Interrupção hoje só é permitida em três tipos de gestações, como após estupro
O STF (Supremo Tribunal Federal) realiza a partir desta sexta (3) um amplo debate com representantes de setores favoráveis e contrários à descriminalização do aborto tanto para a mulher que deseje fazê-lo como para as pessoas que a auxiliarem.
A audiência pública, com participação de 26 expositores nesta sexta e outros 26 na segunda-feira (6), servirá para ajudar os 11 ministros da corte a formar sua convicção para analisar uma ação ajuizada no ano passado pelo PSOL.
A ação pede para o STF excluir do âmbito de incidência de dois artigos do Código Penal os abortos voluntários que forem feitos nas primeiras 12 semanas de gestação. Em discussão estão os artigos 124, que criminaliza a mulher (detenção de 1 a 3 anos), e 126, que criminaliza quem provocar o aborto (pena de 1 a 4 anos de reclusão), incluindo profissionais de saúde.
O Código Penal é de 1940. A ação sustenta que esses artigos violam, entre outros, os direitos fundamentais das mulheres à vida, à liberdade, à integridade física e psicológica, à saúde e ao planejamento familiar. A audiência pública foi convocada pela ministra Rosa Weber, relatora do processo. Ainda não há data para o julgamento pelo plenário.
Hoje o aborto só é permitido em três tipos de gravidez: decorrente de estupro, que cause risco à vida da mulher ou de feto anencéfalo.
Diante do tema, que encontra eco nos mais diversos grupos da sociedade, o Supremo espera público recorde. No plenário onde serão as falas, que comporta 126 pessoas, foram postas cem cadeiras extras. Em outra sala do prédio foi instalado um telão. Haverá transmissão ao vivo pela TV Justiça e pelo canal do STF no YouTube a partir das 8h20.
A defensora pública paulista Ana Rita Prata, do Núcleo Especializado na Promoção dos Direitos das Mulheres, falará na audiência sob o ponto de vista do direito penal. Ela conta ter acompanhado 30 casos de mulheres criminalizadas em SP e pretende tratar da seletividade da Justiça.
“São mulheres pobres, todas elas, já são mães de outras crianças, são responsáveis por essas crianças —cuidadoras e provedoras dos seus filhos. E a maior forma de criminalização dessas mulheres é por meio de denúncias ou testemunho de profissionais de saúde. Nós e seus conselhos de classe entendemos que eles [profissionais] estão violando o dever ético de sigilo”, diz.
A defensora lembra que mulheres ricas e da classe média também abortam. “A questão é que essas mulheres, além de fazerem abortos seguros, apesar de clandestinos, não são responsabilizadas no sistema de Justiça criminal. É um crime não aplicado para todas.”
Do outro lado, a professora da UnB (Universidade de Brasília) Lenise Garcia, que atua na área da biologia, vai abordar os aspectos biológicos. “[Levarei] o argumento do direito à vida em todas as etapas do desenvolvimento do ser humano, que tem o início na concepção. Qualquer livro de embriologia começa com a fecundação, não há como começar de outro modo”, afirma.
Lenise integra o Movimento Nacional da Cidadania pela Vida – Brasil sem Aborto, um movimento, segundo ela, suprapartidário e suprarreligioso.
“Doze semanas é um marco sem nenhum fundamento no desenvolvimento do embrião. Tem pouca diferença entre um de 10, de 14, de 15 [semanas]. O traço que se faz é totalmente arbitrário, tanto que é diferente nos vários países. Se tivesse um evento científico significativo, teria um marco uniforme”, diz, apontando para Portugal, por exemplo, onde o marco é de 10 semanas.
Questionada sobre a penalização ser maior contra mulheres pobres, como argumenta a Defensoria, Lenise reconheceu haver aí um problema. “É um problema em todos os casos. É muitíssimo mais fácil prender o ladrão de galinha do que um político corrupto que roubou milhões. Penso que a criminalização deve ser muito mais voltada para o aborteiro do que para a mulher, mas também há aí uma culpabilidade dela em função da morte do filho, que não pode ser desconsiderada.”
De acordo com pesquisa do Datafolha de novembro de 2017, a maior parcela dos brasileiros adultos seguia favorável a criminalização do aborto, embora em percentual menor. A taxa havia passado de 64% em dezembro de 2016 para 57%. Os contrários a criminalização subiram de 23% para 36%.
A Febrasgo (Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia) pretende se posicionar no STF sob o ponto de vista da racionalidade, segundo o médico César Eduardo Fernandes, presidente da entidade.
“Nenhum de nós prega o aborto. Isso é uma decisão de foro íntimo de cada mulher, do seu parceiro, da sua família, segundo suas convicções, suas crenças. A gente quer diminuir os agravos à saúde e o índice de mortalidade, que é altíssimo no país”, afirma.
“Estima-se que existam por ano meio milhão de abortos clandestinos no país. A gente sabe que 50% dos feitos na clandestinidade caminham para complicações mais ou menos graves, enquanto que, no aborto feito em condições seguras, a possibilidade de complicação é abaixo de 0,5%.”
Como noticiou a Folha, o SUS gastou de 2008 a 2017 R$ 486 milhões com internações por aborto (75% deles provocados). Foram internadas 2,1 milhões de mulheres.
A Febrasgo, que representa médicos ginecologistas e obstetras do país, só firmou um entendimento sobre o tema de dois anos para cá. “A Febrasgo deu um passo gigantesco, ela se omitia. Considero um amadurecimento nosso, após inúmeras discussões, chegarmos a essa posição”, diz o presidente da entidade.
Especialista em bioética pela PUC do Rio, Hermes Rodrigues Nery, representante da Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família, prevê tratar do tema a partir de uma abordagem política.
Para ele, há uma agenda patrocinada por organismos internacionais que querem impor o aborto —o que o Congresso e a maior parte da população não aceitam.
“Dos países da América Latina, havia expectativa por parte das fundações [internacionais] que o Brasil fosse um dos primeiros a legalizar o aborto. Mas ocorreu aqui um fato muito importante. No Congresso, proposituras pró-aborto foram rechaçadas com veemência.”
Para ele, a ação no STF não se justifica porque não existe uma controvérsia constitucional. “A legislação atual permanece como a que foi aprovada pelos constituintes, somente incluídos os casos de anencefalia [julgados no STF], e nunca houve contestação da constitucionalidade.”
Fonte: Folha de São Paulo