Ex-estudante da universidade é a primeira latino-americana a ganhar um prêmio, na categoria, da Linnean Society, de Londres
Ninguém sabe ao certo quando as primeiras plantas surgiram. Alguns especialistas acreditam que elas podem ter aparecido há 470 milhões de anos, no período Ordoviciano. Entender a história das mudas pode explicar, por exemplo, as relações de parentesco entre as espécies e as interferências no meio ambiente onde elas vivem. Assunto parecido com tema de filme de ficção científica, mas importante para desvendar o padrão biológico e genético da flora.
Em matéria de biologia evolutiva, como a linha de pesquisa é chamada, a capital federal está bem representada. Thaís Vasconcelos, 29 anos, ex-estudante da Universidade de Brasília (UnB), ganhou o prêmio anual John C Marsden Medal, da Linnean Society, de Londres. A honraria é entregue à melhor tese de doutorado em biologia para programas de pós-graduação do Reino Unido. Uma das mais prestigiadas condecorações no mundo da ciência.
Thais é a primeira latino-americana a ganhar um prêmio da Linnean Society nessa categoria desde que os prêmios anuais foram estabelecidos em 1888. Ela fez graduação em ciências biológicas e mestrado em botânica na UnB. Em seu doutorado, foi estudar no Reino Unido graças a uma bolsa da Capes e do antigo programa Ciências sem Fronteiras. Alguns capítulos da tese de Thaís foram publicados em respeitados periódicos científicos internacionais.
O conceito parece complicado, mas a brasileira tira a pecha. “O que faço é reconstruir a história evolutiva de grupos de plantas através da comparação do material genético de espécies diferentes. Assim a gente descobre quem é mais próximo de quem e pode entender quando um grupo surgiu na história”, explica. A pesquisa ajuda a compreender características das plantas, como a coloração das flores e preferência por altitudes elevadas ou beira de rios, por exemplo. Com essas informações, é possível estimar a “idade” da espécie. A jovem é especialista em plantas tropicais.
O trabalho premiado de Thaís estudou a família Myrtaceae, que inclui plantas como a pitanga e o eucalipto (sim, eles são da mesma família!). “Entre as descobertas mais legais está que essas plantas, superdiversas na América do Sul, se originaram no antigo continente da Zelândia (atual Nova Zelândia) e chegaram a mais ou menos 40 milhões de anos aqui, por meio da Antártida, quando esta ainda não era coberta por gelo. A gente sabe disso por causa do parentesco entre as plantas daquela região com as daqui e também por causa de fósseis na Antártida e na Patagônia”, conta.
Thaís conseguiu mapear a relação do formato das flores com as abelhas responsáveis pela polinização. “As flores dessas plantas precisam ter um formato específico para que a polinização aconteça e esse formato mudou muito pouco ao longo dos últimos 40 milhões de anos, o que não era um resultado esperado. Geralmente, as flores mudam muito de formato ao longo da evolução por causa da seleção por polinizadores”, comenta.
Dificuldades
Mas nem tudo são flores. As caminhadas pelas quadras do Plano Piloto, as salas de aula da UnB e os shows de bandas independentes de rock da cidade cederam espaço ao Royal Botanic Gardens Kew — espécie de “parque de diversões” para um biólogo. A pressão por resultados fez a estudante minimizar a saudade, focar na pesquisa e enfrentar o machismo. “O ambiente acadêmico ainda é muito machista e isso não é diferente na Inglaterra. Em alguns momentos, sentia grande dificuldade de ser levada a sério, quando apresentava uma ideia diferente. Isso ainda era agravado pelo fato de eu ser estrangeira”, pondera.
Apesar dos perrengues, morar fora do país foi uma experiência interessante. “Você começa a ter outra visão da própria cultura. Em termos de estrutura de pesquisa, lá é muito impressionante. Os equipamentos são absurdos e as coleções históricas são as maiores do mundo, além de toda a estrutura para experimentos em estufas e verba para pesquisa de campo. Não tem como não ficar empolgado”, conclui.
O prêmio serve como combustível para continuar pesquisando. Thaís aguarda o resultado de propostas de projetos na Universidade de São Paulo (USP), na Universidade Federal do Paraná (UFPR) e no Royal Botanic Gardens Kew. De uma coisa, ela está certa: a temporada em Brasília será curta. “Ainda não sei o que vai acontecer nos próximos meses ou onde vou trabalhar. Essa incerteza recorrente é outra coisa comum e angustiante da área acadêmica”, acrescenta.
A doutora espera que o prêmio reflita na carência de oportunidades para a carreira científica no Brasil. “É importante mostrar que aqui tem muita gente boa também e que a gente já entenderia muito mais sobre a nossa biodiversidade se houvesse mais incentivos à pesquisa dentro do Brasil. Espero que esse prêmio me dê mais energia para tentar fazer a diferença aqui, porque, às vezes, ir para fora do país parece muito atraente, parece que as coisas serão mais fáceis lá”, defende. “Ganhar um prêmio de uma sociedade tão tradicional como a Linnean Society, mesmo não sendo inglesa, foi muito legal. Fiquei empolgada ao ver que o que estou fazendo vale a pena.”
Rotina
Dos quatro anos que a estudante passou na Inglaterra, ela passou a maior parte do tempo trabalhando. “A autocobrança era grande, mas o jardim botânico era tão legal que não era nenhum sacrifício passar a maior parte do tempo lá”, ressalta. Outras coisas deixavam a rotina mais leve, como ir ao pub toda sexta-feira com os amigos e andar de bicicleta na beira do rio Tâmisa, que corta Londres. “Eu sentia muita saudade do Brasil, de uma forma que nem imaginava que ia sentir. Sentia muita falta da comida (não tem comida melhor que a brasileira!) e de alguns hábitos, como ir a um boteco e dividir uma cerveja de garrafa com os amigos (lá, cada um compra o seu copo)”, detalha.
Thaís se lembra com carinho dos tempos de UnB. “Gostava muito daquele clima universitário, mais otimista com o futuro. A gente não imagina que vai sentir tanta falta disso quando nós estamos na graduação. Foi na UnB que comecei a me interessar por botânica e por evolução, minha linha de pesquisa hoje, e ainda tenho muitos amigos que estão cursando pós-graduação lá”, conta.
Ela deixa um recado para aqueles que ainda estão na sala de aula. “Você não precisa ser um aluno exemplar para ser um bom pesquisador. Existe um apelo muito grande para o estereótipo do que é um bom pesquisador como aquele ‘nerd’. É claro que o método científico exige rigor em termos de testar hipóteses, mas a criatividade e a curiosidade, muitas vezes, são os elementos mais importantes para se chegar às conclusões mais interessantes. A ciência precisa de mais pessoas criativas, de mais curiosidade.”
Medalha
A Linnean Society de Londres, instituição que entrega o prêmio, foi fundada em 1788 e é a mais antiga sociedade para estudo de história natural do mundo. Sua sede, no centro de Londres, é popular no mundo da biologia como o palco onde a Teoria da evolução foi apresentada pela primeira vez por Darwin e Wallace, em 1858. Além da John C Marsden Medal, todo ano a Linnean Society entrega um número de medalhas e prêmios a cientistas de destaque na área de história natural.
“É claro que o método científico exige rigor em termos de testar hipóteses, mas a criatividade e a curiosidade, muitas vezes, são os elementos mais importantes para se chegar às conclusões mais interessantes. A ciência precisa de mais pessoas criativas, de mais curiosidade”
Thaís Vasconcelos, vencedora da medalha John C Marsden
Foto: Thaís Vasconcelos/Arquivo Pessoal
Fonte: Correio Braziliense