DOCUMENTO INFORMATIVO DA OXFAM
JANEIRO DE 2017
Chegou a hora de promovermos uma economia humana que beneficie todas as pessoas, não apenas algumas
Novas estimativas indicam que o patrimônio de apenas oito homens é igual ao da metade mais pobre do mundo. Enquanto o crescimento beneficia os mais ricos, o restante da sociedade – especialmente os mais afetados pela pobreza – sofrem. O desenho e a estrutura das nossas economias e os princípios que dão base a decisões econômicas nos levaram a essa situação extrema, insustentável e injusta. Nossa economia precisa parar de recompensar excessivamente os mais ricos e começar a funcionar em prol de todas as pessoas. Governos responsáveis e visionários, empresas que trabalham no interesse de trabalhadores e produtores, valorizando o meio ambiente e os direitos das mulheres, e um sistema robusto de justiça fiscal são elementos fundamentais para essa economia mais humana.
Já se passaram quatro anos desde que o Fórum Econômico Mundial identificou o aumento da desigualdade econômica como uma grande ameaça à estabilidade social1 e três anos desde que o Banco Mundial vinculou seu objetivo de erradicar a pobreza à necessidade de se promover uma prosperidade compartilhada.2 Desde então, e embora lideranças mundiais tenham se comprometido a alcançar um objetivo global de reduzir a desigualdade, o fosso entre os ricos e o restante da sociedade aumentou. Essa situação não pode ser mantida. Como o presidente Obama afirmou no seu discurso de despedida na Assembleia Geral da ONU em setembro de 2016, “um mundo no qual 1% da humanidade controla uma riqueza equivalente à dos demais 99% nunca será estável”.
No entanto, a crise de desigualdade global continua inabalável:
• Desde 2015, o 1% mais rico detinha mais riqueza que o resto do planeta.3
• Atualmente, oito homens detêm a mesma riqueza que a metade mais pobre do mundo.4
• Ao longo dos próximos 20 anos, 500 pessoas passarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – uma soma mais alta que o PIB da Índia, um país que tem 1,2 bilhão de habitantes.5
• A renda dos 10% mais pobres aumentou cerca de US$ 65 entre 1988 e 2011, enquanto a dos 1% mais ricos aumentou cerca de US$ 11.800, ou seja 182 vezes mais. 6
• Um diretor executivo de qualquer empresa do índice FTSE-100 ganha o mesmo em um ano que 10.000 pessoas que trabalham em fábricas de vestuário em Bangladesh.7
• Nos Estados Unidos, uma pesquisa recente realizada pelo economista Thomas Pickety revela que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%.8
• No Vietnã, o homem mais rico do país ganha mais em um dia do que a pessoa mais pobre ganha em dez anos.9
Se nada for feito para combatê-la, a desigualdade crescente pode desintegrar nossas sociedades. Ela aumenta a criminalidade e a insegurança e mina o combate à pobreza.10 Ela gera mais pessoas vivendo com medo do que com esperança.
O resultado do plebiscito Brexit, a vitória de Donald Trump na eleição presidencial nos Estados Unidos, o aumento preocupante do racismo e a desilusão generalizada com a política tradicional indicam cada vez mais que um número crescente de pessoas nos países ricos não está mais disposto a tolerar o status quo. Por que elas deveriam tolerá-lo, já que a experiência indica que a situação atual gera estagnação de salários, empregos precários e um fosso cada vez maior entre ricos e pobres? O desafio é o de construir uma alternativa positiva – e não um modelo que acentua as divisões.
O cenário nos países pobres é complexo na mesma medida e tão preocupante quanto. Centenas de milhões de pessoas foram retiradas da pobreza nas últimas décadas, o que representa uma conquista da qual o mundo deve se orgulhar. No entanto, uma em cada nove pessoas ainda vai dormir com fome11. Se a desigualdade não tivesse aumentado ao longo desse período, outras 700 milhões de pessoas, a maioria mulheres, não estariam vivendo em condições de pobreza atualmente.12 Pesquisas indicam que três quartos da extrema pobreza poderiam ser efetivamente eliminados imediatamente usando recursos já disponíveis, aumentando a tributação e reduzindo gastos militares e outros gastos regressivos.13 O Banco “O fosso entre os pobres e ricos no Quênia é muito humilhante em alguns casos. É terrível ver que nada mais que uma parede separa pessoas ricas das da classe baixa. Vemos alguns de seus filhos dirigindo carros e, quando passam por nós, ficamos coberto de poeira ou, se estiver chovendo, espirram água sobre nós ao passar” Jane Muthoni, membro do grupo Shining Mothers (Mães que Brilham) 3 Mundial deixou claro que, sem redobrar seus esforços para combater a desigualdade, as lideranças mundiais não alcançarão o objetivo de erradicar a extrema pobreza até 2030.14
A situação poderia ser diferente. As reações populares à desigualdade não precisam aumentar as divisões. O relatório Uma economia para os 99% analisa como grandes empresas e pessoas super-ricas estão acirrando a crise da desigualdade e o que pode ser feito para mudar essa situação. Ele considera as falsas premissas que têm nos levado por esse caminho e mostra como podemos criar um mundo mais justo, baseado em uma economia mais humana – uma economia na qual as pessoas, não os lucros, são mais importantes e que prioriza os mais vulneráveis.
AS CAUSAS DA DESIGUALDADE
Não há como negar que os grandes vencedores da nossa economia global são os que estão no topo da distribuição da renda. Pesquisas realizadas pela Oxfam revelam que, nos últimos 25 anos, o 1% mais rico da população mundial teve uma renda mais alta que os 50% mais pobres.15 Longe de escorrer para baixo e beneficiar os mais necessitados, a renda e a riqueza estão sendo sugadas para cima a um ritmo alarmante. O que está gerando essa situação? Empresas e indivíduos super-ricos estão desempenhando papel fundamental nesse sentido.
As empresas trabalhando para os que estão no topo
Grandes empresas se saíram bem em 2015/16: seus lucros são altos e as 10 maiores empresas do mundo tiveram receita superior à de 180 países juntos.16
As empresas constituem a força vital de uma economia de mercado e, quando trabalham em benefício de todos, desempenham papel vital na construção de sociedades justas e prósperas. No entanto, elas estão cada vez mais trabalhando para os ricos e, nesse processo, os benefícios do crescimento econômico são negados aos que mais precisam deles. Nos seus esforços para oferecer retornos elevados aos mais ricos, as empresas pressionam ainda mais seus trabalhadores e fornecedores a acompanhá-las nesse objetivo – e a evitar impostos que beneficiariam a todos, particularmente aos mais afetados pela pobreza.
Arrochando trabalhadores e fornecedores
Enquanto a renda de muitos altos executivos, que são frequentemente remunerados com ações das suas empresas, tem aumentado vertiginosamente, os salários de trabalhadores comuns e a receita de fornecedores têm permanecido praticamente inalterados e, e em alguns casos, até diminuído. O diretor executivo da maior empresa de informática da Índia ganha 416 vezes mais que um funcionário médio da mesma empresa.17 Na década de 1980, produtores de cacau ficavam com 18% do valor de uma barra de chocolate – atualmente, ficam com apenas 6%.18 Em casos extremos, trabalho forçado ou análogo à escravidão pode ser usado para manter os custos corporativos baixos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 21 milhões de pessoas são trabalhadores forçados que geram cerca de US$ 150 bilhões em lucros para empresas anualmente.19 Todas as maiores empresas de vestuário do mundo têm ligação com fábricas de fiação de algodão na Índia que usam trabalho forçado de meninas rotineiramente.20 Os trabalhadores menos remunerados e que trabalham nas condições mais precárias são, predominantemente, mulheres e meninas.21 Em todo o mundo, empresas estão implacavelmente empenhadas em reduzir seus custos com mão de obra – e em garantir que os trabalhadores e fornecedores da sua cadeia de abastecimento fiquem com uma fatia cada vez menor do bolo econômico. Essa situação aumenta a desigualdade e suprime a demanda.
Evasão fiscal
Em parte, as empresas maximizam seus lucros pagando o menos possível em impostos. Elas fazem isso usando paraísos fiscais ou fazendo com que os países concorram uns com os outros na oferta de incentivos e isenções fiscais e de alíquotas tributárias mais baixas. As alíquotas fiscais aplicadas a pessoas jurídicas estão caindo em todo o mundo e esse fato – aliado a uma sonegação fiscal generalizada – permite que muitas empresas paguem o menos possível em impostos. Há relatos de que a Apple pagou apenas 0,005% de imposto sobre seus lucros na Europa em 2014.23 Os países em desenvolvimento perdem US$ 100 bilhões por ano com a sonegação fiscal.24 Os países como um todo perdem mais outros bilhões com a concessão de benefícios e isenções fiscais. As pessoas mais afetadas pela pobreza são as que mais perdem, já que são as mais dependentes dos serviços públicos que esses bilhões não arrecadados poderiam financiar. O Quênia perde US$ 1,1 bilhão por ano em isenções fiscais para empresas: valor quase duas vezes mais alto que o do seu orçamento para a saúde – em um país no qual a probabilidade de mulheres morrerem no parto é de uma em 40.25 O que está impulsionando esse comportamento por parte das empresas? Dois fatores: o enfoque em retornos de curto prazo para seus acionistas e o crescimento do capitalismo da camaradagem .
Super-capitalismo dos acionistas
Em muitas partes do mundo, as empresas estão cada vez mais perseguindo um único objetivo: maximizar os retornos para seus acionistas. Isso implica não apenas maximizar lucros no curto prazo, mas também desembolsar uma parcela cada vez maior desses lucros para seus titulares. No Reino Unido, 10% dos lucros das empresas foram distribuídos aos seus acionistas em 1970; atualmente, esse percentual é de 70%.26 Na Índia, o percentual é mais baixo, mas está crescendo rapidamente e, para muitas empresas, supera 50% atualmente.27 O rápido crescimento do “capitalismo trimestral”, com seu impacto negativo sobre nossas economias, tem sido criticado por muitos, inclusive por Larry Fink, diretor executivo da BlackRock (a maior gestora de ativos do mundo)28 e por Andrew Haldane, economista-chefe do Banco da Inglaterra.29 Um retorno maior para acionistas favorece os ricos, porque a maioria desses acionistas é composta pelas pessoas mais ricas da sociedade, o que aumenta a desigualdade. Investidores institucionais, como fundos de pensão, detêm cada vez menos ações de empresas. Trinta anos atrás, fundos de pensão detinham 30% de todas as ações de empresas no Reino Unido; atualmente, detêm apenas 3% delas.30 Cada dólar de lucro passado aos acionistas de empresas é um dólar que poderia ter sido usado para garantir uma remuneração mais alta a produtores ou trabalhadores, pagar mais impostos ou investir em infraestrutura ou inovação.
Capitalismo da camaradagem
Conforme documentado pela Oxfam no relatório Uma Economia para o 1%,31 empresas que atuam em diversos setores – financeiro, extrativista, do vestuário, dos produtos farmacêuticos e outros – usam seu enorme poder e influência para garantir que regulações e políticas nacionais e internacionais sejam formuladas de maneiras que possibilitem a continuidade dos seus lucros. Por exemplo, empresas petrolíferas como a Shell têm promovido um lobby intenso na Nigéria para evitar aumentos de impostos sobre seus lucros.32 Até mesmo o setor de tecnologia, que costumava ser visto como relativamente íntegro, vem sendo cada vez mais acusado de favorecimento ou nepotismo. A Alphabet, a empresa mãe da Google, tornou-se uma das maiores lobistas em Washington e participa constantemente de negociações em torno de regras antitruste e tributação na Europa.33 O capitalismo da camaradagem beneficia os ricos, pessoas que são titulares e diretores dessas empresas em “Mais e mais líderes empresariais estão priorizando operações que possam gerar retornos imediatos para os acionistas, como recompras ou aumentos de dividendos, ao mesmo tempo em que investem pouco em inovação, em trabalhadores qualificados ou em despesas de capital essenciais para sustentar o crescimento das suas empresas no longo prazo.” 22 Larry Fink, DiretorPresidente da empresa BlackRock 5 detrimento do bem comum e da redução da pobreza. Isso significa que empresas de menor porte precisam lutar para competir e pessoas comuns acabam pagando mais por produtos e serviços controlados por cartéis, pelo poder monopolista de empresas e por pessoas que mantêm estreitas relações com o governo. O terceiro homem mais rico do mundo, Carlos Slim, controla aproximadamente 70% de todos os serviços de telefonia móvel e 65% das linhas fixas do México, custando ao país 2% do PIB.34
O papel dos super-ricos na crise da desigualdade
Sob qualquer ponto de vista, estamos na era dos super-ricos, uma segunda “era dourada” na qual uma fachada enganosa camufla problemas sociais e corrupção. O estudo dos super-ricos realizado pela Oxfam inclui todos os indivíduos com um patrimônio líquido de pelo menos US$ 1 bilhão. Os 1.810 bilionários (em dólares) incluídos na lista da Forbes de 2016, dos quais 89% são homens, possuem um patrimônio de US$ 6,5 trilhões – a mesma riqueza detida pelos 70% mais pobres da humanidade.35 Embora as fortunas de alguns bilionários possam ser atribuídas ao seu trabalho duro e talento, a análise da Oxfam para esse grupo indica que um terço do patrimônio dos bilionários do mundo tem origem em riqueza herdada, enquanto 43% podem ser atribuídos ao favorecimento ou nepotismo.36
Uma vez acumuladas ou adquiridas, fortunas desenvolvem uma dinâmica própria. Os superricos têm dinheiro para gastar com as melhores orientações de investimento e a riqueza detida por eles desde 2009 vem crescendo a uma taxa média de 11% por ano. Investindo em fundos de cobertura ou em depósitos cheios de obras de arte e carros antigos,38 a indústria altamente sigilosa da gestão da riqueza tem sido extremamente bem-sucedida em aumentar a prosperidade dos super-ricos. A fortuna de Bill Gates aumentou 50%, ou seja, em US$ 25 bilhões, desde que ele deixou a Microsoft, em 2006, apesar dos seus louváveis esforços para doar uma boa parte desse patrimônio.39 Se os bilionários continuarem a garantir esses retornos para si, é possível que tenhamos o primeiro trilionário do mundo em 25 anos. Em um ambiente desses, se você já é rico precisa se esforçar muito para não continuar enriquecendo muito mais.
As grandes fortunas detidas pelos que estão no topo do espectro da riqueza e da renda evidenciam claramente a crise de desigualdade. No entanto, os super-ricos não são apenas beneficiários passivos dessa crescente concentração de riqueza. Eles a estão perpetuando ativamente.
Seus investimentos são um dos meios pelos quais isso acontece. Por serem alguns dos maiores acionistas conhecidos (especialmente em fundos de investimentos em ações e de cobertura), os membros mais ricos da sociedade são grandes beneficiários do culto a acionistas que está distorcendo o comportamento das empresas.
O papel dos super-ricos na crise da desigualdade
Sob qualquer ponto de vista, estamos na era dos super-ricos, uma segunda “era dourada” na qual uma fachada enganosa camufla problemas sociais e corrupção. O estudo dos super-ricos realizado pela Oxfam inclui todos os indivíduos com um patrimônio líquido de pelo menos US$ 1 bilhão. Os 1.810 bilionários (em dólares) incluídos na lista da Forbes de 2016, dos quais 89% são homens, possuem um patrimônio de US$ 6,5 trilhões – a mesma riqueza detida pelos 70% mais pobres da humanidade.35 Embora as fortunas de alguns bilionários possam ser atribuídas ao seu trabalho duro e talento, a análise da Oxfam para esse grupo indica que um terço do patrimônio dos bilionários do mundo tem origem em riqueza herdada, enquanto 43% podem ser atribuídos ao favorecimento ou nepotismo.36
Uma vez acumuladas ou adquiridas, fortunas desenvolvem uma dinâmica própria. Os superricos têm dinheiro para gastar com as melhores orientações de investimento e a riqueza detida por eles desde 2009 vem crescendo a uma taxa média de 11% por ano. Investindo em fundos de cobertura ou em depósitos cheios de obras de arte e carros antigos,38 a indústria altamente sigilosa da gestão da riqueza tem sido extremamente bem-sucedida em aumentar a prosperidade dos super-ricos. A fortuna de Bill Gates aumentou 50%, ou seja, em US$ 25 bilhões, desde que ele deixou a Microsoft, em 2006, apesar dos seus louváveis esforços para doar uma boa parte desse patrimônio.39 Se os bilionários continuarem a garantir esses retornos para si, é possível que tenhamos o primeiro trilionário do mundo em 25 anos. Em um ambiente desses, se você já é rico precisa se esforçar muito para não continuar enriquecendo muito mais.
As grandes fortunas detidas pelos que estão no topo do espectro da riqueza e da renda evidenciam claramente a crise de desigualdade. No entanto, os super-ricos não são apenas beneficiários passivos dessa crescente concentração de riqueza. Eles a estão perpetuando ativamente.
Seus investimentos são um dos meios pelos quais isso acontece. Por serem alguns dos maiores acionistas conhecidos (especialmente em fundos de investimentos em ações e de cobertura), os membros mais ricos da sociedade são grandes beneficiários do culto a acionistas que está distorcendo o comportamento das empresas.
Sonegando impostos, comprando políticas Pagar o mínimo possível em impostos é uma estratégia fundamental de muitos dos superricos.41 Para esses fins, eles usam uma rede global secreta de paraísos fiscais ativamente, como revelado pelos chamados Panama Papers e outras fontes. Os países competem para atrair os super-ricos, vendendo sua soberania. Os exilados fiscais super-ricos podem optar por uma ampla gama de destinos mundo afora. Com um investimento de pelo menos 2 milhões de libras, é possível comprar o direito de viver, trabalhar e comprar imóveis no Reino Unido, bem como beneficiar-se de generosas isenções fiscais. Em Malta, um importante paraíso fiscal, é possível comprar uma cidadania plena por US$ 650.000. Gabriel Zucman estimou que uma riqueza de US$ 7,6 trilhões está escondida em paraísos fiscais offshore. 42 Só a África perde, todos os anos, US$ 14 bilhões em receitas fiscais em decorrência do uso de paraísos fiscais por parte dos super-ricos – segundo cálculos da Oxfam, esse valor seria suficiente para prestar uma assistência de saúde que poderia salvar a vida de quatro milhões de crianças e empregar um número suficiente de professores para colocar todas as crianças africanas na escola. As alíquotas fiscais aplicadas à riqueza e às rendas mais altas continuam a cair em todo o mundo rico. Nos Estados Unidos, a alíquota mais alta do imposto de renda era de 70% até a década de 1980; atualmente, ela não passa de 40%.43 Nos países em desenvolvimento, a tributação aplicada aos ricos é ainda mais baixa: pesquisas realizadas pela Oxfam revelam que a alíquota máxima média é de 30% sobre a renda e que, na maioria dos casos, ela nunca é efetivamente aplicada.44
Muitos dos super-ricos também usam seu poder, influência e relações para influenciar círculos políticos e garantir que as regras os favoreçam. Os bilionários do Brasil fazem lobby para reduzir impostos45 e, em São Paulo, eles preferem ir de helicóptero para o trabalho, evitando os engarrafamentos e problemas infraestruturais enfrentados nas ruas e avenidas da cidade.46 Alguns dos super-ricos também usam suas fortunas para ajudar a comprar os resultados políticos que desejam, influenciando eleições e a formulação de políticas públicas. Os irmãos Koch, duas das oito pessoas mais ricas do mundo, têm exercido uma enorme influência sobre políticos conservadores nos Estados Unidos, apoiando muitos centros de estudos e o movimento Tea Party,47 além de contribuírem intensamente para desacreditar argumentos em apoio à necessidade de ações diante do fenômeno das mudanças climáticas. Essa influência política ativa dos super-ricos e de seus representantes impulsiona diretamente uma desigualdade maior ao construir “circuitos de realimentação de reforço”, que permitem aos vencedores do jogo obterem mais recursos para se saírem ainda melhor em um ciclo seguinte.48
AS FALSAS PREMISSAS QUE IMPULSIONAM A ECONOMIA DO 1%
A atual economia do 1% baseia-se em uma série de falsas premissas que fundamentam muitas das políticas, investimentos e atividades de governos, empresas e indivíduos ricos, e que não satisfazem as necessidades de pessoas em situação de pobreza e da sociedade de uma maneira geral. Algumas dessas premissas dizem respeito à economia em si, outras referem-se mais à visão dominante da economia descrita por seus criadores como “neoliberalismo” – que pressupõe, erroneamente, que a riqueza criada no topo “escorrerá para baixo” para todas as demais pessoas. O FMI identificou o neoliberalismo como uma causa fundamental da desigualdade crescente.50 A menos que desmistifiquemos essas falsas premissas, não conseguiremos reverter a situação:
1. Falsa premissa 1: O mercado está sempre certo e o papel dos governos deve ser minimizado. Na verdade, não se confirmou que o mercado é o melhor meio de organização e valorização de grande parte da nossa vida em comum ou a melhor base para a definição do nosso futuro comum. Vimos como a corrupção e o favorecimento ou nepotismo distorcem os mercados em detrimento de pessoas comuns e como o crescimento excessivo do setor financeiro exacerba a desigualdade. Temos exemplos práticos de como a privatização de serviços públicos, como de saúde, educação ou abastecimento de água, exclui os pobres, particularmente mulheres pobres.
2. Falsa premissa 2: As empresas precisam maximizar seus lucros e retornos para acionistas a todo custo. A maximização dos lucros aumenta desproporcionalmente a renda dos que já são ricos, gerando pressões desnecessárias para trabalhadores, agricultores, consumidores, fornecedores, comunidades e o meio ambiente. Há, por outro lado, muitas maneiras mais construtivas de se organizar empresas que contribuem para promover mais prosperidade para todos e temos muitos exemplos desse fato na atualidade.
3. Falsa premissa 3: A riqueza individual extrema é benéfica e um sinal de sucesso, e a desigualdade não é relevante. Na verdade, o surgimento de uma nova era dourada, caracterizada pela concentração de grandes fortunas nas mãos de poucos, em sua maioria homens, é economicamente ineficiente, politicamente corrosivo e prejudicial para o nosso progresso coletivo. É necessário que tenhamos uma distribuição mais equitativa da riqueza.
4. Falsa premissa 4: O crescimento do PIB deve ser o principal objetivo da formulação de políticas. Na verdade, como Robert Kennedy afirmou em 1968, “o PIB mede tudo, exceto o que faz a vida valer a pena”. O cálculo do PIB não computa o trabalho não remunerado realizado por uma enorme quantidade de mulheres em todo o mundo. Ele não leva em consideração a desigualdade, que fica evidente em um país como a Zâmbia, cujo PIB está crescendo a taxas elevadas em um momento no qual o número de pessoas em situação de pobreza no país efetivamente aumentou.
5. Falsa premissa 5: Nosso modelo econômico é neutro em relação ao gênero. Na verdade, cortes nos serviços públicos, na segurança no emprego e em direitos trabalhistas afetam mais as mulheres. Um número desproporcionalmente mais alto de mulheres ocupa empregos menos seguros e mais mal remunerados e elas também ficam responsáveis pela maior parte do trabalho não remunerado de cuidar de filhos e de outras pessoas no lar – que não é contabilizado no PIB, mas sem o qual nossas economias não funcionariam.
6. Falsa premissa 6: Os recursos do nosso planeta são ilimitados. Além de falsa, essa premissa pode ter consequências catastróficas para o nosso planeta. Nosso modelo econômico baseia-se na exploração do nosso meio ambiente e na desconsideração dos limites do que o nosso planeta pode suportar. É um sistema econômico que colabora intensamente para a ocorrência de mudanças climáticas descontroladas.
Essas seis premissas precisam ser desmistificadas rapidamente. Elas são desatualizadas, retrógradas e não conseguiram gerar um ambiente de prosperidade e estabilidade compartilhadas. Elas estão nos empurrando para o abismo. É urgentemente necessário que adotemos uma forma alternativa de administrar nossa economia – para que tenhamos uma “economia humana”.
UM ECONOMIA HUMANA PARA OS 99%
Precisamos, juntos, criar um novo senso comum, dar uma reviravolta e desenhar uma economia cujo objetivo principal seja o de beneficiar os 99%, não o 1%. O grupo que mais deve ser beneficiado pelas nossas economias é o das pessoas em situação de pobreza, seja em Uganda ou nos Estados Unidos. A humanidade tem um talento inacreditável, uma riqueza enorme e uma imaginação infinita. Precisamos fazer com que esses elementos operem no sentido de criar uma economia mais humana que beneficie a todos, não apenas uns poucos privilegiados.
Uma economia humana criaria sociedades mais justas, melhores. Ela garantiria empregos seguros que pagam salários decentes. Ela garantiria o mesmo tratamento a homens e mulheres. Ninguém viveria constantemente com medo do custo de ficar doente. Todas as crianças teriam a oportunidade de desenvolver seu potencial. Nossa economia prosperaria dentro dos limites do nosso planeta e garantiria um mundo melhor e mais sustentável para cada nova geração.
Os mercados são um motor essencial para o crescimento e a prosperidade, mas não podemos continuar aceitando a falsa alegação de que o motor é que dirige o carro ou decide qual é a melhor direção a ser tomada. Os mercados devem ser cuidadosamente administrados no interesse de todos para que os resultados do crescimento sejam distribuídos em bases justas e garantam uma resposta adequada às mudanças climáticas ou serviços de saúde e educação para muitos – principalmente, mas não exclusivamente, nos países mais pobres.
Uma economia humana teria alguns ingredientes fundamentais concebidos para eliminar os problemas que contribuíram para a crise de desigualdade que enfrentamos atualmente. Embora apenas comece a delinear alguns desses ingredientes, este relatório apresenta uma base sólida para a construção de um futuro melhor.
Em uma economia humana:
1. Os governos trabalharão para os 99%. Um governo responsável constitui a maior arma contra a desigualdade extrema e a chave para uma economia humana. Os governos devem escutar a todos, não apenas a uma minoria rica e seus lobistas. Precisamos revitalizar o espaço cívico, especialmente para que as vozes das mulheres e de grupos excluídos sejam ouvidas. Quanto mais responsáveis nossos governos, mais justas nossas sociedades serão.
2. Os governos cooperarão, ao invés de apenas competir. A globalização não pode continuar a promover uma corrida implacável para baixo em relação a direitos trabalhistas e fiscais, que só beneficia os mais ricos. Precisamos pôr fim à era dos paraísos fiscais de uma vez por todas. Os países devem cooperar uns com os outros, em bases iguais, no sentido de construir um novo consenso mundial e um ciclo virtuoso que garanta que empresas e pessoas ricas paguem impostos justos, que o meio ambiente seja protegido e que os trabalhadores sejam bem remunerados.
3. As empresas trabalharão em benefício de todos. Os governos devem apoiar modelos de negócios que impulsionem claramente um tipo de capitalismo que beneficie a todos e apoie um futuro sustentável. O produto da atividade empresarial deve beneficiar os que o possibilitaram e criaram – a sociedade, os trabalhadores e comunidades locais. É preciso dar um basta ao lobby empresarial e à compra da democracia. Os governos devem tomar as medidas necessárias para garantir que as empresas paguem salários e impostos justos e assumam a responsabilidade por seu impacto sobre o planeta.
4. A extrema riqueza será eliminada para que a extrema pobreza possa ser erradicada. A era dourada dos dias atuais está minando o nosso futuro e precisa ser encerrada. Medidas precisam ser tomadas no sentido de que os mais ricos contribuam para a sociedade em bases justas e não continuem a usufruir de privilégios injustos sem que nada seja feito a respeito. Para esse fim, a tributação aplicada aos ricos deve ser justa: precisamos aumentar os impostos sobre a riqueza e grandes rendas para garantir condições mais iguais para todos e reprimir com vigor a sonegação fiscal por parte dos super-ricos.
5. A economia operará em favor de homens e mulheres igualmente. A igualdade de gênero estará no centro da economia humana, garantindo que as duas metades da humanidade tenham as mesmas oportunidades na vida e condições de ter uma vida gratificante. Barreiras que impedem o avanço das mulheres, negando-lhes acesso a serviços de educação e saúde, por exemplo, serão eliminadas para sempre. As normas sociais deixarão de determinar o papel da mulher na sociedade e, particularmente, seu trabalho não remunerado de cuidar de crianças e outras pessoas no lar será reconhecido, reduzido e redistribuído.
6. A tecnologia será colocada a serviço dos 99%. Novas tecnologias têm um enorme potencial de transformar nossas vidas para melhor. Isso só acontecerá com a intervenção ativa dos governos, especialmente no controle das tecnologias. Pesquisas governamentais já estão impulsionando algumas das maiores inovações da atualidade (inclusive o telefone 9 inteligente, ou smartphone). Os governos devem intervir no sentido de garantir que a tecnologia contribua para reduzir a desigualdade, não para aumentá-la.
7. A economia será movida por energias renováveis sustentáveis. Combustíveis fósseis têm impulsionado o crescimento econômico desde a era da industrialização, mas eles são incompatíveis com uma economia que efetivamente prioriza as necessidades da maioria. A poluição do ar provocada pela queima de carvão causa milhões de mortes prematuras em todo o mundo, enquanto a devastação causada pelas mudanças climáticas afeta mais intensamente os mais pobres e mais vulneráveis. Energias renováveis sustentáveis podem garantir o acesso universal à energia e promover o crescimento do setor energético respeitando os limites do nosso planeta.
8. O que realmente importa será valorizado e mensurado. Além do PIB, precisamos mensurar o progresso humano com base nas diversas medidas alternativas disponíveis. Essas novas medidas devem levar plenamente em consideração o trabalho não remunerado das mulheres em todo mundo. Elas devem refletir não apenas a escala da atividade econômica, mas também como a renda e a riqueza são distribuídas. Elas devem estar estreitamente relacionadas à sustentabilidade e ajudar a construir um mundo melhor na atualidade e para gerações futuras. Isso nos permitirá aferir o verdadeiro progresso das nossas sociedades.
Podemos e precisamos construir uma economia humana antes que seja tarde demais.
1 UMA ERA DE CRESCIMENTO ECONÔMICO DEFINIDO PELA DESIGUALDADE E PELA EXCLUSIVIDADE
UM MUNDO ONDE 1% DA HUMANIDADE CONTROLA O MESMO VOLUME DE RIQUEZA QUE OS DEMAIS 99% NUNCA SERÁ ESTÁVEL
No seu discurso de abertura da Assembleia Geral da ONU em setembro de 2016, o presidente Obama afirmou que “um mundo no qual 1% da humanidade controla o mesmo volume de riqueza que os demais 99% nunca será estável”.53 Posteriormente naquele mesmo mês, o relatório inaugural do Banco Mundial sobre pobreza e prosperidade compartilhadas revelou que os níveis de desigualdade dentro dos países estão mais altos que há 25 anos e alertou que “a redução da desigualdade será essencial para que o objetivo [de Desenvolvimento Sustentável] seja alcançado até 2030”.54 Pesquisadores do FMI advertiram que a desigualdade prejudica o crescimento55 e exacerba as barreiras e injustiças enfrentadas por pessoas que sofrem discriminação e exclusão em decorrência do seu gênero, etnia ou geografia.56 A lista das consequências sociais e políticas da desigualdade extrema é longa.57 A experiência das pessoas de serem deixadas para trás e excluídas da prosperidade desfrutada por poucos foi descrita por muitos comentaristas como o fator que levou a maioria dos eleitores britânicos a optar por rejeitar a participação do país na União Europeia em junho de 201658 e determinou o sucesso da campanha de Donald Trump nos Estados Unidos.59
Lideranças mundiais já se comprometeram a alcançar os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável, que se aplicam a todos os países, independentemente do seu estágio de desenvolvimento. Eles incluem o objetivo 10 de “reduzir as desigualdades entre os países e dentro deles”. Esse compromisso, juntamente com o amplo reconhecimento do problema da desigualdade, é bem-vindo, mas as medidas tomadas até o presente momento para alcançá- lo têm sido amplamente inadequadas. A busca exclusiva e prioritária pelo crescimento do PIB e lucros privados continua a determinar agendas globais e nacionais e muitas agendas empresariais, que incluem algumas advertências contra qualquer tentativa de desvio desses objetivos com base em preocupações relacionadas à desigualdade.60 Por essa razão, continuamos vendo políticas enraizadas em objetivos inadequados e equivocados que se tornaram fins em si mesmos – almejados de maneiras que podem aprofundar a desigualdade – e não um meio de garantir o desenvolvimento e o bem-estar humanos sustentáveis
Este relatório questiona os objetivos gerais e os conhecimentos herdados que dão base a decisões econômicas – e apresenta uma alternativa mais justa e sustentável para as nossas sociedades.
A escala da crise de desigualdade exige mais do que alguns ajustes em políticas ou uma resposta simbólica. É imperativo que aproveitemos esta oportunidade para garantir um amplo reconhecimento do problema e para tomar medidas robustas para enfrentá-lo.
A CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA SE APROFUNDA
A riqueza global total61 alcançou a impressionante soma de US$ 255 trilhões. Desde 2015, mais da metade dessa riqueza tem ficado nas mãos do 1% mais rico da população mundial. No topo da distribuição, os dados para este ano indicam que, coletivamente, os oito indivíduos mais ricos do mundo detêm uma riqueza líquida de US$ 426 bilhões, valor equivalente à riqueza líquida da metade mais pobre da humanidade.62
A riqueza continua a se acumular nas mãos dos ricos. As taxas de retorno para os donos do capital têm invariavelmente superado as do crescimento econômico nas últimas três décadas.63 Relatórios anteriores da Oxfam revelaram como essa riqueza extrema e crescente concentrada nas mãos de poucos se traduz em poder e influência indevidos sobre políticas e instituições.64
Enquanto isso, a acumulação de ativos modestos, principalmente de ativos agrícolas, como terras e gado, constitui um dos meios mais importantes para se escapar da pobreza.65 A riqueza é fundamental para que pessoas em situação de pobreza possam fazer frente a imprevistos financeiros, como uma conta médica. No entanto, estimativas do banco Credit Suisse indicam que os 50% mais pobres da população mundial detêm menos de 0,25% da riqueza global líquida.66 Nove por cento das pessoas desse grupo detêm uma riqueza negativa e a maioria delas vive em países mais ricos, nos quais empréstimos para estudantes e outras facilidades de crédito estão disponíveis. No entanto, ainda que descontássemos as dívidas dos que vivem em situação de pobreza na Europa e na América do Norte, a riqueza total dos 50% mais pobres da população mundial seria inferior a 1%
Ao contrário da extrema riqueza dos mais ricos, que pode ser observada e documentada com base em diversas listas de pessoas abastadas, temos muito menos informação sobre a riqueza dos que estão na base da distribuição. Sabemos, no entanto, que a principal fonte de riqueza de muitas pessoas em situação de pobreza em todo o mundo está se deteriorando67 – a saber, terras, recursos naturais e lares – em decorrência de direitos precários sobre a terra, da grilagem de terras, da fragmentação e erosão de terras, das mudanças climáticas, do despejo de moradores de áreas urbanas e do deslocamento forçado. Embora a superfície agrícola total tenha aumentado em todo o mundo,68 pequenos estabelecimentos agrícolas familiares estão explorando uma parcela cada vez menor dessas terras. A propriedade de terras do quintil mais pobre caiu em 7,3% entre as décadas de 1990 e 2000.69 As mudanças observadas na propriedade da terra nos países em desenvolvimento são geralmente impulsionadas por aquisições em grande escala, que transferem terras de pequenos agricultores para grandes investidores e convertem seu uso de meio de subsistência para fins comerciais.70 Até 59% das transações em torno de terras abrangem áreas comunais reivindicadas por povos indígenas e pequenas comunidades, cuja venda ou arrendamento pode gerar deslocamento de milhões de pessoas.71 No entanto, apenas 14% das transações envolveram um processo adequado para se obter “consentimento prévio e informado” das partes afetadas.72 A distribuição de terras é mais desigual na América Latina, onde 64% de toda a riqueza estão relacionados a ativos não financeiros, como terra e moradia,73 e 1% das “superfazendas” da América Latina controlam atualmente mais terras produtivas do que as demais 99%.74
QUADRO 1: Cálculos da Oxfam sobre desigualdade de riqueza
Em janeiro de 2014, a Oxfam estimou que apenas 85 pessoas detinham o mesmo volume de riqueza que a metade mais pobre da humanidade. Esse cálculo baseou-se em dados sobre a riqueza líquida dos indivíduos mais ricos listados pela revista Forbes e em dados sobre a distribuição da riqueza global estimados pelo banco Credit Suisse. Temos acompanhado essas fontes de dados nos últimos três anos para detectar a tendência nessa área ao longo do tempo. Segundo o relatório elaborado pelo banco Credit Suisse em outubro de 2015, o 1% mais rico do mundo detinha o mesmo volume de riqueza que os demais 99% naquela altura75.
Neste ano, verificamos que a riqueza dos 50% mais pobres da população mundial era mais baixa do que estimado anteriormente, já que apenas oito indivíduos detêm a mesma riqueza que eles. Todos os anos, o banco Credit Suisse adquire novas e melhores fontes de dados com base nas quais estima a distribuição global da riqueza: seu relatório mais recente revela que o grupo dos mais pobres acumula mais dívidas e que os percentis de 30 a 50% da população global detêm menos ativos. No ano passado, estimou-se que a parcela acumulada de riqueza dos 50 % mais pobres era de 0,7%, enquanto neste ano essa mesma parcela foi estimada em 0,2%.
A desigualdade de riqueza que esses cálculos ilustram tem atraído muita atenção para o nível obsceno de desigualdade que expõem e para os próprios dados e cálculos. Dois desafios comuns são mencionados. Em primeiro lugar, que as pessoas mais afetadas pela pobreza têm dívidas líquidas, mas que elas podem se tornar ricas em termos de renda graças a mercados de crédito que funcionam bem (imagine um graduado da Universidade de Harvard endividado). No entanto, em termos de população, esse grupo é insignificante no nível global agregado, já que 70% das pessoas enquadradas no grupo das 50% mais pobres do mundo vivem em países de baixa renda. A dívida líquida total das pessoas mais afetadas pela pobreza também é responsável por apenas 0,4 % da riqueza global geral, ou US$ 1,1 trilhão. Se ignorarmos a dívida líquida, a riqueza dos 50% mais pobres é de US$ 1,5 trilhão. Ainda assim, apenas 56 dos indivíduos mais ricos do mundo detêm uma riqueza equivalente à desse grupo.
O segundo desafio é que mudanças na riqueza líquida ao longo do tempo podem ser decorrentes de flutuações cambiais, que não fazem muita diferença para pessoas que desejam usar sua riqueza internamente. Como o relatório do Credit Suisse é feito em dólares americanos, as riquezas detidas em outras moedas também precisam ser convertidas em dólares. Na verdade, a riqueza do Reino Unido caiu em US$ 1,5 trilhão ao longo do ano passado devido à queda da libra esterlina. No entanto, as flutuações cambiais não explicam a desigualdade de riqueza persistente no longo prazo revelada pelo Credit Suisse (usando taxas de câmbio correntes): os 50% mais pobres nunca detiveram mais de 1,5% da riqueza total desde 2000, e o 1% mais rico nunca deteve menos de 46% dela. Considerando a importância do capital comercializado globalmente nos estoques da riqueza total, as taxas de câmbio continuam a ser uma medida adequada para se converter moedas.
Em última análise, a Oxfam acredita que é importante analisar a distribuição da riqueza, particularmente da riqueza detida pelas pessoas mais vulneráveis – é preciso que dados de pesquisas de boa qualidade e facilmente comparáveis sejam sistematicamente coletados para mensurar a riqueza total detida por famílias pobres e dentro delas.
O COMBATE À EXTREMA POBREZA DE RENDA EXIGE UM MODELO DE CRESCIMENTO MAIS INCLUSIVO
Centenas de milhões de pessoas foram retiradas da pobreza nas últimas décadas, o que representa uma conquista da qual o mundo deve se orgulhar. No entanto, uma em cada nove pessoas ainda dorme com fome77. Se o crescimento tivesse sido mais favorável aos pobres entre 1990 e 2000, outras 700 milhões de pessoas, a maioria das quais mulheres, teriam sido retiradas da pobreza ao longo desse período.78 O PIB da economia global mais do que duplicou nos últimos 30 anos, com aumento em todos os níveis de renda, resultando em uma queda correspondente nas taxas de extrema pobreza em todo o mundo. Como ilustrado pela linha laranja da Figura 1 a seguir, a renda real de todos os grupos de renda apresentou um crescimento positivo entre 1988 e 2011, particularmente para quem está no meio da distribuição da renda global. A menor taxa de crescimento foi registrada para o grupo de renda mais alta: esse é um resultado direto do período de 2008 a 2011, quando os efeitos da crise financeira mundial afetaram particularmente países de alta renda. Devido a esse efeito de 2008-2011, o formato do gráfico representa uma versão moderada do famoso “gráfico do elefante”,79 que chamou muita atenção por destacar os grupos cuja renda mais aumentou nas últimas três décadas: os que estão no meio e no topo da distribuição da renda.
A diferença registrada entre o crescimento absoluto da renda dos diferentes decis é, no entanto, altamente desigual – muito mais do que as simples taxas de crescimento sugeririam – mesmo após levar-se em consideração o choque econômico sobre as rendas após 2008, como revela a linha azul da Figura 1. A renda dos 10% mais pobres aumentou em US$ 65 entre 1988 e 2011, o equivalente a menos de US$ 3 adicionais por ano, enquanto a renda dos 1% mais ricos aumentou 182 vezes mais que a dos pobres, em mais de US$ 11.800. Pesquisas da Oxfam revelaram que, ao longo dos últimos 25 anos, o 1% mais rico teve um aumento de renda superior ao registrado para os 50% mais pobres juntos e que quase metade (46%) do aumento total da renda beneficiou os 10% mais ricos.80 Isso é importante porque os 10% mais pobres da população mundial ainda vivem abaixo da linha de extrema pobreza, definida em US$ 1,90 por dia atualmente,81 e o Banco Mundial projetou que, mantida a atual distribuição de renda, não conseguiremos alcançar a meta global de erradicação da pobreza até 2030. Mesmo esta meta é modesta, já que as linhas nacionais de pobreza dos próprios países estão, na verdade, acima de US$ 1,90 por dia. Cerca de três bilhões de pessoas, ou metade da população mundial, vivem abaixo da “linha ética de pobreza”, definida pelo valor por dia que permitiria que as pessoas tivessem uma expectativa de vida normal de pouco mais de 70 anos.82
O crescimento distorcido da renda (e, com ele, o aumento da desigualdade de renda) tem sido gerado pelas tendências registradas nos mercados de trabalho de muitos países, tanto ricos como pobres. A renda total é composta pela renda do trabalho de trabalhadores e retornos sobre capital auferidos por detentores de capital. Em todo o mundo, verificamos que os trabalhadores têm ficando com uma fatia menor do bolo, enquanto os donos do capital têm prosperando.83 Mesmo na China, país onde os salários praticamente triplicaram ao longo da década passada, a renda total, impulsionada por elevados retornos sobre capital, aumentou a taxas ainda mais aceleradas. O aumento da participação do capital é uma recompensa quase que exclusivamente desfrutada pelos que estão no topo da distribuição de renda, já que os mais ricos detêm uma parcela desproporcionalmente maior dele.84 Nos Estados Unidos, uma pesquisa recente realizada pelo economista Thomas Pickety revela que, nos últimos 30 anos, a renda dos 50% mais pobres permaneceu inalterada, enquanto a do 1% mais rico aumentou 300%.85 Fica óbvio que o crescimento global tem sido claramente exclusivo, algo predominantemente desfrutado por poucos privilegiados.
As crescentes diferenças salariais
No mundo do trabalho, as disparidades salariais têm aumentado. Os salários pagos particularmente em setores de baixa qualificação estão ficando cada vez mais baixos em relação à produtividade nas economias emergentes e se estagnando em muitos países ricos, enquanto os salários dos mais ricos continua a crescer.86 Um diretor executivo de uma empresa do índice FTSE-100 ganha o mesmo em um ano que 10.000 pessoas que trabalham em fábricas de vestuário em Bangladesh.87 O diretor executivo da maior empresa de informática da Índia ganha 416 vezes mais que um funcionário médio da mesma empresa.88 Nas economias de países desenvolvidos, a crescente desigualdade salarial tem sido o maior impulsionador da desigualdade de renda,89,90 enquanto entre países nos quais a desigualdade tem diminuído essa tendência foi, em muitos casos, alimentada por um forte crescimento dos salários reais pagos aos mais pobres. No caso do Brasil, os salários reais dos 10% mais pobres da população aumentaram mais que os pagos aos 10% mais ricos entre 2001 e 2012,91 graças à adoção de políticas progressistas de reajustes do salário mínimo.92 Em muitos países em desenvolvimento nos quais as disparidades salariais estão crescendo, a diferença de remuneração entre trabalhadores com diferentes habilidades e níveis de formação é um grande impulsionador da desigualdade. A renda de trabalhadores altamente qualificados e com um nível educacional mais elevado está aumentando, enquanto os salários de trabalhadores de baixa qualificação estão caindo. Essa lacuna é responsável por 25% a 35% da desigualdade de renda observada na Ásia.93
O arrocho de empregos e de salário para trabalhadores de remuneração mais baixa força pessoas a aceitarem empregos precários com salários de pobreza. Trabalhadores assalariados ganhavam apenas US$ 73 por mês no Nepal em 2008, enquanto no Paquistão o salário de trabalhadores da mesma categoria era de US$ 119 (2013) e no Camboja de US$ 121 (2012). Devido aos seus baixos níveis salariais, estes dois países também estão entre os que registram o maior número de trabalhadores pobres em todo o mundo.94 Em muitos países, mesmo o salário mínimo legal não é suficiente para uma pessoa manter um padrão de vida decente. O salário mínimo de trabalhadores em plantações de banana na República Dominicana corresponde a apenas 40% de um salário suficiente para a sua subsistência. Em Bangladesh, ele cobre algo mais perto de 20% do que seria necessário para uma pessoa ter uma vida decente.95 Mulheres e jovens são particularmente mais vulneráveis ao trabalho precário: as atividades profissionais de dois em cada três jovens trabalhadores na maioria dos países de baixa renda consistem em trabalho vulnerável por conta própria ou trabalho familiar não remunerado.96 Nos países da OCDE, cerca de metade de todos os trabalhadores temporários tem menos de 30 anos de idade e quase 40% dos jovens trabalhadores estão 15 envolvidos em atividades profissionais fora do padrão, como em trabalho por empreitada ou temporário ou empregos involuntários em tempo parcial.97
A redução do poder de barganha dos trabalhadores em negociações coletivas Mudanças na estrutura do mercado de trabalho e a consequente perda de poder de barganha dos trabalhadores em negociações coletivas pioram ainda mais a situação. Diversos fatores reduziram o percentual de trabalhadores filiados a sindicatos e o FMI identificou, em economias avançadas, uma relação entre essa queda e a participação crescente dos 10% mais ricos na distribuição da renda.98 99 Na Dinamarca, um empregado que prepara hambúrgueres na Burger King ganha US$ 20 por hora, com base nos termos de um acordo coletivo, enquanto um funcionário da mesma empresa nos Estados Unidos, que não tem a mesma oportunidade de participar de negociações coletivas que o seu colega dinamarquês, ganha apenas US$ 8,90.100 Nos países desenvolvidos, o aumento observado no número de trabalhadores independentes envolvidos na chamada economia freelance, que são contratados para tarefas definidas em vez de serem empregados, expõe os trabalhadores a condições financeiras mais precárias. A histórica decisão tomada contra o Uber no Reino Unido em outubro de 2016, baseada na insistência de que seus motoristas deveriam ganhar um salário mínimo e ter direito a férias remuneradas, representou, em alguma medida, um avanço no reconhecimento dos direitos dos trabalhadores desse setor em expansão.101 O setor informal continua sendo uma das mais importantes fontes de renda, principalmente para mulheres, em países de baixa renda,102 nos quais os trabalhadores não têm direito a um salário mínimo ou não gozam de direitos trabalhistas e, portanto, são vulneráveis a abusos.
As mulheres continuam a ser as mais prejudicadas
Há grandes diferenças de gênero entre os vencedores e perdedores da crescente lacuna de renda, já que as mulheres tendem a concentrar-se na metade inferior da distribuição de renda. Mundialmente, a probabilidade de mulheres participarem do mercado de trabalho remunerado é menor que a dos homens. No mundo todo, as chances de mulheres participarem do mercado de trabalho permanecem quase 27 pontos percentuais abaixo das observadas para os homens.104 No Oriente Médio e no Norte da África, somente um quarto das mulheres participa da força de trabalho e, no Sul da Ásia, apenas um terço, contra três quartos dos homens nessas regiões.105 Quando entram no mercado de trabalho, a probabilidade de mulheres não serem protegidas por uma legislação trabalhista é maior que a dos homens.106 Em empregos formais, é comum as mulheres ganharem menos que os homens. A edição de 2016 do relatório anual do Fórum Econômico Mundial sobre a lacuna de gênero revela que a participação econômica de mulheres ficou ainda mais baixa no ano passado e estima que serão necessários 170 anos para que as mulheres recebam salários equivalentes aos dos homens.107 Essa situação se deve, em parte, à discriminação pura e simples, já que as mulheres recebem salários mais baixos por trabalho igual de igual valor, mas deve-se também ao fato de as mulheres concentrarem-se em empregos de menor remuneração e em tempo parcial. As mulheres ganham de 31 a 75% menos do que os homens devido à lacuna de remuneração e a outras desigualdades econômicas, como à sua falta de acesso a proteção social, que se acumulam e as deixam em situações bem piores ao longo da vida.108 Como mostrado na Tabela 2, mesmo em economias avançadas, nas quais as disparidades em termos de escolaridade já foram, em grande parte, eliminadas, os homens continuam a dominar os grupos de renda alta, enquanto as mulheres continuam a assumir uma parcela bem maior do trabalho não remunerado no lar.
Essas tendências no sentido de uma crescente desigualdade de riqueza e renda estão ficando cada vez mais enraizadas nas nossas economias. Empresas e indivíduos super-ricos estão contribuindo muito para impulsionar essas disparidades.
2 OS MOTORES DO CRESCIMENTO EXCLUSIVO COMO AS EMPRESAS ACIRRAM A CRISE DA DESIGUALDADE
Nunca empresas foram tão grandes como atualmente. Em termos de receitas, 69 das 100 maiores entidades do mundo são empresas109 – não países. A receita combinada das dez maiores empresas do mundo – uma lista que inclui a Wal-Mart, a Shell e a Apple – é mais alta que a de 180 países do mundo (lista que inclui Irlanda, Indonésia, Israel, Colômbia, Grécia, África do Sul, Iraque e Vietnã).110 A receita, ou faturamento, dessas gigantescas empresas nos dá uma ideia da escala das suas atividades e da sua capacidade de gerar lucros com enorme sucesso. As dez empresas mais lucrativas dos Estados Unidos tiveram, juntas, lucros de US$ 226 bilhões em 2015, ou de US$ 30 para cada pessoa no planeta.111
As empresas são atores fundamentais em uma economia de mercado e, quando trabalham em benefício de todos, podem desempenhar um papel crucial na construção de sociedades justas e prósperas. No entanto, as recompensas geradas pelas empresas não são compartilhadas; na verdade, elas estão cada vez mais beneficiando, predominantemente, os ricos. A crescente pressão pela redução de custos e pela geração de lucros para os titulares e diretores dessas empresas, bem como a ascensão do capitalismo de camaradagem, está gerando um fosso cada vez maior entre os ricos e os demais habitantes do planeta.
Arrocho salarial para os menos favorecidos No curto prazo, as empresas geram lucros mantendo suas margens altas, ou seja, minimizando os custos de insumos como mão de obra. A Apple tem sido particularmente bem-sucedida nesse ponto, já que, como mostrado na Figura 2, quase três quartos das receitas provenientes das vendas do seu iPhone em 2010 constituíram lucros.
O arrocho salarial impulsiona a desigualdade e implica grandes custos humanos. A Apple acumula inúmeras denúncias de trabalhadores exauridos, que são forçados a trabalhar em turnos de 12 horas por dia em condições extremamente precárias na China para produzir iPhones e iPads.113 Há provas concretas de que os salários de trabalhadores de baixa remuneração em todo o mundo continuam a ser arrochados, particularmente em cadeias globais de abastecimento nas quais fornecedores competem para oferecer os preços mais baixos possíveis ao consumidor. As mulheres são as mais prejudicadas, já que a probabilidade de trabalharem em empregos precários e de baixa remuneração é maior. Na década de 1980, os produtores de cacau ficavam com 18% do valor de uma barra de chocolate; atualmente, eles ficam com 6%.114 Relatórios recentes da Oxfam revelam que salários de pobreza estão sendo pagos em Malaui, Vietnã e Quênia por empresas fornecedoras de algumas das empresas mais rentáveis do Reino Unido. Calculamos que seria possível dobrar os salários dos trabalhadores quenianos do setor da floricultura se apenas 5 centavos de libra esterlina fossem acrescentados ao preço de 4 libras cobrado por um buquê de rosas.115 Em casos extremos, o trabalho forçado, também conhecido como escravidão moderna, pode ser usado para manter os custos das empresas baixos, com imensuráveis custos humanos. A Organização Internacional do Trabalho (OIT) estima que 21 milhões de pessoas sejam vítimas de trabalho forçado para gerar cerca de US$ 150 bilhões em lucros todos os anos.116 Há evidências de trabalho forçado em diversos setores, como no algodoeiro do Uzbequistão117 e em fazendas de camarão na Tailândia. Todas as maiores empresas de vestuário do mundo foram vinculadas a fábricas de fiação de algodão da Índia que usam o trabalho forçado de meninas rotineiramente118. Enquanto isso, o fosso entre os trabalhadores mais mal remunerados e os mais altos executivos cresce cada vez mais.119 Os dividendos anuais pagos pela empresa-mãe da Zara a Amancio Ortega – o segundo homem mais rico do mundo – somam € 1.108 milhões, ou 800.000 vezes o salário anual de um empregado de uma fábrica de peças de vestuário da Índia que fornece artigos à empresa.120
As receitas fiscais são essenciais para financiar políticas e serviços que podem combater a desigualdade, e uma tributação progressiva pode reduzir, diretamente, o fosso entre ricos e pobres. As receitas fiscais também financiam serviços que beneficiam empresas, como serviços de infraestrutura, segurança, saúde e educação para o cidadão. No entanto, a tributação também é algo que as empresas se empenham em minimizar. Elas fazem isso de duas maneiras: usando truques contábeis, recorrendo a paraísos fiscais e a brechas na lei; ou garantindo acordos fiscais preferenciais e reduções fiscais oferecidos por diversos países. Estima-se que a Nigéria perca US$ 2,9 bilhões por ano em receitas fiscais em decorrência da concessão de incentivos fiscais.121 Uma dessas políticas fiscais, por exemplo, prevê que qualquer investimento individual ou corporativo em infraestrutura pública tenha o direito de incentivos fiscais concedidos ao magnata do cimento.125 Algumas das maiores empresas não estão pagando praticamente nenhum imposto: há relatos de que a Apple pagou uma alíquota de 0,005% sobre seus lucros na Europa em 2014.126
As empresas multinacionais têm muitas opções para evitar impostos, já que podem tirar proveito dos melhores incentivos fiscais oferecidos por diferentes países, jogando o sistema tributário de um país contra o outro. Isso deu origem à tendência geral e persistente de redução das alíquotas de impostos cobradas de empresas nas duas últimas décadas, que tem sido muito mais acentuada que a redução de outras alíquotas tributárias. Oito das principais nações industrializadas do mundo baixaram suas alíquotas tributárias para empresas no ano passado ou anunciaram planos de fazer isso.127 Em 1990, a alíquota tributária legal média reivindicar benefícios fiscais.122 No ano passado, essa política permitiu que uma empresa de Alike Dangote – o homem mais rico da África123 – fosse beneficiada com uma redução de impostos de 30% em um projeto rodoviário.124 Essa situação decorre de um longo histórico de adotada pelos países do G20 para pessoas jurídicas era de 40%; em 2015, ela havia caído para 28,7%.128 Além dessas tão comentadas alíquotas generosas, muitos governos oferecem brindes e promoções especiais a empresas individuais. Em 2014, por exemplo, para atrair investimentos da Samsung, a Indonésia ofereceu a essa empresa uma isenção de imposto de renda por 10 anos, enquanto o Vietnã ofereceu a mesma vantagem por 15 anos. 129
As multinacionais podem também estar bem posicionadas para tirar proveito de normas fiscais internacionais e paraísos fiscais para evitar impostos. Esse bom posicionamento muitas vezes permite que elas manipulem sua atividade comercial entre diferentes subsidiárias no intuito de reduzir ou eliminar lucros em um país no qual deveriam estar pagando impostos, optando por declarar seus lucros em jurisdições de baixa tributação. Uma empresa que atua em Uganda usou empresas de fachada em paraísos fiscais para tentar evitar o pagamento de US$ 400 milhões em impostos. Essa soma é superior à que o governo de Uganda gasta com assistência média a cada ano. Felizmente, essa prática foi eliminada pelo governo. 130
As estimativas da evasão fiscal total praticada por empresas variam. O FMI estima que os países da OCDE percam até 1% do PIB em receitas fiscais em decorrência da evasão fiscal e a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (UNCTAD) estima que os países em desenvolvimento estejam perdendo pelo menos US$ 100 bilhões todos os anos devido a essa prática.131 Essa cifra é mais do que suficiente para garantir que todas as 124 milhões de crianças que estão fora da escola tenham acesso à educação.132
O intenso capitalismo dos acionistas
Diminuindo ao máximo seus custos com mão de obra e o pagamento de impostos, as empresas conseguem garantir uma parcela crescente dos seus lucros aos seus titulares. Em empresas listadas em bolsa, esse empenho em gerar lucros cada vez maiores tem garantido grandes recompensas aos seus acionistas. Para empresas que atuam no Reino Unido, a parcela de lucros que está sendo transferida para acionistas na forma de dividendos, em vez de ser reinvestida na própria empresa, aumentou de 10% dos lucros em 1970 para 70% nos dias atuais. 133 Em 2015, essa parcela era de 86% e 84% na Austrália e Nova Zelândia, respectivamente, em parte graças a um crédito fiscal que os investidores recebem sobre sua distribuição de dividendos.134 Na Índia, à medida que os lucros das 100 maiores empresas listadas em bolsa aumenta, a parcela dos seus lucros líquidos desembolsados em dividendos também vem aumentando constantemente ao longo da última década, chegando a 34% em 2014/15, com cerca de 12 empresas privadas desembolsando mais de 50% de seus lucros na forma de dividendos (veja a Figura 3). As empresas também têm acumulado grandes somas: segundo a agência de classificação Moody’s, as empresas (não financeiras) dos Estados Unidos acumulavam US$ 1,7 trilhão em seus balanços no final de 2015135 e estavam recomprando suas ações para aumentar ainda mais seu valor para os acionistas. Nos Estados Unidos, as 500 maiores empresas listadas em bolsa gastaram, em média, 64% dos seus lucros na recompra de ações entre setembro de 2014 e setembro 2016.136
Essa tendência não seria tão preocupante se todos nós fôssemos acionistas que compartilham os retornos de empresas prósperas. Para que uma pessoa tenha ações, no entanto, ela precisa, em primeiro lugar, ter capital para investir e, por essa razão, a maioria das ações é detida por indivíduos ricos e investidores institucionais. Mesmo em países nos quais fundos de pensão são importantes investidores institucionais que dividem os retornos com pensionistas, a participação desses fundos nesses ativos lucrativos está diminuindo. No Reino Unido, os fundos de pensões detinham cerca de 30% de todas as ações há 30 anos, mas esse percentual havia caído para apenas 3% em 2014.138 Intermediários financeiros, como fundos de private equity e de cobertura, bem como investidores estrangeiros, tornaramse acionistas bem maiores.139 Nos Estados Unidos, esses negócios estão ficando cada vez mais nas mãos dessas entidades, que estão sendo intensamente usadas pelo 1% dos mais ricos. O Departamento do Tesouro dos Estados Unidos estima que essa situação tenha gerado uma perda de receita de US$ 100 bilhões.140
Trabalhando para os investidores
Os interesses de acionistas exercem influência importante sobre decisões empresariais. Isso tem acontecido cada vez mais e em horizontes de tempo cada vez mais curtos. A prática de recompensar gerentes com opções de ações como parte do seu pacote de remuneração está diretamente relacionada à tomada de decisões empresariais focadas na geração de lucros no curto prazo e os obriga a atuar no interesse dos acionistas (que eles próprios também são), em vez de priorizar a produção, as vendas e interesses de longo prazo.141 Enquanto isso, os demais acionistas dos modernos mercados de ações públicas atuais passaram a atuar como corretores anônimos, e não investidores responsáveis preocupados com melhores interesses de longo prazo.142 Essa visão de curto prazo, conhecida como “capitalismo trimestral”, mina investimentos em sustentabilidade não apenas para as próprias empresas, mas também para trabalhadores, consumidores e o meio ambiente. Segundo Larry Fink, diretor executivo da BlackRock, a maior gestora de ativos do mundo, “mais e mais líderes empresariais estão priorizando operações que possam gerar retornos imediatos para os acionistas, como recompras ou aumentos de dividendos, ao mesmo tempo em que investem pouco em inovação, trabalhadores qualificados ou despesas de capital essenciais para sustentar o 21 crescimento das suas empresas no longo prazo”.143 Empresas que operam com base no princípio de lucrar rapidamente não estão criando um ambiente de crescimento inclusivo.
O capitalismo da camaradagem
Desde 1990, observou-se um grande aumento na riqueza de bilionários que atuam em setores que mantêm relações muito estreitas com governos, como os setores da construção e da mineração. Isso está ocorrendo principalmente em países em desenvolvimento, mas é também um fenômeno de peso no mundo rico.144 Esse fenômeno foi descrito pela revista The Economist como “capitalismo de camaradagem”.
Como a Oxfam já documentou em estudos anteriores,145 empresas que atuam em todos os setores – financeiro, extrativo, do vestuário, dos produtos farmacêuticos e outros – usam seu enorme poder e influência para garantir que regulações e políticas nacionais e internacionais sejam moldadas de uma maneira que lhes garantam lucros contínuos. As empresas farmacêuticas, por exemplo, gastaram mais de US$ 240 milhões em atividades de lobby em Washington em 2015.146 O terceiro homem mais rico do mundo, Carlos Slim, controla cerca de 70% de todos os celulares e 65% de todas as linhas fixas do México. A OCDE estima que o disfuncional setor das telecomunicações do México tenha gerado um déficit previdenciário de US$ 129,2 bilhões entre 2005 e 2009, equivalente a 1,8% do PIB por ano.147 Empresas petrolíferas como a Shell têm feito um lobby ativo na Nigéria para evitar aumentos de impostos sobre lucros.148 Na União Europeia, um relatório elaborado em 2014 sobre a influência do setor financeiro revelou que este setor gasta mais de € 120 milhões por ano em atividades de lobby em Bruxelas e emprega mais de 1.700 lobistas149. Até mesmo o setor de tecnologia, que já foi visto como um setor relativamente íntegro, tem sido cada vez mais alvo de acusações de favorecimento ou nepotismo. A Alphabet, a empresa-mãe do Google, tornou-se um dos maiores lobistas em Washington e Bruxelas em torno de normas antitruste e sistemas fiscais150.
Esse capitalismo da camaradagem beneficia os ricos em detrimento do bem comum. Isso significa que pessoas comuns acabam pagando mais por produtos e serviços, já que seus preços são influenciados por cartéis e pelo poder de monopólio de empresas e seus vínculos com o governo. No capitalismo de camaradagem, empresas usam suas redes de relações para garantir regulações fracas e impostos mais baixos, privando governos de receitas.
O PAPEL DOS SUPER-RICOS NA CRISE DA DESIGUALDADE
A riqueza dos super-ricos, definidos neste relatório como os bilionários do mundo, aumentou vertiginosamente nos últimos trinta anos. Os 1.810 bilionários (em dólares) incluídos na lista da revista Forbes de 2016, 89% dos quais são homens, possuem uma fortuna de US$ 6,5 trilhões – soma maior que a detida pelos 70% mais pobres da humanidade. Os bilionários são a face humana do rápido aumento observado na concentração da riqueza e dos retornos sobre capital.
Fartamente recompensados Uma vez acumulada uma fortuna – ou capital –, ela pode crescer rapidamente. Os super-ricos conseguem obter retornos não disponíveis ao poupador comum, ajudando a aumentar o fosso entre os ricos e todos os demais habitantes do planeta. Investindo em fundos de cobertura ou mantendo depósitos cheios de obras de arte e carros antigos,152 o setor altamente secreto da gestão de riquezas tem sido extremamente bem-sucedido em aumentar a prosperidade dos super-ricos. Quanto maior o investimento inicial, mais altos podem ser os retornos, já que os custos iniciais de uma assessoria financeira sofisticada e investimentos de alto risco podem ser justificados por retornos extremamente lucrativos em potencial. Em 2009, havia 793 bilionários no mundo com uma riqueza líquida total de US$ 2,4 trilhões. Em 2016, os 793 indivíduos mais ricos do mundo detinham uma riqueza total de US$ 5,0 trilhões, o que representa um aumento de 11% por ano na riqueza detida por esse grupo de super-ricos. Quando Bill Gates deixou a Microsoft, em 2006, ele tinha uma riqueza líquida de US$ 50 bilhões. Uma década depois, esse valor havia aumentado para US$ 75 bilhões, apesar das suas louváveis tentativas de doar esses recursos por meio da sua fundação. A empresa global de serviços financeiros UBS estimou que, nos próximos 20 anos, 500 pessoas passarão mais de US$ 2,1 trilhões para seus herdeiros – uma soma maior que o PIB da Índia, um país com 1,3 bilhão de habitantes.153 Se os bilionários continuarem a garantir esses retornos para si, é possível que tenhamos o primeiro trilionário do mundo em 25 anos.
Uma farta influência
Uma análise da Oxfam revela que um terço da riqueza dos bilionários do mundo tem origem em riqueza herdada, enquanto 43% dela parece ter algum vínculo com o favorecimento ou nepotismo.154 Essas conclusões são as mesmas de análises semelhantes publicadas pela revista The Economist e outras 155 e desconstroem a ideia de que a maioria dos super-ricos deve suas fortunas ao trabalhar duro e ao mérito.
Os super-ricos têm interesse em moldar políticas que apoiem a acumulação da sua riqueza e rejeitam políticas que tenham um impacto mais progressista na sociedade. Pesquisas revelam que eles são beneficiados por uma distribuição mais desigual da riqueza e se empenham em usar sua influência para continuar a gozar desse benefício.156 Donella Meadows descreve essa atitude dos ricos como a de construir “circuitos de realimentação de reforço” nos quais os vencedores do jogo ganham ainda mais recursos para se sair ainda melhor na sequência.157 Por exemplo, eles usam sua riqueza para apoiar candidatos políticos, financiar atividades de lobby e – mais indiretamente – financiar centros de estudos e universidades para tornar narrativas políticas e econômicas compatíveis com as falsas premissas que favorecem os ricos. Os bilionários do Brasil fazem lobby para reduzir impostos158 e, em São Paulo, preferem usar helicópteros para ir ao trabalho, evitando os engarrafamentos e problemas de infraestrutura enfrentados nas ruas e avenidas da cidade.159 Nos Estados Unidos, os irmãos Koch são dois bilionários que têm exercido uma enorme influência sobre políticos conservadores e financiado uma série de centros de estudos muito influentes, como o Instituto Cato, além de apoiarem o movimento Tea Party e os argumentos dos que não acreditam na realidade das mudanças climáticas.160 Os irmãos Gupta, nascidos na Índia, são dois empresários acusados de manter uma relação muito próxima com pessoas que exercem uma influência indevida sobre o Presidente Sul-Africano Jacob Zuma.161
Como alguns dos maiores acionistas, os super-ricos são também grandes beneficiários do foco implacável nos dividendos acima de tudo, descrito no início desta seção, que reduz salários e procura minimizar a tributação de pessoas jurídicas. Esses são os indivíduos que investem em fundos de private equity e de cobertura.
A tributação é para todos os outros
Uma das principais maneiras pelas quais os super-ricos contribuem para o bem-estar da sociedade é por meio do pagamento de impostos sobre a sua renda, riqueza e ganhos de capital, que podem financiar serviços públicos essenciais e redistribuir sua riqueza para pessoas mais vulneráveis. No entanto, o FMI verificou que os sistemas tributários adotados em todos os países vêm se tornando cada vez menos progressivos desde o início da década de 1980 em decorrência da redução da alíquota máxima aplicada ao imposto de renda, de 23 cortes nos impostos sobre ganhos de capital e de reduções nos impostos sobre heranças e sobre a riqueza.162 Dados colhidos para o relatório da Oxfam (que será lançado brevemente com o título Compromisso com a Redução do Índice da Desigualdade) revelam que a alíquota máxima média do imposto de renda cobrado nos países em desenvolvimento é inferior a 30% e que, na maioria dos casos, ela não é efetivamente aplicada.163 Nos Estados Unidos, país de origem de 30% dos bilionários (em dólares) do mundo, a alíquota máxima do imposto era de 70%, em 1980; atualmente, ela caiu para 40%, enquanto o imposto sobre ganhos de capital caiu ainda mais, para 20%.164
Os países estão atabalhoadamente empenhados em atrair os super-ricos e permitir que eles evitem impostos. Exilados fiscais super-ricos podem comprar o direito de viver e trabalhar no Reino Unido (evitando impostos) por 2 milhões de libras. Eles podem comprar a plena cidadania de Malta por apenas US$ 650.000. Além disso, há evidências de que os super-ricos usam ativamente uma rede global de paraísos fiscais e sigilo fiscal para evitar pagar impostos. Segundo uma estimativa conservadora, a riqueza individual mantida offshore soma US$ 7,6 trilhões.165 Só na África, a soma mantida offshore por africanos ricos foi estimada em US$ 500 bilhões, que acarreta, no total, US$ 15 bilhões em receitas fiscais perdidas por ano para as nações africanas. 166 Essa sofisticada rede de sigilo fiscal foi exposta pelas revelações contidas no vazamento dos chamados Panama Papers em 2016. Embora a mídia tenha obviamente focado nos nomes de pessoas conhecidas envolvidas, esse vazamento revelou também como é comum indivíduos ricos usarem paraísos fiscais para evitar pagar impostos nos seus países e como uma sofisticada rede de advogados, contadores e bancos foi criada para facilitar esse processo.167
3 COMO CHEGAMOS A ESTE PONTO? AS FALSAS PREMISSAS QUE DERAM ORIGEM À SITUAÇÃO ATUAL
Em última análise, os governos são responsáveis pelas normas, regulações e políticas que regem nossas economias e moldam nossas sociedades. Eles podem, se assim desejarem, usar seu poder e políticas para gerar um grande impacto na redução da desigualdade em um país e trabalhar no interesse dos que estão na base da distribuição e da sociedade de uma forma geral. Ou podem não fazer nada e deixar que o fosso entre ricos e pobres cresça, exacerbando a crise da desigualdade.
É óbvio que, nas últimas décadas, muitos governos não têm atuado no sentido de efetivamente reduzir a desigualdade. A falta de uma política governamental adequada para o salário mínimo e para proteger os direitos do trabalhador a negociações coletivas e a greve tem impedido o estabelecimento de um padrão mais elevado para o que seria trabalho decente. As políticas fiscais e de gastos não têm sido suficientemente robustas para redistribuir a renda dos mais ricos para os mais pobres.
Conhecimentos, evidências e experiência são fundamentais para subsidiar o desenvolvimento de políticas e regulações. No entanto, afirmações, crenças e premissas podem ser ainda mais influentes. As premissas que dão base a decisões e ações governamentais, e as orientações e ações de indivíduos e empresas, têm um impacto profundo e duradouro sobre nossas sociedades.
A atual “economia para o 1%” baseia-se em uma séria de premissas falsas. Algumas delas dizem respeito à economia em si, enquanto outras se referem a uma forma particular de modelo de política econômica conhecida como “neoliberalismo”. Esta seção examina seis dessas falsas premissas básicas, as quais, apesar do crescente reconhecimento e das evidências da sua insuficiência, continuam, persistentemente, a orientar a definição de políticas.
FALSA PREMISSA 1: O MERCADO ESTÁ SEMPRE CERTO E O PAPEL DO GOVERNO NA ECONOMIA DEVE SER MINIMIZADO
Os mercados são sempre a forma mais eficiente de distribuir valor. Eles praticamente se autocorrigem e o governo precisa regulamentá-los o mínimo possível. Mecanismos de mercado devem ser aplicados ao maior número possível de atividades humanas.
Essa crença inabalável no poder dos mercados, aliada à visão negativa da intervenção do governo, são elementos fundamentais do pensamento neoliberal. O mercado é um instrumento extremamente poderoso para promover o crescimento e a prosperidade
Sem nenhum controle, no entanto, o mercado não é a melhor maneira de organizar e valorizar grande parte da nossa vida em comum, e as forças de mercado não assegurarão nosso futuro comum. Os mercados exigem uma gestão cuidadosa de modo a proteger os interesses das pessoas e do planeta. O crescimento excessivo do setor financeiro é um claro exemplo dessa situação. Estimulado pela ampla desregulamentação e usando seu enorme poder para influenciar e pressionar por um relaxamento ainda maior da regulamentação em áreas como a tributária, o setor financeiro cresceu de forma totalmente desproporcional à sua utilidade para a sociedade.175 Esse mesmo setor colocou a economia mundial de joelhos em 2008.176
Fica claro que, enquanto os mercados são excepcionalmente úteis em diversas áreas de nossas vidas, eles não são universalmente aplicados a tudo. Onde há monopólios naturais, como, por exemplo, no fornecimento de importantes infraestruturas de transporte ou na prestação de serviços públicos, é óbvio que a propriedade pública ou uma regulação robusta são necessárias para corrigir imperfeições da concorrência nesses setores e garantir o acesso a eles.177 Além disso, em algumas áreas da vida humana, outros conceitos de valor são mais importantes que o preço.178 O acesso a um sistema de saúde decente e a uma educação de qualidade, por exemplo, são um direito de todos, e não apenas dos que podem pagar por esses serviços. O Serviço Nacional de Saúde do Reino Unido é classificado como um dos mais eficientes e eficazes do mundo.179 Esse sistema, que se baseia na cooperação – não na competição – e no planejamento e coordenação em nível nacional, garante que nenhum cidadão do Reino Unido precise pagar por uma consulta médica. Os governos podem e devem ser agentes poderosos da economia. Pesquisas já constataram que, usando os recursos existentes, três quartos da extrema pobreza poderiam ser erradicados hoje se aumentássemos a tributação e reduzíssemos despesas militares e outros gastos regressivos.180
FALSA PREMISSA 2: AS EMPRESAS DEVEM MAXIMIZAR SEUS LUCROS E RETORNOS AOS ACIONISTAS A TODO CUSTO
A rentabilidade deve ser o principal indicador de sucesso e eficiência de uma empresa.
A minimização de custos fiscais e trabalhistas e outros gastos e a maximização da receita são consideradas a fórmula para melhorar a rentabilidade. Alguns afirmam que esse é o mais eficiente modelo de geração de emprego: as empresas fornecem bens e serviços e dividem os lucros com seus proprietários por meio do retorno aos acionistas. Os investidores são atraídos por negócios que oferecem os maiores lucros em troca de uma participação financeira na empresa, o que acaba trazendo mais investimentos para as companhias mais rentáveis que, se aplicados com sabedoria, podem incrementar suas perspectivas futuras.
Seguindo essa lógica, os governos são exigidos a implementar políticas que criem, atraiam, facilitem e apoiem empresas centradas na maximização da rentabilidade e no retorno aos acionistas. Essa crença levou à privatização de diversos serviços públicos, abrangendo desde ferrovias a hospitais, e fez com que as empresas recebessem um apoio generoso da comunidade de ajuda internacional.181 Esses processos resultaram no crescimento exponencial da capitalização de mercado das empresas que operam dessa forma, além de conferir um papel extremamente importante ao (desregulamentado) setor financeiro na negociação de ações de companhias com foco na obtenção de lucros no curto prazo.
Entretanto, o porte das empresas atualmente e seus lucros devem ser vistos como sinais de alerta. A teoria econômica convencional afirma que, em um mercado competitivo, os lucros devem ser “normais” e que lucros “supernormais” são um sinal do poder monopolista e de busca por renda (rent seeking). Como discutido na seção 2, esses lucros aumentam desproporcionalmente os rendimentos dos que já são ricos, ao mesmo tempo em que geram pressões sobre trabalhadores, agricultores, consumidores, fornecedores, comunidades e sobre o meio ambiente. Embora possam agradar investidores ricos, esses lucros também podem prejudicar a sociedade. O estímulo à maximização de lucros no setor farmacêutico, por exemplo, muitas vezes leva as empresas a cobrar o maior preço possível pelos medicamentos – que ajudariam muito mais pessoas se fossem vendidos a um preço mais baixo. 183 O relatório de 2016 do Painel de Alto Nível do Secretário-Geral das Nações Unidas sobre Acesso a Medicamentos destaca “a incoerência entre abordagens centradas no mercado e as necessidades de saúde pública”.184
Os países precisam desmistificar a crença de que, para atrair investimentos valiosos, os salários devem ser mantidos baixos. Pesquisas realizadas pela OIT em 2012 revelaram que a validade dessa teoria é limitada: quaisquer ganhos positivos em níveis de exportação ou de investimentos não são suficientes para contrabalançar a queda no consumo e demanda internos provocada por salários mais baixos.185 O relatório salientou que, no nível global, essa política era, em última análise, autodestrutiva. Uma “corrida para baixo” nos salários só gera uma redução constante na demanda global, e o que isso gera? Como afirmou Ozlem Onaran, pesquisadora envolvida no estudo da OIT, “nosso planeta não está fazendo negócios com Marte”.186
Por outro lado, exemplos de sucesso observados em todo o mundo já demonstram que modelos comercialmente viáveis podem existir com um lucro suficiente – e não máximo. Esses modelos priorizam mais uma missão social do que a maximização dos lucros ou são empresas em que os interessados mais afetados pelo negócio são também seus proprietários. Empresas de propriedade dos funcionários, como a Mondragon, um conglomerado multinacional que promove a segurança no trabalho e escalas salariais igualitárias, vêm crescendo significativamente em diversas economias, muitas vezes superando outras companhias em termos de faturamento e criação de empregos.187 Essas empresas também podem renunciar lucros adicionais pagando salários e preços mais justos a trabalhadores e agricultores ou arcar com custos maiores para utilizar os recursos naturais de forma mais sustentável.
FALSA PREMISSA 3: A RIQUEZA INDIVIDUAL EXTREMA É BOA E UM SINAL DE SUCESSO – E A DESIGUALDADE INDIVIDUAL NÃO É RELEVANTE
A existência de indivíduos muito ricos é resultado do sucesso econômico e de seus próprios talentos e habilidades. A desigualdade entre ricos e pobres não importa, contanto que a economia cresça..
Como descrito na seção 2, longe de ser uma força benigna, o surgimento de uma nova classe de super-ricos é um sintoma que revela como nossas economias são disfuncionais e também um fator que agrava essa disfunção.
Embora existam evidências contrárias, ainda é muito consolidada a ideia de que a riqueza daqueles que estão no topo é fruto de trabalho duro e talento.188 É bem estabelecida também a crença de que, independentemente de como enriqueceram, os super-ricos contribuem para o crescimento econômico e a nossa situação é melhor com eles do que sem eles. Os fatos, porém, mostram o contrário. O FMI revelou que países menos desiguais crescem mais e por mais tempo. Pesquisas também já mostraram que países com mais bilionários registram um crescimento mais lento.189 Do ponto de vista econômico, não faz muito sentido ter tanta riqueza concentrada nas mãos de tão poucos, e esse fenômeno se autoperpetua à medida que os super-ricos usam seu poder para melhorar sua posição econômica, intensificando ainda mais a desigualdade.
FALSA PREMISSA 4: O CRESCIMENTO DO PIB DEVE SER O PRINCIPAL OBJETIVO DA FORMULAÇÃO DE POLÍTICAS
O crescimento do PIB de um país é o melhor indicador do seu desempenho
O Produto Interno Bruto foi originalmente criado em 1937 por Simon Kuznets. Por representar a soma de todos os bens e serviços produzidos por indivíduos, empresas e governos, o PIB tornou-se a ferramenta padrão para dimensionar a economia de um país. Embora seja nítido que o PIB tem sido um poderoso instrumento de previsão de muitos resultados de desenvolvimento humano e indicadores de qualidade de vida importantes, seu uso foi ampliado muito além da finalidade para a qual ele foi concebido. Atualmente, a maioria dos políticos, economistas e meios de comunicação utiliza o PIB de forma “maximalista” como um indicador do desempenho de uma nação (e, portanto, de seus líderes).191 Na política mundial, poder e influência são invariavelmente definidos de acordo com o tamanho do PIB de um país.
Mas não está à altura da tarefa. Em abril de 2016, a revista The Economist afirmou que o PIB “é um indicador de prosperidade problemático, com falhas que vêm se aprofundando com o passar do tempo”.194 É crítico o fato de que, por ser uma média, o uso do PIB per capita não contribua em nada para levar em consideração a desigualdade. Na Zâmbia, onde o PIB cresceu a uma média anual de 6% entre 1998 e 2010, a maioria dos benefícios desse crescimento foi direcionada para os mais ricos. Na verdade, durante esse período, a taxa de pobreza aumentou de 43% para 64% e mais quatro milhões de pessoas passaram a viver abaixo da linha da pobreza.195
O PIB não leva em conta o trabalho não remunerado realizado pelas mulheres, que constitui um grande apoio para a economia de todos os países. Mesmo estimativas conservadoras mostram que o valor do tempo que as mulheres dedicam ao trabalho não remunerado chega a US$ 10 trilhões por ano.196 Nas economias avançadas, o aumento do crescimento econômico pode ser associado à estagnação ou até mesmo redução dos indicadores de qualidade de vida devido ao risco de os custos relacionados ao crescimento do PIB superarem os benefícios.197
FALSA PREMISSA 5: ESSE MODELO DE CRESCIMENTO IMPULSIONADO PELO LUCRO É NEUTRO EM RELAÇÃO AO GÊNERO
Indivíduos são “agentes econômicos” que não precisam de identificadores sociais – eles não têm gênero, classe, raça e assim por diante, de modo que seus resultados são determinados por suas habilidades e esforços, e não pelo fato de serem homem ou mulher.
Devido a avanços registrados nas últimas décadas, milhões de mulheres estão ocupando empregos formais pela primeira vez. Essa experiência pode ser empoderadora, principalmente por permitir que elas alcancem sua independência financeira.198 Atualmente, as mulheres estão no comando de empresas globais, como Facebook e IBM, e de diferentes governos, como os que estão entre a Alemanha e Myanmar.
Entretanto, ainda estamos distantes da completa igualdade de oportunidades. Ainda existem enormes obstáculos que impedem a plena participação feminina na maioria dos países. Em muitas economias, as mulheres têm um acesso extremamente limitado a ativos econômicos, como a terra.200 O Relatório Global sobre Desigualdade de Gênero 2016 do Fórum Econômico Mundial constatou que a diferença entre homens e mulheres é mais significativa em termos da participação política e, apesar dos avanços logrados, o acesso das mulheres à saúde e à educação ainda é menor que o dos homens.201 As mulheres são impedidas de participar da economia e têm uma representação desproporcional na parte inferior da distribuição de renda. A ActionAid calculou que as mulheres que vivem nos países em desenvolvimento poderiam somar US$ 9 trilhões a suas rendas caso seu salário e acesso a trabalho remunerado fossem iguais aos dos homens.202 Enquanto existirem essas barreiras, não haverá melhoria nos direitos das mulheres e na igualdade de gênero, mesmo em um contexto de crescimento econômico. Medidas específicas devem ser adotadas para tornar o crescimento mais inclusivo para todos e redistribuir os ganhos para as mulheres. Ao ignorar essas barreiras, o atual modelo econômico contribui para perpetuar as desigualdades.
Modelos econômicos neoliberais não somente ignoram essas barreiras, mas também prosperam graças às normas sociais que enfraquecem as mulheres. Países com grandes setores orientados para a exportação são particularmente beneficiados por uma grande força de trabalho pouco qualificada e sem voz. Muitos desses trabalhos são reservados às mulheres devido à sua “desvantagem competitiva”.203 A maioria delas vive em países em desenvolvimento, trabalhando por salários baixíssimos e quase sem direito algum em zonas de processamento de exportação ou zonas econômicas especiais que fornecem mão de obra barata para satisfazer às necessidades do mercado mundial.204 Não é por acaso que as mulheres representam 95% dos trabalhadores nas Zonas Econômicas Especiais (ZEE) do Camboja. O Banco Asiático de Desenvolvimento, que promove as ZEE na região, explicou claramente a lógica por trás da contratação de mulheres em um relatório publicado em 2015: “Dizem que, além de ter a destreza e a paciência necessárias para desempenhar tarefas rotineiras exigidas pelos processos intensivos em mão de obra que geralmente ocorrem nessas zonas, as mulheres também têm uma menor tendência a entrar em greve ou interromper a produção de outras maneiras que os homens.”205 As mulheres também correm um risco maior de sofrerem violência ao longo da vida, inclusive no seu local de trabalho. Uma em cada três mulheres do mundo sofre violência sexual de um parceiro íntimo em algum momento da sua vida206 e o risco de mulheres serem vítimas de tráfico humano e extorsão sexual no seu local de trabalho é muito maior. Como as economias exploram essas normas sociais em vez de contestá-las, a desigualdade de gênero se soma à desigualdade econômica, resultando em uma representação desproporcional das mulheres na base da distribuição econômica.
No outro extremo do espectro de empregos, as lideranças empresariais femininas continuam sendo a exceção e não a regra, mesmo em países onde as lacunas na área de educação e saúde foram preenchidas (veja a tabela 2).207 Dados da Pesquisa Mundial de Valores revelam que mais da metade da população mundial, incluindo homens e mulheres, acredita que “os homens são, em geral, melhores executivos que as mulheres”, e quase 90% da população masculina do Paquistão, Egito e Iêmen pensam dessa forma.208 Em vez de desafiar as normas de gênero e criar um ambiente propício para a promoção da igualdade, o aumento da desigualdade de remuneração e poder contribui para aumentar a diferença salarial de gênero no mundo, estimado atualmente em 23%,209 e a distribuição da riqueza mundial, já que as mulheres respondem por apenas 11% dos super-ricos,210 consolidando ainda mais a desigualdade de gênero em nossas sociedades.
Observa-se nitidamente a necessidade de se mudar a própria economia no sentido de garantir que o crescimento beneficie as mulheres de forma justa, questione normas sociais e valorize a contribuição das mulheres para a sociedade. Obviamente, as normas sociais colocam sobre os ombros das mulheres a maior parte da responsabilidade pelo cuidado com as crianças, visto que elas dedicam, em média, 2,5 vezes mais tempo aos trabalhos de cuidado que os homens (veja a tabela 1). A economia não reconhece o valor intrínseco desse trabalho, que se torna invisível nas contas nacionais que medem a produção de um país. Consequentemente, a maior parte desse trabalho não é remunerada. Dia após dia, as mulheres enfrentam o desafio de equilibrar o trabalho não remunerado de cuidar de filhos e outras pessoas com a necessidade de serem agentes econômicos para garantir o próprio sustento. Evidências recentes apontam para a crescente crise no cuidado infantil em países em desenvolvimento onde essa necessidade simplesmente não é atendida.212
A violência sexual e de gênero produz grandes impactos de longo prazo na vida das mulheres em todo o mundo.213 Esses atos consistem em violações dos direitos humanos, que também são ignoradas pelos cálculos econômicos tradicionais, ainda que o problema seja generalizado em nossas sociedades. Esses fatos sequer são contabilizados no PIB. Sem a determinação de mudar a própria economia, seus valores e a forma como são compartilhados, as normas de gênero e a discriminação continuarão a ser parte integrante das nossas sociedades e nunca serão questionadas.214
FALSA PREMISSA 6: O PLANETA FORNECE RECURSOS ILIMITADOS PARA A ECONOMIA
A maioria dos insumos ambientais é externa à economia. Eles não aparecem nos lucros e perdas de uma empresa ou no PIB de um país, o que significa que não acarretam nenhum custo.
Nosso crescimento econômico baseia-se, em grande parte, na utilização de recursos naturais ou em sistemas naturais de processamento de resíduos. Dependemos dos recursos naturais fornecidos pelo nosso planeta, como combustíveis fósseis, madeira, peixes, solo, metais, água doce, areia, cascalho e milhares de outros materiais. No entanto, por não aparecerem nas contas de empresas ou países, muitos dos insumos e produtos ambientais são completamente ignorados e vistos apenas como insumos gratuitos e sumidouros de carbono sem nenhum custo. A ênfase cada vez maior na maximização dos lucros e retornos de curto prazo agrava a cegueira ambiental das nossas economias, uma vez que qualquer perspectiva de longo prazo é suprimida.
Essa tendência ocorre apesar do fato óbvio de que o crescimento econômico envolve fundamentalmente a extração de recursos naturais e a exploração do meio ambiente. Nos últimos 40 anos, a demanda da humanidade por recursos naturais superou a capacidade de reposição do planeta. Estamos exaurindo nossos recursos naturais, derrubando árvores a um ritmo mais rápido do que elas levam para alcançar seu pleno desenvolvimento e capturando mais peixes do que o oceano consegue repor. 216 Atualmente, o planeta leva um ano e seis meses para regenerar os recursos renováveis consumidos pelos seres humanos a cada ano. 217
Os insumos ambientais usados pelas empresas também geram custos muito superiores ao valor que elas pagaram, transformando-se em despesas para o restante da sociedade. Por exemplo, a mercantilização da terra faz com que as empresas, motivadas pela possibilidade de auferir enormes lucros, comprem grandes áreas de terra para implantar a agricultura comercial. Enquanto isso, comunidades que viviam ou se beneficiavam anteriormente dessas terras são muitas vezes deslocadas e relegadas à pobreza, ao mesmo tempo em que o abastecimento de água da região, em particular, pode ser gravemente afetado por atividades agrícolas comerciais. 218 Mudanças no uso da terra costumam gerar impactos sociais mais amplos, como a perda de biodiversidade e impactos climáticos. Empresas de petróleo e gás têm registrado elevados lucros com a extração de combustíveis fósseis, mas é o restante da sociedade e as gerações futuras que precisarão absorver o custo dos impactos climáticos provocados por essa indústria altamente poluente. Um relatório da Trucost revela que, se os custos ambientais fossem incluídos nas contas das empresas, as principais indústrias do mundo não seriam lucrativas.219
As mudanças climáticas constituem uma das expressões mais claras da desigualdade e injustiça mundiais. Segundo estimativas da Oxfam, os 10% mais ricos da população mundial são responsáveis por metade de todas as emissões globais.220 No entanto, as comunidades mais pobres são as que enfrentam as consequências mais graves. As mulheres, sobretudo aquelas que vivem em comunidades rurais, enfrentam os maiores riscos, pois frequentemente dependem da agricultura e têm poucas outras oportunidades de ganhar a vida.221 Constatouse, inclusive, que a própria desigualdade pode aumentar as emissões de carbono. Dados de 158 países mostram que possíveis fatores incluem o crescimento do consumo devido à disputa por status e à emulação social; um maior apetite por crescimento para deixar de lado questões redistributivas; o aumento do poder relativo dos ricos de influenciar a política a seu favor; e os interesses de empresas privadas poluidoras.222
4 CONSTRUINDO A ALTERNATIVA: UMA ECONOMIA HUMANA
Quando olhamos o mundo ao nosso redor e tememos pelo nosso futuro ao observar os atuais impactos negativos da desigualdade extrema, fica claro que precisamos de mudanças fundamentais.
Para que o bem-estar de todos e a sobrevivência do planeta sejam os principais objetivos da economia, e não um subproduto desejado do livre mercado, precisamos desenhar explicitamente nossas economias de modo a alcançá-los. Formada por uma série de ingredientes básicos, uma economia humana tem por objetivo enfrentar os problemas que contribuíram para a atual crise de desigualdade. Este documento apenas apresenta um esboço inicial desses ingredientes, e oferece uma base para a continuidade do trabalho.
Longe de ser radical ou completamente nova, essa visão de uma economia humana está fundamentada em antigos princípios e valores considerados fundamentais por pessoas, 32 comunidades e movimentos de todas as partes do mundo. Considerando a economia feminista, que reconhece a importância fundamental da justiça, da sustentabilidade e dos cuidados,224 a economia ecológica, que há muito tempo reconheceu a interdependência de ecossistemas econômicos humanos e naturais e a necessidade de valorizar o capital natural, e o trabalho inovador de Amartya Sen, 225 vemos que há muitos princípios estabelecidos e exemplos concretos de sucesso que servem de base para o conceito de uma economia humana. Podemos observar também que esses princípios encontram respaldo na maioria das religiões do mundo,226 no que a neurociência afirma fazer nossos cérebros se iluminarem,227 no que a psicologia considera fundamental para o bem-estar humano e no que a maioria das pessoas,228 quando têm a oportunidade de parar e pensar, acredita ser realmente importante.229
OS GOVERNOS PRECISAM TRABALHAR PARA OS 99%
Governos responsáveis, responsivos e eficazes são a grande força equalizadora da história humana. Seu dever é satisfazer as necessidades coletivas dos cidadãos e cidadãs e operar em grande escala para otimizar a distribuição de recursos, tanto hoje como no futuro. Eles têm a capacidade de desenhar economias de modo a maximizar os benefícios das liberdades de mercado para todos, minimizando ao mesmo tempo a insegurança e o medo que os mercados podem gerar. Além disso, eles podem prestar serviços de saúde, educação e abastecimento de água potável, entre outros, para garantir que o acesso a eles seja um direito de todos, e não um privilégio. A atuação efetiva dos governos é a única maneira de superar o desafio das mudanças climáticas antes que seja tarde demais.
Os governos, no entanto, tendem a relutar em intervir e podem ser pouco mais que uma extensão do poder das elites. Infelizmente, os mecanismos da democracia não são suficientes, por si sós, para impedir essa tendência. Em todo o mundo, o dinheiro costuma falar muito mais alto que o voto. Sendo assim, uma economia humana buscaria restituir um papel positivo e proativo ao governo e, ao mesmo tempo, exigiria o ressurgimento da verdadeira democracia e a proteção do espaço público.
Os meios específicos para implementar essas mudanças irão variar de um país a outro, mas poderiam incluir os seguintes:
• Mecanismos robustos para promover a representação dos cidadãos e cidadãs e a supervisão do planejamento e da tomada de decisões governamentais. Exemplos de sucesso incluem orçamentos participativos, mecanismos públicos de ouvidoria e a ampliação de canais de democracia participativa. Os cidadãos e cidadãs devem ser envolvidos na formulação de novos indicadores de progresso para definir as metas do governo e o propósito da economia;
• A promoção e preservação do espaço cívico. Isso é essencial para alcançarmos uma maior igualdade, especialmente para as mulheres. Essa dinâmica pode ser ativamente promovida mediante o financiamento de organizações de mulheres, que constituem o espaço legal no qual elas podem se organizar livremente, e do treinamento em ações de advocacy;
• Garantir que diversos grupos de pessoas concorram e consigam se eleger a cargos públicos, para que as elites não sejam as únicas a elaborar e implementar leis;
• Revitalização do planejamento econômico e do investimento estratégico por parte dos Estados com objetivo de alcançar resultados progressistas. O investimento governamental é fundamental para promover a pesquisa e o desenvolvimento de inovações tecnológicas;
• O reconhecimento de que, além de garantidor, o governo é o prestador mais eficiente e eficaz de diversos serviços públicos, sobretudo dos que envolvem monopólios naturais ou 33 valores que não se refletem adequadamente no preço;
• Os governos devem aumentar a quantidade de impostos progressivos cobrados de indivíduos ricos e corporações para garantir que eles paguem sua parcela justa e, consequentemente, a sociedade se torne mais equitativa;
• Os governos devem usar sua considerável influência para promover novos modelos de negócios que sejam orientados para o longo prazo e não busquem apenas a maximização do lucro a qualquer custo;
• Os governos devem também investir na criação de empregos. Especificamente, os investimentos em serviços públicos e infraestruturas sociais poderiam criar mais postos de trabalho que conferissem o devido valor ao trabalho não remunerado geralmente desempenhado pelas mulheres – e que gera benefícios para todos. O emprego informal deve ser reconhecido, protegido e aprimorado, de modo a garantir os direitos e a proteção dos trabalhadores da economia informal;
• Meios de comunicação independentes e livres da influência do governo e de elites ricas;
• Registros públicos obrigatórios de atividades de lobby e normas mais robustas para conflitos de interesse, limites para o financiamento de campanhas e transparência total de interesses na interação entre dinheiro e política;
• Comissões nacionais públicas sobre desigualdade para realizar avaliações anuais sobre opções em termos de políticas – regulação, impostos, gastos públicos e privatização – e seu impacto na melhoria da renda, da riqueza e das liberdades de todos e todas e na minimização da desigualdade;
• Um comissário para “gerações futuras” poderia ajudar a garantir processos sustentáveis de elaboração de políticas.
OS GOVERNOS DEVEM COOPERAR UNS COM OS OUTROS E NÃO APENAS COMPETIR ENTRE SI
Há muitas razões para celebrarmos uma conscientização mundial cada vez maior, sobretudo o reconhecimento da necessidade de resolver coletivamente os problemas do mundo. Por exemplo, a proliferação de protocolos e compromissos globais, principalmente em torno de questões relacionadas à pobreza,230 às mudanças climáticas231 e à migração internacional232, cria um espaço para processos decisórios coletivos e globais. Uma economia humana global reconhece a existência de desigualdades significativas entre diferentes países que ainda precisam ser eliminadas e que, necessariamente, significam que cada país tem responsabilidades diferenciadas no enfrentamento de desafios globais. No entanto, todos os países devem ter o mesmo direito de participar das decisões críticas necessárias para a superação desses desafios comuns.
Uma economia humana rejeitaria a maneira pela qual a globalização vem sendo usada para consolidar princípios neoliberais que, além de colocar países uns contra os outros na corrida para reduzir impostos e salários ao máximo, exploram pessoas e recursos em cadeias de abastecimento mundiais e permitem que empresas multinacionais não sejam responsabilizadas por ações indevidas. Em vez disso, uma economia humana abraçaria mais as oportunidades oferecidas pela cooperação – e não pela competição – mundial.
Colaboração em questões trabalhistas e salariais
A economia humana parte do princípio de que todo trabalho humano é igualmente merecedor de um salário decente e que os direitos dos trabalhadores devem ser protegidos. Ela abraça a ideia da colaboração mundial para proteger níveis salariais, promover o trabalho decente e, em última análise, reforçar a demanda global. Há alguns sinais de que essa ideia vem ganhando força entre empresas que reconhecem outras alternativas à “corrida para baixo” cada vez mais exploradora e desumana de reduzir custos trabalhistas ao máximo.
Além de políticas nacionais que garantam um salário digno, a não discriminação por motivos de sexo ou raça, condições de trabalho decente e a proteção de direitos trabalhistas, deve haver um maior compromisso global com um modelo de cooperação que ultrapasse fronteiras nacionais. Isso poderia ocorrer por meio de acordos intergovernamentais em nível regional, como a ideia de definir um salário mínimo para a Associação de Nações do Sudeste Asiático (ASEAN), ou por meio de medidas que exijam que empresas multinacionais invistam mais em suas cadeias de abastecimento, garantindo, assim, o trabalho decente para além das fronteiras nacionais.
Colaboração na área tributária
Embora os governos possam e estejam agindo por conta própria de diversas maneiras para melhorar a progressividade dos seus sistemas fiscais, há um limite para o que eles podem fazer de maneira unilateral. Uma economia humana global exigiria que os países ampliassem mais a cooperação na área de tributação. Evidentemente, essa cooperação deve começar com esforços verdadeiramente globais para combater a sonegação fiscal e o uso de paraísos fiscais. Ela também significa o fim da “corrida para baixo” no regime fiscal de empresas, que mina a capacidade dos países de satisfazer as necessidades de seus cidadãos. Um acordo global deveria pôr fim à competição tributária e aos incentivos e acordos secretos entre empresas e autoridades fiscais. O estabelecimento de um sistema de tributação corporativa justo e equitativo exige medidas de transparência, como a divulgação pública de relatórios para cada país no qual as empresas operam, informações transparentes sobre beneficiários efetivos e a transparência governamental sobre incentivos fiscais concedidos e, principalmente, sobre decisões tributárias. Até o presente momento, os esforços de colaboração por meio do projeto Erosão da Base Fiscal e Transferência de Lucros (BEPS) da OCDE têm sido fragmentados e inadequados, e um novo processo global de acordos é necessário que envolva países em desenvolvimento com a mesma intensidade que países ricos.
EMPRESAS QUE PROSPEREM, MAS NÃO NOS MOLDES ATUAIS
Uma economia humana tem essencialmente um setor empresarial dinâmico e próspero, fundamentado na visão de empresas estruturadas e incentivadas a beneficiar a sociedade como um todo e não apenas seus acionistas ricos. Histórias de sucesso em todas as partes do mundo já estão demonstrando que modelos comercialmente viáveis que garantem um lucro suficiente – e não máximo – podem existir (veja o Quadro 7). Estudos acadêmicos sobre a titularidade de empresas por seus empregados mostram, por exemplo, que essas empresas podem também gerar mais empregos234 e uma remuneração mais alta para seus empregados.235 As alternativas ao capitalismo acionário não são apenas viáveis, mas estão também cada vez mais em voga e prosperando.
O governo tem um papel fundamental a desempenhar no sentido de promover a visão de uma economia em que essas empresas sejam maioria – sem as confinar à economia social, mas ajudando-as a ganhar cada vez mais aceitação. Alguns governos já começaram a mostrar que podem favorecer esses modelos. Coreia do Sul,238 Singapura,239 Vietnã,240 Tailândia241 e Reino Unido242 têm leis que favorecem empresas sociais em áreas como compras públicas, licenciamento e até mesmo tributação. Já houve casos em que empresas que promovem a participação acionária de funcionários receberam tratamentos fiscais favoráveis.243 A Libéria, por sua vez, criou uma zona econômica especial para empresas sociais244 e as Filipinas estão discutindo um amplo projeto de lei que prestaria um apoio significativo a empresas sociais centradas nos interesses de pessoas em situação de pobreza.245 Esses modelos de negócios não são novos. Mais de um bilhão de pessoas no mundo são membros de cooperativas, que geram mais de 250 milhões de empregos e evoluíram para se transformar em novos modelos de negócios inovadores desde que foram criadas há quase dois séculos. No Quênia, 50% da população tiram seu sustento das cooperativas atualmente, enquanto 40% da população canadense são filiados a uma cooperativa.246 No Reino Unido, quase um milhão de pessoas são empregadas por empresas sociais.247
Mesmo operando em um sistema econômico que dificulta a obtenção de financiamentos e não reconhece seu valor para a sociedade, esses modelos estão prosperando atualmente. Empresas que prometem distribuir lucros cada vez maiores a investidores ricos atraem um volume de financiamento maior e mais barato, enquanto cooperativas, empresas sociais e empresas de propriedade dos funcionários muitas vezes ficam limitadas à obtenção de empréstimos ou, com sorte, a financiamentos filantrópicos. Uma economia humana mudaria essa situação ao priorizar modelos de negócios sociais, e não a busca incessante por lucros.
ACABAR COM A EXTREMA CONCENTRAÇÃO DE RIQUEZA PARA ERRADICAR A POBREZA
A riqueza extrema e a desigualdade extrema não existem em uma economia humana. Para que isso seja possível, é necessário apoiar a criação de empresas e economias que assegurem que a riqueza excessiva sequer seja gerada, por meio, por exemplo, da imposição de limites à remuneração dos mais ricos e de incentivos a modelos de negócio que não ofereçam recompensas excessivas aos acionistas. Em segundo lugar, a riqueza excessiva só poderá ser eliminada se forem adotadas medidas para acabar com a influência indevida que as elites exercem sobre a política e a economia.
Além dessas ações, a principal ferramenta para a eliminação da riqueza excessiva é a tributação. As alíquotas mais altas do imposto de renda devem ser aumentadas em quase todos os países. O FMI identificou uma faixa efetiva de 50% a 70% para diferentes nações,248 enquanto Anthony Atkinson sugeriu a aplicação de uma alíquota de 60% para o Reino Unido.249 Os países em desenvolvimento devem procurar elevar a tributação sobre o patrimônio, como terras, ganhos de capital, bens e heranças, na maior brevidade possível, uma vez que essas são, claramente, fontes de receitas progressivas. O FMI já demonstrou que isso é possível em muitos países e que diversos países em desenvolvimento estão à frente dessa tendência.250
Várias outras políticas fiscais poderiam ser implementadas para limitar a riqueza eficazmente:
• Um pequeno imposto sobre transações financeiras, Imposto sobre Operações Financeiras, foi descrito pelo FMI como altamente progressivo,251 na medida em que seria pago pelos mais ricos da sociedade. Ele serviria também para controlar os excessos do setor financeiro, um dos maiores responsáveis pela intensificação da crise da desigualdade. Dez países europeus já concordaram em implementar esse imposto. Estima-se que a cobrança de uma pequena taxa de cerca de 0,05% sobre operações como a compra e venda de ações, títulos, moedas estrangeiras e instrumentos derivativos poderia gerar US$ 350 bilhões em receita por ano apenas com transações realizadas nos Estados Unidos.252
• O economista francês Thomas Piketty propôs a cobrança de um imposto global sobre a riqueza. Na mesma linha, com base em dados divulgados pela Forbes em fevereiro de 2014, a Oxfam calculou que uma alíquota de 1,5% sobre patrimônios superiores a US$ 1 bilhão geraria US$ 72 bilhões por ano, se todos os bilionários pagassem o imposto.253 Essas receitas seriam suficientes para colocar todas as crianças na escola e garantir a disponibilidade de enfermeiros, medicamentos e outros serviços de saúde que poderiam salvar a vida de seis milhões de crianças. Considerando que esses bilionários obtêm regularmente retornos sobre seu patrimônio que variam de 5 a 10%, o imposto seria também muito acessível.254 Vários bilionários concordaram em se juntar a Bill Gates e distribuir uma parte de suas fortunas. Embora louvável, essa atitude não substitui a necessidade de uma tributação adequada e justa, fato observado pelo próprio Bill Gates.255
• Para ativos mantidos em empresas de fachada, trustes e fundações, e para os quais não seja possível identificar publicamente os beneficiários efetivos que estariam sujeitos ao pagamento do imposto sobre patrimônio, poderia ser aplicado um imposto sobre patrimônios anônimos (Anonymous Wealth Tax, ou AWT, na sigla em inglês), como proposto por James Henry.256 Isso só exigiria um acordo entre o número reduzido de países ricos que são os destinos finais de fortunas anônimas. Henry estima que se esse imposto fosse aplicado aos 50 maiores bancos privados, gestores de ativos, fundos de cobertura e seguradoras, um imposto sobre patrimônios anônimos de 0,5% poderia gerar de 50 a 60 bilhões de dólares por ano, que correspondem, no máximo, a 10% da renda 38 obtida com esses ativos mantidos offshore. Se esse imposto sobre patrimônios anônimos fosse cobrado a uma alíquota superior à do imposto sobre patrimônio, ele não apenas geraria receitas adicionais como também aumentaria os custos do sigilo financeiro e serviria de incentivo para seus titulares declararem quem são.
UMA ECONOMIA HUMANA OPERARIA IGUALMENTE A FAVOR DE MULHERES E HOMENS
A igualdade de gênero estaria no centro da economia humana, assegurando que as duas metades da humanidade tenham as mesmas oportunidades na vida. As barreiras que impedem o progresso feminino, como o acesso à educação e à saúde, seriam eliminadas. Normas sociais deixariam de determinar o papel da mulher na sociedade e, particularmente, seu trabalho não remunerado de cuidar das crianças e do lar seria reconhecido, reduzido e redistribuído, e a ameaça subjacente da violência não estaria presente.
Ações coletivas por parte das mulheres são fundamentais – e sua eficácia é maior quando defensores dos direitos da mulher que atuam em organizações comunitárias e da sociedade civil, centros de estudos e departamentos de universidades conseguem estabelecer alianças estratégicas com atores de partidos políticos, burocracias estatais e instituições regionais e globais258.
TECNOLOGIA PARA TODOS
Uma economia humana abraçaria inovações tecnológicas – especialmente em virtude das incontáveis melhorias que elas trazem para a vida das mulheres por meio de tecnologias que poupam trabalho. À medida que novas tecnologias são desenvolvidas, no entanto, torna-se cada vez mais importante saber quem as controla, quem se beneficia delas e qual tecnologia deve ser aplicada por ter a maior utilidade social. Precisamos garantir que a tecnologia torne o Quadro 8 – Mobilizando agricultoras para reivindicar seus direitos em Utta Pradesh259 Mais de 40% das 400 milhões de mulheres que vivem em áreas rurais da Índia trabalham na agricultura e em outras atividades afins. No entanto, por não serem reconhecidas como agricultoras e não possuírem terras, as mulheres têm acesso limitado a programas governamentais e a crédito, o que restringe sua produtividade agrícola. Em um estudo conduzido em 2006 com o Grupo de Ação Ambiental de Gorakhpur (GEAG), a Oxfam constatou que apenas 6% das mulheres possuíam terras, 2% tinham acesso ao crédito e apenas 1% tinha acesso a programas de treinamento em atividades agrícolas. Para mudar essa situação, foi criada em 2006 a Campanha AAROH, cujo objetivo é ajudar mulheres agricultoras a reivindicar seus direitos. Essa campanha recebe o apoio da Oxfam Índia e é liderada pelo GEAG em coordenação com outras quatro organizações não governamentais da região. Nos primeiros anos, a campanha promoveu a aceitação social das mulheres como agriculturas. Após conseguir criar o espaço jurídico necessário para as mulheres serem reconhecidas como agricultoras, a campanha mudou de direção em 2011 e passou a defender a emissão de títulos conjuntos de terra. Desde que foi lançada, a campanha envolveu mais nove mil agricultoras, popularizou o termo “mulheres agricultoras” (ou mahila kisan, em indiano), mobilizou 6,8 mil homens para dividirem suas terras com suas esposas e envolveu governos locais e estaduais. Em março de 2015, o governo de Uttar Pradesh passou a não cobrar um imposto sobre a transferência de terras para um cônjuge ou parente mais próximo. 39 mundo mais igual, e não menos. A demanda de mercado significa que novos medicamentos satisfazem as necessidades dos que têm dinheiro, colocando os problemas do mundo rico acima da necessidade de tratar pacientes em países em desenvolvimento. Em 2014, o laboratório sueco-britânico AstraZeneca interrompeu todas as atividades iniciais de pesquisa e desenvolvimento de tratamentos para malária, tuberculose (TB) e doenças tropicais negligenciadas e passou a concentrar seus esforços em medicamentos contra câncer, diabetes e hipertensão – todas doenças que afetam países ricos, com um número potencialmente enorme de pessoas dispostas a pagar os elevados preços cobrados por medicamentos novos.260 Ao mesmo tempo, generosos direitos de propriedade intelectual permitem aos desenvolvedores de tecnologia acumular enormes fortunas que, em muitos casos, são completamente desproporcionais ao valor que investiram.
Os governos não podem ser observadores passivos dessa situação. Eles desempenham um papel útil no desenvolvimento de tecnologias que beneficiam pessoas e o planeta. Recursos públicos financiaram tecnologias que instituições privadas de financiamento avessas a riscos não teriam financiado, como pesquisas iniciais sobre energia eólica e solar.262 Na verdade, investimentos governamentais têm sido a espinha dorsal das inovações mais bem-sucedidas das últimas décadas.263 A economista Mariana Mazzucato salienta que “todas as importantes tecnologias que tornam o iPhone tão “inteligente”, por exemplo, são financiadas por organizações do setor privado: o GPS, a internet, a tela sensível ao toque […], todas as quais devem o seu financiamento ao Estado”.264
Em uma economia humana, o governo deve, portanto, desempenhar um papel mais ativo no sentido de garantir que as tecnologias que ele ajuda a desenvolver satisfaçam as necessidades de todos e que a titularidade da propriedade intelectual beneficie não apenas os que as desenvolveram, mas seja gerida no interesse da sociedade, inclusive das pessoas cujas vidas poderiam ser transformadas pelo acesso a essas tecnologias.
Os governos precisam intervir no sentido de influenciar o rumo das mudanças tecnológicas no mundo do trabalho também. Tony Atkinson afirma que os impactos das mudanças tecnológicas na desigualdade devem representar “uma preocupação explícita dos formuladores de políticas”. Os governos devem pesar os benefícios do aumento da produtividade ou da eliminação da necessidade de trabalhos perigosos contra os impactos distributivos no longo prazo e a necessidade de conservar funções que dependam essencialmente do fator humano.265
MOVIDOS POR ENERGIAS RENOVÁVEIS SUSTENTÁVEIS
Garantir um ambiente sustentável é essencial para uma economia humana. O impacto ambiental das atividades humanas seria plenamente considerado por formuladores de políticas e empresas, e investimentos seriam feitos em atividades e tecnologias progressistas de baixo impacto. Isso é particularmente importante no setor da energia.
Os combustíveis fósseis têm impulsionado o crescimento econômico desde a revolução industrial, mas são incompatíveis com uma economia humana que beneficia a maioria. A poluição local do ar causada pela queima de carvão provoca cerca de 670.000 mortes prematuras por ano na China e 100.000 só na Índia,266 sendo que as comunidades mais pobres ou excluídas são frequentemente as mais expostas a esse risco. A destruição causada por mudanças climáticas fora de controle é ainda mais devastadora para as muitas pessoas que estão fora do grupo do 1% mais rico, que não conseguem se isolar de condições climáticas mais extremas e da elevação do nível dos mares.
Uma economia humana se tornaria independente dos combustíveis fósseis e embarcaria em uma jornada de transição rápida para o uso de energias renováveis sustentáveis. Para manter o aumento da temperatura bem abaixo de 2ºC, precisamos garantir a eliminação progressiva do uso de combustíveis fósseis até 2045-55.267 Isso é economicamente viável e essencial para o nosso futuro comum.
VALORIZANDO E MENSURANDO O QUE REALMENTE IMPORTA
Fundamentalmente, uma economia humana consideraria o PIB apenas como um indicador imperfeito de progresso. Ele seria complementado por outros indicadores mais úteis para se avaliar a qualidade de vida, o bem-estar e as possibilidades disponíveis às pessoas de satisfazer adequadamente suas necessidades humanas fundamentais. 268 Medidas alternativas e mais inclusivas devem ser um componente fundamental da formulação de políticas globais, como o Indicador de Progresso Genuíno269 ou o Índice para uma Vida Melhor270 da OCDE e o Índice de Progresso Social 271. Os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável oferecem um conjunto de medidas pertinentes e uma oportunidade para costurar um acordo global que priorize resultados humanos mais fundamentais paralelamente ao crescimento do PIB.
Na economia humana, independentemente do indicador, a distribuição da renda nacional prevaleceria sobre qualquer foco em médias simples, inclusive no nível familiar. A redução da desigualdade e do fosso entre ricos e pobres deve ser incorporada aos indicadores que usamos para mensurar o progresso das nossas sociedades.
Em uma economia humana, todo o trabalho realizado por mulheres seria devidamente considerado. Mensurar o trabalho não remunerado de cuidar de crianças e outras pessoas em termos do PIB é o primeiro passo para promovermos uma mudança extremamente necessária nas normas que definem o que é trabalho valioso e “real”. Uma economia humana deve assegurar o reconhecimento, a redução e a redistribuição das responsabilidades pelo cuidado com crianças e com o lar, um maior apoio em termos de serviços públicos e uma maior disposição da sociedade de investir e pagar por empregos de qualidade nos serviços públicos.
Os recursos naturais seriam rigorosamente contabilizados no balanço, incentivando governos, o setor privado e a sociedade civil a inovar e colaborar para reduzir o desperdício, gerenciar recursos e, nesse processo, inovar e criar empregos. Além disso, o valor inerente da natureza – que vai muito além da sua utilidade econômica – seria reconhecido, com ênfase, ao mesmo tempo, nos direitos de gerações futuras de desfrutar os benefícios do mundo natural
A Oxfam lança um chamado para a criação de uma aliança de “economias centradas no bemestar”: países e regiões, apoiados por empresas e grupos sociais progressistas, que assumam o compromisso de promover um modelo de desenvolvimento com ênfase no bemestar humano e ecológico, e não em uma definição restrita de produção econômica. Essa mudança de foco levaria à reforma da hierarquia global de formulação de políticas, que atribuiria maior importância às nações com base nos seus esforços e resultados em indicadores mais amplos. A Costa Rica, por exemplo, registra os mesmos resultados de progresso social que a Coreia do Sul, embora tenha menos da metade do seu PIB per capita.273
Precisamos lutar por essa visão positiva de um futuro alternativo. Qualquer pessoa sabe, com base no seu senso comum simples, que o fato de tanto dinheiro estar em tão poucas mãos é prejudicial para a nossa sociedade e para o nosso futuro. É importante compartilhar esses recursos mais equitativamente. A Oxfam acredita firmemente que a humanidade pode fazer melhor do que isso. O combate à pobreza e a urgente necessidade de construirmos um mundo mais seguro e estável exigem que façamos isso. Podemos e precisamos construir uma economia mais humana, antes que seja tarde demais.
NOTAS para acessar entre no link abaixo:
Fonte: Oxfam