“O tribunal estadual emprega argumentação que reproduz o que se identifica como a cultura do estupro” diz a decisão do STJ
Em uma decisão com duras críticas à instância inferior, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) reverteu uma absolvição concedida pelo TJ (Tribunal de Justiça) do Mato Grosso a um jovem de 18 anos que era acusado de estuprar uma garota de 15.
Segundo informações que constam no processo julgado pelo TJ do Mato Grosso, o jovem agarrou a vítima pelas costas, imobilizou-a, tapou sua boca e jogou-a no chão. Em seguida, tirou a blusa que ela usava, colocou a língua em sua boca à força enquanto pressionava seu abdome com o joelho.
De acordo com informações do site do STJ publicadas na terça-feira (18), “A sentença reconheceu que ele só não conseguiu manter relações sexuais com a vítima porque alguém se aproximou naquele momento em uma motocicleta”.
A decisão do juiz de primeira instância foi de que se tratava de um estupro. O jovem foi condenado a oito anos de reclusão em regime inicialmente fechado.
O processo foi, no entanto, para a segunda instância e o jovem foi absolvido por desembargadores do TJ do Mato Grosso. Para o relator do processo “o beijo [sic] foi rápido e roubado”, com “a duração de um relâmpago”. Ele teria sido insuficiente para “propiciar ao agente a sensibilidade da conjunção carnal”, e por isso não teria caracterizado ato libidinoso.
Ele também deu a entender que, em sua interpretação, a vítima teria, até certo ponto, concordado com o avanço. Para ter havido contato com a língua da vítima, “seria necessária a sua aquiescência”.
O caso seguiu para o julgamento em terceira instância, pelo STJ, que fez uma dura crítica à avaliação dos desembargadores do TJ do Mato Grosso. Segundo o relator do caso, Rogerio Schietti Cruz, a decisão reforça uma cultura patriarcal que tolera a invasão da liberdade sexual das mulheres.
“O tribunal estadual emprega argumentação que reproduz o que se identifica como a cultura do estupro, ou seja, a aceitação como natural da violência sexual contra as mulheres, em odioso processo de objetificação do corpo feminino”, disse o ministro, que lembrou que estupro é um ato de violência e não de sexo.
De acordo com Schietti, basta ler a descrição dos fatos que constam na própria decisão do TJ para entender que se tratou de um ato libidinoso e violento contra uma menor de idade.
“Reproduzindo pensamento patriarcal e sexista, ainda muito presente em nossa sociedade, a corte de origem [o TJ do Mato Grosso] entendeu que o ato não passou de um beijo roubado, tendo em vista a combinação tempo do ato mais negativa da vítima em conceder o beijo”
A decisão do STJ e a definição de lei de estupro
Em entrevista ao Nexo, a advogada Marina Ganzarolli, membro da Rede Feminista de Juristas, afirma que a decisão do Superior Tribunal de Justiça não pode ser encarada exatamente como uma nova jurisprudência, na medida em que ela não traz um entendimento novo sobre o artigo 213 do Código Penal, que versa sobre estupro. A decisão apenas aplica o que está previsto em lei, diz.
Desde 2009, quando o artigo foi alterado, qualquer ato libidinoso não consensual passou a ser encarado como estupro.
Atos libidinosos são aqueles que envolvem contato da boca com seios, ânus e órgãos sexuais, ou a manipulação erótica – o que exclui, por exemplo aquela com finalidade médica – com mãos ou dedos dessas partes do corpo. Também estão inclusos nessa prática a introdução do pênis no ânus ou o contato do órgão sexual com os seios.
Com a alteração de 2009, a definição de estupro no código penal passou a ser a seguinte:
“Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso”
Antes da alteração de 2009, estupro era apenas a introdução não consensual do pênis na vagina. Se o pênis fosse inserido no ânus, por exemplo, tratava-se de atentado violento ao pudor. Marina destaca que, apesar dessa diferenciação, ambas as transgressões recebiam o mesmo tipo de pena.
Tom político adotado pelo STJ reflete debate mais amplo
Ao afirmar que falta em um tribunal inferior e na sociedade uma avaliação correta sobre o que configura estupro, a decisão do STJ dialoga com as demandas pela garantia de direitos das mulheres atualmente em pauta.
Faz isso adotando termos correntes no universo acadêmico e entre o movimento feminista como “pensamento patriarcal”, “sexismo”,“cultura do estupro” e “objetificação do corpo feminino”. Na leitura de Marina Ganzarolli, a decisão está “melhor escrita, mais atinada do que qualquer outra antes vista [sobre estupro]”.
Nos últimos anos, diversos casos de grande repercussão têm feito com que o debate sobre cultura do estupro extrapole o movimento feminista tradicional e a academia. Nesse contexto, a cultura do estupro passou a ser identificada como um mecanismo de aceitação e replicação de conceitos que normalizam o estupro com base em construções sociais sobre gênero e sexualidade.
A cultura de estupro em evidência
CPI SOBRE A MEDICINA
Entre 2014 e 2015, a Assembleia Legislativa de São Paulo instaurou uma Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a violação de direitos humanos em universidades paulistas. Ela foi impulsionada pordenúncias de estupros ocorridos na tradicional faculdade de medicina da Universidade de São Paulo.
#MEUPRIMEIROASSÉDIO
Também em 2015, a campanha #meuprimeiroassédio e a tomada das ruas nas manifestações que ficaram conhecidas como “Primavera Feminista” ajudaram a ampliar a discussão sobre os direitos das mulheres.
ESTUPRO COLETIVO NO RIO
Em maio de 2016, jovens publicaram na internet imagens de um estupro coletivo de uma garota no Rio de Janeiro, como uma espécie de troféu pela violência. As imagens se converteram em símbolo da naturalidade e deboche com os quais crimes dessa natureza são tratados. Ao mesmo tempo, se tornaram uma prova sólida de que havia ali um caso de violência sexual.
Esse é um fato raro, à medida que estupros geralmente acontecem no âmbito privado, afirma Marina Ganzarolli. Por esse motivo, com frequência são encarados como uma guerra de versões: a vítima diz que sofreu violência, os acusados dizem que houve sexo consensual.
Para Ganzarolli, o caso foi um ‘divisor de águas’ porque trouxe à polícia, à mídia e à população provas irrefutáveis de que se tratava de um caso de estupro.
O CASO BIEL
Durante uma entrevista com uma jornalista do portal iG, o cantor Biel a chamou de “gostosinha”, “cuzona” e disse que a “quebraria no meio” caso mantivessem relações sexuais. A jovem o denunciou à polícia por assédio sexual, o que gerou grande debate nas redes sociais impactando negativamente a carreira do cantor.
ESTAVA ERRADO: Em uma das referências feitas ao ministro Rogerio Schietti Cruz na primeira versão deste texto ele era identificado como desembargador. A informação foi corrigida às 2h40 de 21 de outubro de 2016.
Fonte: Nexo Jornal