Trabalhadoras domésticas na Bahia estão tendo que passar semanas ou até temporadas na casa dos patrões na pandemia, sem ter folga ou poder sair, porque eles as veem como possíveis transmissoras de covid-19.
O Sindoméstico (Sindicato dos Trabalhadores Domésticos do Estado da Bahia) já recebeu mais de 28 pedidos de ajuda de domésticas, desde o início da pandemia, querendo saber o que fazer nesses casos em que não foi pré-acordado que elas teriam que dormir no trabalho e/ou em que não são liberadas para passar alguns dias em casa.
Com o temor de serem demitidas, muitas acabam aceitando as condições impostas pelos patrões e deixam de lado o cuidado com a própria família, diz a Universa Valdirene Boaventura, secretária de assuntos jurídicos do Sindoméstico. É também a ameaça do desemprego que as impede de falar publicamente, mesmo sob condição de anonimato.
O temor de ficarem sem renda tem justificativa: o trabalho doméstico (que além de funções como limpar a casa e cozinhar inclui cuidado com idosos e crianças, jardinagem, vigilância) foi o segundo mais atingido pela crise da covid-19. Segundo o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística). 1,2 milhão de trabalhadores domésticos foram demitidos em 2020.
A maioria das trabalhadoras domésticas da Bahia que pediram ajuda ao Sindoméstico não estão recebendo adicional noturno ou hora extra, ainda que estejam pernoitando no emprego e, portanto, têm esse direito. “Elas trabalham de forma intermitente e querem orientações sobre como reivindicar os direitos na forma da lei, de adicional noturno e horas extras. Essa é a principal reivindicação dessas trabalhadoras”, explica Boaventura.
Parte delas sequer têm carteira assinada e, nesses casos, fica ainda mais difícil evocar direitos e negociar com o empregador. O sindicato não soube informar quantas das reclamantes não têm registro em carteira.
Cuidadora de idosos denunciou cárcere privado
A maioria das trabalhadoras domésticas que estão entrando em contato com o Sindoméstico, segundo conta a Universa a secretária de assuntos jurídicos da entidade, pede orientação sobre como lidar com solicitações dos patrões para dormir no emprego. Há relatos de mulheres que ficaram meses sem poder ver filho ou neto. E também houve uma denúncia de cárcere privado, segundo revelou o jornal baiano “Correio”.
“Ela procurou o sindicato por telefone e pediu socorro, pois estava sem sair do trabalho há mais de dez meses”, conta Valdirene. ‘É cuidadora de idosos e mandava mensagem para a empregadora, a filha dos idosos, dizendo que precisava sair, queria sua folga. A empregadora visualizava a mensagem e não respondia nem atendia ao telefone. Ela não saía porque não tinha como deixar os idosos sozinhos temendo ser acusada juridicamente de abandono de incapazes”‘.
Segundo a denunciante relatou ao Sindoméstico, as compras de mercado seriam deixadas na portaria do prédio pela filha dos idosos que alegava não poder se aproximar dos pais para não os colocar em risco de pegar a covid-19. “Mas essa trabalhadora tinha direito da folga (…). Tenho falado com ela. Ela disse que a situação ainda não se resolveu, mas amenizou. Ela está ficando no trabalho de segunda a sábado”, diz Boaventura.
Nesta terça (13), a Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) emitiu nota de repúdio e informou que levará o caso ao MPT (Ministério Público do Trabalho).
Patrões a impediram de ver filho por três meses Outro caso que chama a atenção é o da trabalhadora doméstica que mora com o filho e o neto, mas foi obrigada a se mudar para a casa dos patrões durante a pandemia. Após mais de três meses sem ver a família, reclamou. A empregadora teria então dado um “jeitinho”, passando a “permitir” a visita do filho no local de trabalho, periodicamente, com distanciamento social e máscara.
“Ela dizia que não estava vivendo, estava vegetando”, conta Boaventura. ‘O filho ia para a residência visitar a mãe e levava o neto. Mas ela não era liberada para voltara para casa para não contrair o vírus e levar para lá. Levou quase três meses para os patrões deixaram ela receber a visita do filho. Ela morava na mesma casa que o filho e era responsável por esse neto'”.
Após seis meses nesse regime, acabou pedindo demissão do local onde trabalhava havia sete anos. “Ela se sentiu obrigada a pedir demissão porque não aguentava mais”, diz Boaventura.
Há, ainda, um caso que não consta no “caderninho do sindicato”, segundo Boaventura, mas ao qual ela teve acesso. O de uma trabalhadora que relata estar há “muito tempo” sem sair da casa do patrão, um homem que ocupa alto escalão em um órgão público estadual — ela teme falar qualquer coisa por ele ser “uma pessoa poderosa”.
“Trabalhadoras estão sendo coagidas por medo de demissão”
A Fenatrad (Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas) emitiu nota de repúdio “contra a ilegalidade do confinamento obrigatório de trabalhadoras por alguns empregadores como condição pela permanência no emprego, constatado em diversos estados” e informa que levará o caso ao Ministério Público do Trabalho, evocando o artigo 15 da Constituição Federal, que trata do direito de ir e vir.
“Se a trabalhadora não fez um contrato, onde esta assinou aceitando pernoitar no local de trabalho, ela não é obrigada a ficar. O empregador não pode determinar tal conduta”, diz no documento a presidente da entidade, Luiza Batista.
Pela lei, a jornada da empregada doméstica é de até 8 horas/dia ou 44 horas/semana com uma folga semanal. No caso de quem pernoita na casa do patrão de segunda à sexta, “o correto mesmo era ter duas folgas, sábado e domingo, e retornar na segunda”, explica Bastos.
Ela diz, contudo, que é possível entrar em comum acordo sobre adicionais e folgas no momento do contrato ou por contrato adicional, em demandas como as impostas pela pandemia. Mas deixa claro que há uma diferença grande entre comum acordo e imposição.
“Pode variar [a folga] em cada acordo. Mas o que acontece: se a trabalhadora diz que não concorda, o empregador diz que não poderá mantê-la e ameaça demitir. A pessoa se vê coagida e, para não ficar desempregada, nesse momento de pandemia com 14 milhões de desempregados no país, ela aceita. Isso não é comum acordo, é imposição’, afirma Bastos.”
“Se tem medo da covid, patrão deveria pagar Uber”, diz advogada A advogada do Sindoméstico, Suely Veloso, avalia que a patroa tem medo da empregada por causa da doença e a vê como ameaça. “Como a empregada tem medo de perder seu emprego, necessita dessa renda, elas aceitam ficar na casa das patroas (…). As duas partes correm risco.”.
A lei prevê que a trabalhadora doméstica deve trabalhar até 44 horas semanais. Ao ultrapassar o horário previsto no contrato, devem ser pagos hora extra e adicional noturno.
“Eu defendo que elas não deveriam aceitar ficar na casa da patroa, que vai querer dispor dela o tempo todo em que ela estiver lá. Isso extrapola os limites jurídicos”, opina a advogada. E é difícil dizer quando começa e termina o trabalho doméstico quando a trabalhadora está dormindo na casa do patrão.
Os empregadores deveriam, ainda, dar condições para a empregada trabalhar, incluindo pagar o deslocamento para sua casa e, de lá, para a casa da patroa. “Se quer mais segurança contra a covid, que pague um táxi ou Uber, ou que as leve e busque”, diz a advogada. Além disso, devem fornecer EPIs (equipamentos de proteção individual) como máscara, álcool em gel e até face shield, se for o caso.
“Empregada tem família também. O lado mais forte que é do patrão, que muitas vezes não paga nem a mais o valor. Mas como a empregada é a parte mais fraca, é a necessitada, elas aceitam.”.
Fonte: UOL