres”, aponta.
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Outro fator que ajuda a compreender esses dados, informa, é o “espraiamento das políticas públicas” na região. “Vemos, no Sul e Sudeste, um maior número de delegacias, de promotorias, de núcleos das defensorias do que vemos no Norte e no Nordeste. Então, existe aqui uma dificuldade muito grande em termos de políticas públicas, principalmente no interior do estado”.
Confira a entrevista.
A que atribui o aumento de 75% da taxa de feminicídio nas regiões Norte e Nordeste em dez anos, entre 2003 e 2013, segundo dados do Banco Mundial? Esse número indica que ocorreram mais denúncias ou um aumento no número de casos?
Luanna Tomaz – A violência é um fenômeno muito complexo, e é muito difícil encontrarmos uma única resposta ou uma única causa para ela. Há vários fatores que precisam ser considerados quando se trata de entender esses dados. Em primeiro lugar, Norte e Nordeste são duas regiões que têm um número maior de pessoas negras e indígenas, e os estudos têm mostrado – Mapa de Homicídios e outros – que a violência contra mulheres brancas tem diminuído e tem aumentado o índice de violência contra mulheres negras. Isso mostra que as políticas públicas de enfrentamento à violência contra a mulher não têm contemplado a diversidade das mulheres, porque essas políticas, às vezes, atingem determinados públicos, mas não todas as mulheres, justamente por conta das especificidades locais, e do fato de essas mulheres serem pobres, periféricas e negras.
Há ainda outro fator que nos ajuda a entender esses dados: o espraiamento das políticas públicas, ou seja, vemos, no Sul e Sudeste, um maior número de delegacias, de promotorias, de núcleos das defensorias do que vemos no Norte e no Nordeste. Então, existe aqui uma dificuldade muito grande em termos de políticas públicas, principalmente no interior do estado. Em Belém, onde resido, existem casas de abrigo, delegacias, promotoria, defensoria, mas no interior do estado é muito difícil encontrar essas instituições. Desse modo, uma mulher que sofre violência não tem abrigo, não tem a quem recorrer, porque muitas vezes não há delegacia especializada ou núcleos da defensoria e da promotoria especializados. Isso faz com que haja mais dificuldade para enfrentar o problema.
Do ponto de vista prático, a lei do feminicídio tem alcançado melhores resultados que outras leis, como a Lei Maria da Penha, por exemplo?
A Lei Maria da Penha foi muito positiva em alguns aspectos. Há também várias avaliações acerca disso. Em muitos países a lei do feminicídio surgiu não para aumentar a pena, mas para dar mais visibilidade ao problema da violência contra as mulheres, uma vez que essa lei nomeia o problema, ou seja, chama-o de feminicídio. Isso faz com que as pessoas percebam que existe o assassinato de mulheres pela condição de elas serem mulheres.
Nesse sentido, a lei do feminicídio é importante e significativa em um País como o Brasil que, historicamente, tratou esse assunto de forma não explícita. Na verdade, nunca se deu visibilidade a essa questão; ignorou-se esse problema. Então, o fato de identificar e sinalizar a existência do problema facilita, por exemplo, a elaboração de políticas públicas. Agora, a lei do feminicídio não pode ser a única política pública, não é possível acreditarmos que tudo se resolve a partir do direito penal; precisamos ter outras ações. A própria Lei Maria da Penha menciona a necessidade de realizar ações de prevenção, de assistência, mas ainda há um viés muito grande na questão punitiva.
O que é preciso ser feito para reverter esse quadro nos estados do Norte e Nordeste?
É preciso investir mais em mecanismos de prevenção, como a própria Lei Maria da Penha determina. A Lei Maria da Penha surge a partir de uma recomendação da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, e em seu documento, a Comissão sinaliza diferentes recomendações: uma delas é a de criar uma lei específica, mas a Comissão recomenda também a necessidade de capacitar uma rede de políticas públicas. Esse é um problema no Brasil, isto é, muitas vezes não há políticas públicas no País. Nesse sentido, as políticas públicas, muitas vezes, não são elaboradas por pessoas capacitadas para entender o que é a violência de gênero, de que forma ocorre a violência etc. Com isso, às vezes, as pessoas usam estigmas sociais, estereótipos como “mulher gosta de apanhar”, e, a partir desses estereótipos, julgam a conduta das mulheres e as tratam mal. Portanto, é preciso capacitar essa rede.
Além disso, é preciso realizar ações educativas nos bairros e nas escolas. Apesar dessa necessidade, alguns estados estão agindo na contramão das recomendações da Comissão Interamericana e da Lei Maria da Penha, ao proibirem o debate de gênero no sistema curricular. Ao contrário, precisamos ampliar esse debate. As meninas e as mulheres precisam compreender que não precisam viver uma vida de submissão, violência e opressão, e que os homens devem tratá-las com dignidade.
A própria Lei Maria da Penha sugere, por exemplo, a existência de centros para agressores, mas não existem centros para lidar com esses homens, que muitas vezes não sabem em qual aspecto estão errando, já que foram educados dessa forma. Por isso, é importante também ter o aspecto da prevenção e da ampliação das políticas públicas, que é significativo. No final do ano passado, lancei o livro Da expectativa à realidade: a aplicação de sanções na Lei Maria da Penha, no qual faço um estudo sobre a aplicação da Lei Maria da Penha no Pará, e estudo um pouco da aplicação da lei no restante do Brasil, e como essas políticas públicas têm sido deficientes, e de como precisamos ir além do viés punitivo.
Fonte: Caros Amigos