Poucos momentos em minha vida gritaram tanto a minha identidade de mulher negra quanto o meu “primeiro assédio racista”. Eu já havia passado muitos constrangimentos na rua como uma adolescente, mas, se for possível classificar os piores tipos de “cantadas” que ouvimos na rua, eu diria que nenhuma se compara a ser chamada de macaca depois de ignorar um convite para o samba. Eu tinha 15 anos.
Eu não me lembro do rosto do indivíduo, minha cabeça já estava baixa na primeira vez que ele se referiu a mim, me chamando de “mulatinha”, percebendo minha pouca idade. Nesse momento, eu já havia estava me punindo mentalmente por ter passado por ali no meu caminho para o curso de inglês, mesmo sabendo do bar que ficava aberto durante a tarde nos fins de semana para receber os turistas que iam a praia.
Eu apertei o passo, ainda olhando para o chão, pois queria sair dali o mais rápido possível. Mas logo em seguida, vi os passos do meu agressor ao lado dos meus e me arrepiei de medo. Ele havia deixado sua cadeira na porta do bar e corrido para me alcançar só para deixar claro seu descontentamento com o fato de que o ignorei. “Não sei da onde você tira tanto orgulho, sua macaca”, disse e se retirou.
Até para mim, que cresci, assim como minha família negra, negando minha identidade, aquilo foi um aviso do que estaria por vir com meu amadurecimento. Os homens agora me veriam de um modo diferente que viam minhas amigas brancas.
Isso faz parte da experiência de crescer negra, ainda que sem consciência disso: depois do preterimento na infância, falta de amor e atenção de colegas, professores e até alguns familiares, um súbito interesse com a chegada da puberdade e da vida adulta, mas sem deixar de ser preterida, pois este interesse não costuma passar do convite para o sexo.
E esta visão, tão frequentemente reforçada pela mídia, nos coloca como objetos exóticos, como justificativa para o tipo de assédio ainda mais agressivo que sofremos. “Há sempre uma jogada, uma pergunta, uma imagem construída para remeter à sensualidade exacerbada. Mulheres negras representam perigo, ou são sedutoras ou os dois, são perigosas porque são sedutoras”, argumenta a jornalista negra Aline Ramos, na terceira parte do Minimanual de Jornalismo Humanizado da Think Olga, sobre racismo.
Assim é a vivência de uma mulher que tem que lidar também com o racismo, além do machismo. A “chegada da mulata” é o tema da palestra da youtuber e estudante de ciências sociais Nátaly Neri no TEDx, onde ela muito pontualmente coloca: “Quando a mulata chega, é insuportável, porque elas não conseguem andar na rua, elas não conseguem conversar com pessoas sem sentir o desconforto dos olhares e piadas direcionado ao seus corpos”.
Hoje, consciente da minha raça e cercada de mulheres que lutam para combater a cultura do assédio e do estupro a qual estamos inseridas socialmente, me sinto mais forte para falar sobre as camadas do problema como uma mulher negra. Não é à toa que conto este relato aqui, publicamente, pela primeira vez.
Isso não significa que posso deixar meus medos de lado. Medo de ser agredida caso reagir a um grito racista na rua. Medo de ser julgada e desacreditada por conta da minha cor ao enfrentar ou denunciar uma agressão, como aconteceu com Renata Hill e Patreese Johnson, mulheres negras e lésbicas americanas, que foram presas por se proteger de um assédio sexual nas ruas de Nova York (a história do ponto de vista das duas foi contada no documentário Out In The Night).
Ao mesmo tempo, também temo não conseguir demonstrar completamente a minha aversão ao assédio, pois, para o assediador, a cor da minha pele, o meu cabelo ou o tamanho dos meus lábios lhe dizem que estou sempre disponível e, muitas vezes, sinto a necessidade de deixar claro que não.
Mas a coragem de falar isso parte de uma necessidade que é maior do que os meus medos: o fato de que estes também são os medos de outras mulheres negras. Vem também da inspiração de ver Djamila Ribeiro, no trailer do documentário Chega de Fiu Fiu – O Filme, expondo a questão como o problema cultural que é.
A necessidade de trazer este recorte para o debate sobre assédio sexual é urgente no Brasil, onde, segundo a ONU, houve um crescimento de 54% na mortalidade da mulher negra entre 2003 e 2013, enquanto as mortes de mulheres brancas caíram 10%. Onde a mobilidade urbana (e os assédios encontrados nos caminhos) da mulher negra também é mais difícil, pois a maioria mora em periferias. Onde, quando acendemos socialmente, somos facilmente vistas como atrações para homens brancos e ricos, muitas vezes estrangeiros.
“Da cor do pecado”, “mulata”, “neguinha”. Nenhum desses termos me definem. Sou uma mulher, sou negra, jornalista, esposa, filha de outra mulher negra e mereço respeito. Mas porque ainda preciso abaixar a cabeça quando ouço estas palavras na rua?
Karoline Gomes é produtora de conteúdo e assistente de comunidades da ONG Think Olga.
Arte: Dika Ribeiro.
Fonte: ThinkOlga