“Corta a palavra da vereadora. É para cortar a palavra da vereadora. Agora”, disse, aos berros, o vereador Clécio Alves (MDB), durante uma sessão na Câmara Municipal de Goiânia realizada na terça-feira (4). A vereadora em questão era Tatiana Lemos (PCdoB), que participava remotamente do evento e pediu a Alves a palavra para discutir um projeto de lei de sua autoria, que havia sido vetado pelo prefeito da cidade, Iris Rezende (MDB).
O vereador no plenário deu início à votação sem ter ouvido Tatiana pedir a palavra. Quando a vereadora insistiu, disse que não era possível, pois a votação já estava aberta. Ela afirmou que estava em sua casa, participando online da sessão, ele, mais uma vez, a interpelou. “No meu conhecimento, esse negócio de remoto acabou, não existe mais”, esbravejou Clécio. Outros cinco vereadores também participavam de maneira remota da atividade. No caso de Tatiana, ela está em casa por causa de um tratamento agressivo de uma doença autoimune chamada artrite psoriática mutilante, que causa uma queda drástica na imunidade
Por fim, ela conseguiu falar sobre o projeto, que garantiria exames de trombofilia a gestantes na rede pública de saúde, e os vereadores votaram pela derrubada do veto do prefeito, fazendo com que a proposta entre em vigor. “Ganhei o apelido de pantera e perguntam se estou na TPM”. A Universa, Tatiana falou sobre o que aconteceu, disse que não é a primeira vez que ouve um “cala a boca” em plenário e conta que o pior, ainda, é o dia a dia. “É entrar no plenário para falarem da minha roupa, da minha aparência. Chegaram a me dar o apelido de Pantera. E aí, se reclamo, é porque estou na TPM, estou nervosa. O que sinto é que mulheres são apenas toleradas nas câmaras de vereadores. Podemos estar ali, mas precisamos ficar no nosso canto, sem chamar a atenção, quietas.” Na Câmara Municipal de Goiânia, dos 35 vereadores, apenas cinco são mulheres —ou seja, 14%. O índice é bem próximo à média nacional, de 13,5%.
Tatiana, 41, que está em seu terceiro mandato e defende causas relacionadas aos direitos das mulheres, já ouvia comentários que a desqualificavam desde a primeira vez em que foi eleita. “Logo que entrei, em 2008, teve uma votação importante e um vereador falou alto para os colegas, comigo do lado: ‘Vamos ver em quem ela vai votar, senão ligamos para o pai dela’. Meu pai também tinha sido vereador. Percebi que teria que me posicionar, senão ouviria aquele tipo de coisa sempre. No microfone, expus o que ouvi e pedi que a pessoa se retratasse.”
Chilique de barba Hoje em dia, interrupções durante falas ou mesmo ordens para que pare de falar, como ocorreu na sessão com Alves, são corriqueiras. “Pelo menos uma vez por semana”, conta. Os comentários sobre sua aparência, assim como o apelido de Pantera, são o que mais incomoda. “Entendo que, na cabeça desses homens, a maioria de gerações antigas, isso seja um elogio. Mas não é. Eles não têm noção de como falar de aparência incomoda. De como é ruim entrar em uma sala e ouvir que cheguei para embelezar a reunião”, diz. “E, se você reclama, é a estúpida, grossa, esnobe. Tem dia que realmente eu não tenho paciência, digo que é um saco ficarem comentando a minha roupa. Eles se sentem ofendidos. Dizem: ‘Mas é só um elogio'”, desabafa.
Tatiana comenta, porém, que, no espaço político, nervosismo e destempero lhe parecem características mais masculinas do que femininas. “É o chilique de barba. Eles batem na mesa, gritam. Um dia, um vereador com quem eu discutia disse: ‘Vamos resolver isso lá fora’, me chamando para brigar, pense”, lembra Tatiana, rindo. “Se sou eu que bato na mesa ou grito, sou a louca, a mal amada, a que não tem homem em casa. A mulher ou assume o papel de submissa e obediente ou é inadequada à política.”
“Vereadoras são apenas toleradas” Para Tatiana, as câmaras municipais brasileiras são os espaços em que os homens mais se sentem livres para atacar as colegas mulheres. “É a primeira representação do povo, tem um contato mais íntimo com as pessoas. Esse vereador, por exemplo, tem esse jeito sempre. Aí dizem: ‘Ah, mas ele é assim mesmo’ e acaba sendo mais tolerável. Se isso tivesse acontecido em uma casa legislativa estadual ou federal, não aceitariam esse comportamento”, acredita.
“As poucas mulheres que ocupam o parlamento brasileiro, a meu ver, são somente toleradas. Temos o direito de participar, mas é muito perceptível, no cotidiano, como a autoridade é predefinida ao homem. Como se esse lugar fosse deles e a gente tivesse que agradecer por eles permitirem que participemos”, diz. “Aqui, em Goiânia, os homens se acham mais vereadores do que nós.”.
“Não esperava essa sororidade toda” Após a gravação da sessão na Câmara de Goiânia repercutir nas redes sociais, diversas organizações manifestaram apoio à vereadora, como a Comissão da Mulher Advogada da OAB-GO (Ordem dos Advogados do Brasil de Goiás). Houve também um “twittaço”, com várias pessoas se manifestando no Twitter contra a atitude do vereador Clécio Alves.
“Não esperava essa sororidade toda. A empatia dos homens também foi importante, muitos se manifestaram. Alguns homens têm que entender que nós viemos para ficar, é direito das mulheres se candidatar e fazer parte do parlamento, não vamos arredar o pé”, diz. “Cada vez mais mulheres vão ocupar a política. E não de forma obediente.”.
Ela credita a grande repercussão do caso ao fato de muitas colegas passarem por situações parecidas em diferentes câmaras brasileiras, ou mesmo em outras profissões. “O que acho que aconteceu foi um reconhecimento. As mulheres viram o vídeo e pensaram: ‘Eu também passo por isso, sei qual é o sentimento. E eu também não vou mais aceitar”, afirma.
Outro lado A reportagem tentou contato com o vereador Clécio Alves por telefone na tarde de sexta-feira (7), mas não havia ninguém em seu gabinete na Câmara Municipal de Goiânia. Mandou também mensagens pelo Facebook e Instagram do político, mas, até a conclusão desta reportagem, não teve resposta.
Veja discussão: https://youtu.be/Eme-60nYk5g
Fonte: Universa