A passageira vai fazer o check-in no balcão de uma empresa aérea, no Aeroporto Internacional Tom Jobim, no Galeão. Como de praxe, a atendente pede o nome de um contato de emergência. Quase que no automático, a jovem, que viaja sozinha do Rio para Salvador, fala o número de telefone e o nome da mãe: Marielle.
– Quando falei o nome, pensei: pô… não tem mais. Pedi desculpas, e dei o número do celular da minha avó. Faltava ainda uma hora e meia para o voo. Não aguentei e desabei dentro do aeroporto, sozinha _ desabafa Luyara Santos, de 20 anos, com lágrimas nos olhos, filha da vereadora Marielle Franco (PSOL), assassinada em 14 de março do ano passado, com o motorista Anderson Gomes.
Hoje, um ano depois da morte da mãe, Luyara sente o peso de ser filha da quinta vereadora mais votada no Rio, com 46.502 votos. A responsabilidade aumenta ainda mais quando Marielle serve de inspiração para outras jovens que tentam manter a memória e as lutas dela vivas.A viagem para a casa de parentes em Salvador, logo após a morte da mãe, foi justamente por causa da pressão sobre Luyara:
– Antes já era difícil ser a filha de Marielle. Durante a eleição, minhas amigas me idolatravam. Tem gente que não me conhece e, quando descobre, diz: ‘Caraca, não acredito que estou conhecendo você’. Eu falo que sou uma pessoa normal. Trabalho, estudo, saio, tenho minhas coisas. Minha mãe é que era política, a vereadora. Eu não sou Marielle. Lógico que vou seguir os ensinamentos dela. Estou matando um leão por dia. Tem dias que acordo sem forças, mas preciso ir – diz ela.
No entanto, a vida de Luyara, que hoje mora com os avós, a tia e a sobrinha num apartamento simples no subúrbio do Rio, tem empurrado a jovem cada vez mais para a política. Na verdade, isso vem acontecendo desde seus sete anos. Em 2006, Marielle a levou ao bloco da Maré, “Se Benze que Dá”, fundado pela vereadora, que nasceu e morou lá. Ela queria que o favelado exercesse seu direito de ir e vir dentro da comunidade. Como o local é dominado por diferentes facções criminosas, era uma forma de o moradores atravessarem alguns pontos do conjunto de favelas, o que era impossível nos demais 364 dias do ano.
– Eu ia com ela sempre, desde pequena. Outra iniciação à política foi quando ela foi trabalhar no gabinete do Marcelo Freixo (PSOL). Ele chegou a fazer seminários para introduzir os funcionários no mandato. Fiquei a semana inteira indo com a minha mãe, entendendo o que era política. Beirava os oito anos – relembra.
Mas foi nos último dias que passou com a mãe, que ela percebeu o quanto era importante ajudar Marielle nas bandeiras que ela empunhava. Ela ajudou a colar adesivos nos leques do ‘não é não’, campanha contra o assédio iniciada no carnaval de 2018, além de distribuí-los:
– Ficamos numa correria danada entregando os leques. Todo dia era um aprendizado com ela. Aprender a se valorizar, criar a corrente do empoderamento. Eu sou a semente da minha mãe. O principal legado da minha mãe foi o de as pessoas se reconhecerem como mulheres, negras e, quando fosse o caso, assumirem serem LGBTs.
A última troca de mensagens pelo WhatsApp entre mãe e filha, no dia 14, poucas horas de Marielle ser morta, se relacionava à importância de se valorizar como mulher negra:
– Quando era mais nova, eu alisava o cabelo. Minha mãe também fazia isso na juventude dela. Ela me mandou uma matéria sobre cuidados com o cabelo. Ela dizia: ‘Para a gente nunca se esquecer de cuidar da nossa coroa’.
Luyara se ressente de ter visto a mãe pela última vez na segunda-feira, dia 12. A conjuntivite atacou praticamente a família toda, menos Marielle. Workaholic e com várias decisões para tomar numa semana em que o nome dela seria lançado como vice do candidato ao governo do estado, Tarcísio Motta, Marielle pediu que a filha ficasse com a avó.
— Ela sempre foi muito protetora mas, neste dia, ela chama a minha atenção, pois não queria pegar conjuntivite por causa do trabalho. Reclamou: ‘Você está maluca garota, preciso trabalhar a semana inteira, estou cheia de coisa para fazer’. Respondi: ‘Tá bom, mãe, desculpa’ — relembra a jovem.
Luyara entra em casa. Gasta apenas cinco minutos para pegar as coisas e ir para a avó.
— Foi o último dia que vi a minha mãe, na segunda-feira – lamenta, com a voz embargada, que não teve chances de lhe dar um beijo.
Embora tenha ficado brigada com a mãe, a mágoa durou pouco. Marielle correu com a avó, Marinete Silva, no dia seguinte, para tentar comprar o colírio que o médico receitara à jovem. Como havia um surto de conjuntivite à época, o medicamento estava em falta. Coube ao motorista Anderson levar o remédio, pois ele o tinha em casa.
Ficaram as lembranças dos últimos instantes com Marielle, que estavam cada vez mais escassos por causa da política. Só sobravam os fins de semana. Luyara, que nunca dá entrevistas por ser extremamente tímida, quebra o silêncio para falar de seus planos para o futuro. Órfã de Marielle, a jovem quer dar a sua contribuição, voltando às origens: ajudando a Maré, seguindo o exemplo da mãe.
— Por agora, não tenho pretensão política nenhuma. O que eu quero é ajudar as pessoas, voltar para a Maré, onde meu pai e minhas primas moram. Tentar estender a mão para amigos de infância que hoje, enfim….pegaram outro rumo na vida. Se tivessem tido uma chance, não estariam na vida que abraçaram (o tráfico). Fazer isso com o esporte — explica ela, que faz educação física na UFRJ e trabalha como assessora da deputada estadual, Renata Souza (PSOL).
— Também quero ajudar as mulheres. Minha tia era professora na Maré e dizia que 90% das alunas dela queriam ser mulheres de bandido. Quero mostrar que o caminho do empoderamento de mulheres, negras, pode ser pelo esporte, pela educação – se anima a jovem, que tatuou nela o rosto e a data de aniversário de Marielle.
Fonte: O Globo