Dados da rede Justiceiras, que completa 2 anos, mostram que violência psicológica é a agressão mais frequente
Nascido no início da pandemia de Covid-19 para acolher mulheres vítimas de violência doméstica, o projeto Justiceiras completa dois anos nesta quinta-feira (31). De lá para cá, a rede de apoio recebeu cerca de 9.483 pedidos de ajuda que foram atendidos pelas quase 10 mil voluntárias.
O levantamento de dados colhidos pela campanha ao longo dos últimos dois anos mostra que cerca de 7.000 mulheres são vítimas dos ex ou de atuais parceiros. Além disso, mais de 3.000 vivem com o agressor.
A violência psicológica é a agressão mais frequente entre as mulheres e manifestada por 82,96% delas, seguida da patrimonial (68,59%), física (59%) e sexual (52,48%).
O projeto acumula casos midiáticos. As acusações contra Saul Klein, por exemplo, foram feitas ao Justiceiras, que também prestou assistência psicológica para as atrizes que acusam Sergio Penna, um dos principais preparadores de elenco no país, de assédio sexual.
Para a promotora Gabriela Manssur, referência no combate à violência contra a mulher no Brasil e criadora do Justiceiras, a denúncia aos abusos psicológicos é um dos pontos peculiares do projeto, mas ela chama a atenção ainda para o fato de que nada impede de que a mulher sofra mais de um tipo de agressão.
Isso porque esse tipo de denúncia não ocorre com frequência quando a mulher procura um órgão de defesa contra a mulher. Manssur explica que isso acontece por dois motivos principais: o primeiro, porque é comum que ela não se identifique como vítima desse tipo de violência. Além disso, não é raro que profissionais que atuem nesses ambientes não saibam como levar esse fato às autoridades.
“A manipulação do agressor faz com que a mulher não entenda que ela é vítima de violência. Ela costuma se ver em situações de felicidade, cuidado, proteção e, de repente, vem a agressividade e abuso”, diz Manssur, que cita que esse tipo de agressão, muitas vezes, está nas constantes traições, no impedimento de que ela trabalhe, nas frequentes reclamações em relação à roupa que ela veste e até na realização de dívidas em nome da mulher.
Ela afirma que, nesses casos, como o agressor não bate, não deixa marcas aparentes, é como se a violência não se materializasse. “Só vemos a mulher vítima de violência quando ela está com o olho roxo, mas muitas vezes ela está internamente dilacerada por conta dessa desqualificação cotidiana em relação a sua autoestima.”
Normalmente, esse tipo de manipulação acontece com homens sedutores, que são bem vistos socialmente. “É comum que a sociedade se identifique mais com aquele homem que é legal, trabalha, é articulado, conversa com todo mundo. Já a mulher é sempre tachada de louca, folgada, que vive às custas desse homem, mas muitas vezes quem impediu e impôs o comportamento dessa mulher foi ele.”
Manssur comenta ainda que os abusos muitas vezes se estendem a outros integrantes da família. “É muito perigoso porque esses comportamentos vão se repetindo. Esses filhos da violência psicológica acabam repetindo esses relacionamentos ou são vítimas de abusividades. Isso acaba adoecendo a família e, futuramente, a sociedade.”
A maior parte das mulheres atendidas pelo Justiceiras tem entre 31 e 41 anos, são do estado de São Paulo (46,24%) e são de baixa renda. Cerca de 70% delas recebem até um salário mínimo, sendo que 2.773 do total não tinham renda alguma e 3.603 delas estavam desempregadas. Entre os relatos, 7 em cada 10 mulheres relataram situações de média ou de alta gravidade.
Os relatos, de acordo com a promotora, apontam que é comum que os agressores das vítimas ocupem um cargo hierárquico superior ao delas, como financeiro, religioso e empresarial. “Essas mulheres vão denunciar quando sabem que vão ser encaminhadas para as equipes técnicas competentes com a proteção e sigilo delas.”
De acordo com o levantamento do projeto, 45,1% das mulheres relataram que aquele era o primeiro pedido de ajuda delas. “Eu noto essas mulheres invisibilizadas pelo sistema, pela falta de informação e de acesso ao sistema de Justiça. Nenhuma mulher pode ser invisibilizada, porque é isso que causa o feminicídio.”
Manssur avalia que, muitas vezes, a mulher que busca ajuda entra como vítima e sai como ré das delegacias. “É preciso uma capacitação periódica de todas as pessoas que atuam na rede de proteção das mulheres, desde assistentes sociais até o juiz e o promotor, para evitar a violência institucional de gênero e que essa violência se justifique.”
A promotora afirma ainda que muitas mulheres procuram o projeto como pedido de ajuda e apoio, não para fazer uma denúncia policial. “Nosso trabalho é essencial para fortalecer essa mulher para ela enfrentar uma denúncia policial futura”, diz ela. “É uma verdadeira rota crítica quando elas decidem denunciar e é necessário que estejam preparadas para não desistir dessa denúncia.”
Como Denunciar
No site, o pedido de socorro pode ser feito na aba “procure ajuda”. É possível também pedir ajuda pelo WhatsApp (11) 99639-1212, pelo e-mail gestão@justiceiras.org.br, ou mesmo pela conta do projeto no Instagram.
Para violência sexual, é possível buscar ajuda pelo site metoobrasil.org.br, pelo WhatsApp (11) 99636 1212, no site do Projeto Justiceiras (justiceiras.org.br) ou pelas redes sociais usando a hashtag #metoobrasil.
Pela Ouvidoria das Mulheres, é possível buscar ajuda por meio do telefone (61) 3366-9229 —o número também funciona no WhatsApp. Na página oficial do Conselho Nacional do Ministério Público no Facebook é possível realizar denúncias via mensagens inbox.
Fonte: Folha de S. Paulo