(Por Debora Diniz)
Eu a imaginei antes de vê-la. Imaginá-la é oferecer-me a sua dor, desesperar-me com seu desamparo. Como imaginar uma menina de dez anos vítima de estupro? Tristemente, ela era exatamente ela. Uma menina negra, miudinha, com sandália de dedos nos pés e um vestido florido. A vi de costas, um sapo verde de pelúcia entre os braços deixava a cena ainda mais desconcertante. Era o real em forma de sentença: uma menina pobre, negra, vítima de abuso sexual infantil, à espera de um médico salvador. Em sua cidade, São Mateus, no Espírito Santo, os médicos recusaram-se a cumprir a lei. Desconheço o que alegaram para justificar a covardia. Ela atravessou fronteiras, fez a primeira viagem de avião para ter acesso ao que deveria ser um direito. Sem escândalo ou favores, só o direito ao aborto porque foi violentada e corria risco de vida.
É uma menininha, o diminutivo é para provocar a compaixão daqueles para quem o aborto é tema de fanatismo. Ela foi abusada dos seis aos dez anos por um homem adulto. O tempo da tortura só foi interrompido porque o corpo maturou e o silêncio do estupro se fez escândalo da gravidez. Uma barriga inchada no corpo infantil levantou a suspeita do hospital. No intervalo de uma semana, fanáticos surgiram em cada esquina deste país para determinar o futuro da menina, segundo seus preceitos de bem-viver. De pastor desconhecido, a ministra de Estado ou bolsonarista recém-saída do presídio, houve quem se lançasse em público para sentenciar o “certo” à menina vítima do estupro. Para todos eles, só havia um certo: por a menina em risco de morte para não ofender suas crenças privadas sobre o aborto.
Um juiz foi convocado. A sentença é original para alguns, pois fala na “vontade da menina”. Sim, uma menina de dez anos tem vontade neste caso: ela chorava ao ouvir que seria obrigada a gestar, a se transformar em mãe. A avó repetia o desespero da menina, mas os covardes se uniram aos fanáticos para questionarem procedimentos judiciais e limites gestacionais da gravidez. Há três situações em que o aborto é autorizado no Brasil, a menina vivia duas delas: foi vítima de estupro e a gravidez traz risco de morte. Não há outras perguntas a serem feitas —é no melhor interesse da criança realizar o aborto. E o quanto antes, e mais certo e justo seria sem estardalhaço público.
Uma menina de dez anos não tem corpo preparado para gestar. Uma gestação é uma alienação de seu corpo, uma extensão do gesto abusador do violador. Mas aos fanáticos não há razoabilidade sobre direitos ou ciência, pois o aborto é questão que atiça as emoções odiosas. Rapidamente se unem, seja para violar o dever de sigilo judicial sobre os direitos da menina, seja para intimidar o médico que cuidou do corpo abusado. Enquanto escrevo, a menina aborta, fanáticos rezam na porta do hospital, agridem o médico que os olha de braços cruzados. Mas o que toca o fanático não é o passado da tortura neste corpo indefeso, mas a crença de que o aborto é uma prática imoral.
Continuo pensando na menina. Agora tenho sua avó, o juiz, o promotor, o médico em meu pensamento. É gente valente que se juntou para enfrentar os fanáticos e proteger a menina anônima. Dezenas de mulheres anônimas chegam ao hospital para recitar em jogral o passado de tortura da menina aos ouvidos dos fanáticos. Mas os fanáticos não descansam, eles se atiçam com a controvérsia. Por isso, é nosso dever nos unir à dor desta menina. Sua tortura não pode ser esquecida. O dia seguinte ao aborto deve ser o dia em que tocaremos mais uma vez à porta do Supremo Tribunal Federal do Brasil para lembrar aos onze ministros que a peregrinação desta menina poderia ter sido evitada se eles tivessem a coragem da justiça para descriminalizar o aborto no país. A hora certa é agora, o instante em que a menina miudinha aborta porque foi violentada por um homem abusador e maltratada por um Estado fanático. A vida das meninas e das mulheres importa.
Fonte: El País Brasil