Um projeto de reflorestamento do povo Xavante, baseado em técnicas indígenas milenares, recupera áreas do Cerrado, fortalecendo o bioma, a cultura e a economia local
Por: Ana Serra
Não é de hoje que as mudanças climáticas acendem o alerta para políticas de proteção ambiental mais rígidas com o objetivo de evitar que o desmatamento e a devastação do meio ambiente cheguem a um ponto sem retorno. Nesse sentido, o trabalho feito pelas mulheres indígenas do povo Xavante no município de Canarana, em Mato Grosso, é um sopro de esperança. Ali, uma área de 52 hectares, antes desmatada, está sendo reflorestada através de uma técnica com o propósito de recuperar áreas do Cerrado adensando para que diversas espécies animais e vegetais possam voltar a habitá-las, fortalecendo o bioma e a produção local de insumos, valorizando a cultura, os costumes e a economia da região.
Esse projeto, chamado Semêa, faz parte de uma iniciativa da Fundação Bunge e começou a ser implantado há cerca de dois anos. Segundo Cláudia Calais, diretora executiva da fundação, ele está sendo tão bem-sucedido que a expansão para outros 30 territórios indígenas já foi confirmada. “Neste ano, estamos chegando aos estados de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul e Tocantins, trabalhando de forma integrada, promovendo, levantando o debate e divulgando as práticas de produção e preservação ambiental pelas reservas indígenas. Nosso objetivo é que essas N Semeando o amanhã Um projeto de reflorestamento do povo Xavante, baseado em técnicas indígenas milenares, recupera áreas do Cerrado, fortalecendo o bioma, a cultura e a economia local Por Ana Serra práticas sejam reconhecidas e devidamente valorizadas.”
O mecanismo feminino
No território Xavante especificamente, o comando está na mão dos homens da comunidade, mas quem faz a maior parte do trabalho para mantê-la funcionando são as mulheres, as verdadeiras provedoras de insumos e de renda.
A semeadura utiliza a técnica conhecida como muvuca, que consiste em misturar diversas sementes de espécies nativas do bioma com leguminosas, que são utilizadas como adubo verde. Essa é uma técnica ancestral já praticada pelas mulheres xavantes, passada de geração para geração em um ritual milenar. Ela foi mecanizada com o auxílio da prefeitura de Canarana, o que ajudou a fortalecer o protagonismo feminino na cultura alimentar e na gestão do território.
“A gente escolheu trabalhar com essa técnica porque, de acordo com especialistas, é um caminho para que se consiga ter uma floresta secundária mais próxima da floresta primária, que foi suprimida. E, é claro, fazemos tudo isso em conjunto e dentro da especificidade de cada comunidade, respeitando a forma de trabalho e a natureza de cada um”, afirma Calais.
Segundo a diretora, o respeito aos costumes e a permissão para executar cada etapa do projeto são essenciais para o sucesso do reflorestamento e é justamente isso que faz com que o processo seja mais demorado do que o normal. Tradicionalmente, com grandes produtores, a duração do plantio gira em torno de 20 dias, enquanto que esse trabalho ao lado das comunidades perdura por meses.
“Precisamos de políticas públicas que olhem para a população tradicional, o que eles fazem aqui é extremamente importante. Por exemplo, hoje, estamos desenvolvendo um projeto piloto de reflorestamento em uma área de 270 hectares de grandes produtores e todas as sementes estão vindo da coleta de indígenas de diferentes regiões. Se eles não estivessem dentro desta área preservada, não teríamos essa semente para ampliar a área verde”, diz.
O desafio das etnias
Enquanto no território Xavante as mulheres não assumem a posição de comando em questões de título, a outra etnia que o projeto Semêa assessora na produção de insumos e no reflorestamento, os Boe Bororo, as tem como as maiores autoridades. “São elas que dão nome à família. O sobrenome do filho é da mulher. São sociedades diferentes mesmo dentro da própria etnia”, diz. “Por exemplo, enquanto muitas mulheres xavantes às vezes nem se dirigem a você durante uma conversa – elas falam com o marido e ele repassa –, em outro território da etnia que fomos, uma mulher xavante cacica dava as ordens e tudo tinha que ter a sua aprovação. Por isso, quando temos um projeto como esse, trabalhamos com a Funai e precisamos ter atenção ao local. Somos nós que temos que nos adaptar a eles e não o contrário”, afirma Calais.
A intenção da Fundação Bunge é expandir o Projeto Semêa para outras regiões do Brasil, investindo no trabalho de reflorestamento focado em práticas regenerativas. A ideia é ampliar ações e conhecimentos que estimulem a preservação não apenas da floresta, mas também do solo e da água. Além de promover a conscientização sobre o grande papel do indígena para o futuro e sobrevivência do planeta.
Como destaca Calais, quando uma técnica ancestral é usada para uma necessidade mais contemporânea, é como um grito pela sobrevivência que precisa ser ouvido. Que esse grito ecoe em alto e bom som.
Fonte: Marie Claire