Criada em 1996, lei permite que pessoas sem filhos sejam esterilizadas; idade mínima para fazer laqueadura e vasectomia passou de 25 para 21 anos neste mês com atualização da legislação.
Diane sempre soube que não queria ser mãe e, desde os 25 anos, tenta fazer uma laqueadura, a cirurgia que corta as tubas uterinas para impedir uma gravidez. Hoje, poucos meses de completar 30 anos, a pesquisadora já contabiliza quatro tentativas frustradas na busca pelo procedimento, ainda não realizado.
“É muito chato isso. Eu mesma não posso cuidar da minha saúde e do meu planejamento familiar”, conta ao g1 a moradora do Rio de Janeiro (RJ), que preferiu não revelar o sobrenome.
Ao longo dos últimos quatro anos, ao manifestar interesse em fazer uma laqueadura, ela afirma que foi ignorada por profissionais de saúde nas redes pública e particular. “A enfermeira pegou a lei da minha mão para mostrar para a supervisora dela e, quando voltou, disse que eles não estavam reconhecendo essa lei”, relata Diane.
- Citada acima, a lei do planejamento familiar é de 1996 e, no ano passado, foi atualizada;
- Em 5 de março deste ano, começaram a valer novas regras para a esterilização no Brasil;
- A idade mínima para fazer laqueadura ou vasectomia passou de 25 para 21 anos;
- Quem tem pelo menos 2 filhos vivos também está autorizado, independentemente da idade;
- Pessoas sem filhos podem fazer, desde que tenham a idade mínima;
- É necessário esperar 60 dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico;
- Foi dispensada ainda a autorização do cônjuge para realizar a cirurgia;
- Nos últimos quatro anos, foram feitas 324.272 laqueadura no SUS.
Após muita insistência, Diane foi colocada na fila de cirurgias eletivas do SUS no final de 2022. Mas, dois meses depois, o status apareceu como negado, e nenhuma explicação foi dada a ela.
Já a professora Fabiane Pereira esperou seis anos até entrar na sala de cirurgia, em novembro de 2020, quando fez a chamada salpingectomia (siga lendo a reportagem e entenda a diferença).
“Ouvi todas aquelas frases clichês: ‘você vai se arrepender’, ‘você é muito nova’, ‘e se um dia o seu marido quiser ter filhos?’ Ou seja, minha vontade nunca foi importante. Já ouvi de uma médica ginecologista que a mulher que não quer ter filhos é incompleta”, relatou Fabiane.
Sistema reprodutivo feminino — Foto: Freepik/Divulgação
A lei é clara (e mal interpretada)
- No caso das mulheres, o procedimento é a laqueadura: é feito um corte nas trompas de falópio, com o objetivo é interromper o “caminho” entre o ovário e o útero;
- Isso evita o contato do espermatozoide com o óvulo e, assim, pode impedir uma gestação;
- Nos homens, o procedimento é a vasectomia.
“Em homens e mulheres com capacidade civil plena e maiores de 21 (vinte e um) anos de idade ou, pelo menos, com 2 (dois) filhos vivos, desde que observado o prazo mínimo de 60 (sessenta) dias entre a manifestação da vontade e o ato cirúrgico, período no qual será propiciado à pessoa interessada acesso a serviço de regulação da fecundidade, inclusive aconselhamento por equipe multidisciplinar, com vistas a desencorajar a esterilização precoce”, diz a lei.
Apesar de ser claro, o texto ainda é mal interpretado. Reunidas em grupos nas redes sociais, mulheres que não querem ser mães trocam experiências sobre a realização da laqueadura e fazem listas compartilhadas com nomes de médicos que fazem o procedimento, além dos estados em que atuam.
Nos grupos, também incentivam mulheres a levar a legislação “embaixo do braço”, assim como fez Diane e Fabiane, para evitar qualquer manifestação contrária à cirurgia.
A lei não incentiva a esterilização, mas autoriza quem quer fazê-la. Médicas ginecologistas ouvidas pelo g1 explicam que o papel dos profissionais de saúde é informar e aconselhar a pessoa sobre a laqueadura e a possibilidade de adoção de outros métodos contraceptivos, com base em evidências científicas e no quadro de saúde da paciente.
“Mas a decisão da mulher é soberana e deve ser respeitada. Esse é um desafio: a capacitação dos profissionais de saúde envolvidos em saúde sexual e reprodutiva com esse entendimento”, diz a ginecologista e obstetra Teresa Derraik, da Rede Feminista de Ginecologistas e Obstetras.
Mayra Boldrini, ginecologista do Hospital Vergueiro (SP), explica que a paciente, quando manifesta o desejo de fazer uma laqueadura em uma consulta, precisa ser informada pelo médico sobre os detalhes envolvendo o procedimento, além das alternativas a ele.
“A gente tem que explicar todas as abordagens e quais são os riscos da cirurgia. É um procedimento seguro, mas possui riscos como qualquer outra cirurgia. Isso não deve servir para desencorajá-la, mas para mostrar como funciona”, afirma Mayra.
Para a ginecologista e sexóloga Rayanne Pinheiro, quando uma mulher está convicta de que não quer ter filhos, isso precisa ser validado. “Se ela diz que é uma decisão própria e que tem certeza disso, não cabe ao profissional (de saúde) fazer nenhum tipo de discussão, não cabe a ele descredibilizar essa mulher”, completa.
“O médico, apesar de ser um técnico em saúde, é um ser humano, e está inserido em um contexto social amplo onde temos uma sociedade machista e patriarcal que, muitas vezes, invisibiliza as lutas femininas e acaba tirando o poder de escolha delas”, diz Rayanne.
O que é a laqueadura — Foto: Wagner Magalhães/Arte g1
A busca pela laqueadura no SUS
Desde pequena, Julia Vitoria sabe que não quer ter filhos. Na infância, viu de perto casos de gravidez na adolescência e de mães que tiveram que criar os filhos sozinhos após o abandono paterno. Com 21 anos, a jovem foi beneficiada com a recente mudança na lei que alterou a idade mínima para fazer a laqueadura e está no processo para fazer o procedimento.
“Tentei adiantar a papelada e os 60 dias obrigatórios antes de a lei entrar em vigor, mas não consegui”, conta. “Não é porque foi dado o encaminhamento que tudo vai ser tranquilo. Posso ser barrada daqui para a frente. Estou com uma expectativa de 70%”, afirma Julia, que tenta fazer a cirurgia pelo SUS.
Moradora de Campinhas (SP), Talita, de 31 anos, decidiu fazer a laqueadura pois diz ter certeza de que não quer ser mãe e após usar outros métodos contraceptivos, como o DIU hormonal (mais conhecido como Mirena).
“Eu cheguei à conclusão de que a esterilização é o melhor caminho para mim porque eu realmente não quero ter filhos. Não vou mudar de ideia, há muitos anos eu penso nisso”, conta Talita, que pediu para ter o sobrenome ocultado.
Em janeiro desde ano, ela procurou o posto de saúde para dar entrada no procedimento e disse que ficou surpresa – mas de uma forma positiva. “Cheguei lá com a lei embaixo no braço e com 20 pedras na mão depois dos relatos que eu li. Não teve nenhum questionamento”, diz.
De 2019 a 2022, foram realizados 324.272 procedimentos de laqueadura no SUS. Desses, 218.926 em mulheres entre 25 a 35 anos. A média de idade das mulheres que realizaram o procedimento é de 30 a 34 anos.
Os dados foram levantados pelo Ministério da Saúde a pedido do g1. No caso de mulheres sem filhos ou com o status não informado, o número de laqueaduras praticamente dobrou nos últimos quatro anos: em 2019, foram 653 cirurgias. Em 2022, o número saltou para 1.241. A quantidade de cirurgias é maior entre mulheres com dois filhos: foram mais de 43 mil procedimentos no ano passado.
Há também relatos de mulheres que nem sequer conseguiram abrir o processo. “Me disseram no posto que é muito difícil conseguir pelo SUS”, afirma uma moradora de Maricá (RJ) que não quer se identificar.
“A gente fica até meio desanimada, né. Agora estou no processo de colocação do DIU, porque a laqueadura só pagando pelo visto”, lamenta.
A quantidade de laqueaduras feitas no SUS é muito maior do que a inserção de dispositivos intrauterinos, os DIUs: foram mais de 70 mil procedimentos desse tipo em 2022.
Laqueadura, salpingectomia e outros métodos
Outro procedimento adotado por mulheres que buscam a esterilização é a salpingectomia. A diferença é que, nesse caso, há a retirada das trompas, e não a estrangulação do canal tubário, como acontece na laqueadura. O método escolhido vai depender da paciente e do andamento da cirurgia.
“A abordagem cirúrgica é determinada pelas condições do corpo de cada uma. Às vezes, nos programamos para uma laqueadura e há varizes na pelve ou um sangramento não programado que podem justificar a necessidade de retirar a trompa, por exemplo”, afirma a ginecologista Ana Teresa Derraik, que também é diretora da Maternidade Santa Cruz da Serra, em Duque de Caxias (RJ).