O julgamento do caso Tatiane Spitzner, morta em julho de 2018 em Guarapuava, no Paraná, terminou com a condenação de Luis Felipe Manvalier à pena de 31 anos, 9 meses e 18 dias de prisão, pela prática de homicídio qualificado, com incidência das qualificadoras do motivo fútil, meio cruel, asfixia e feminicídio, porque praticado contra mulher por razões da condição de sexo feminino, envolvendo violência doméstica e familiar, assim como pelo crime de fraude processual.
Luis Felipe também foi condenado ao pagamento de R$100.000,00 reais a título de reparação mínima dos danos morais causados aos genitores de Tatiane, sendo-lhe negado o direito de recorrer em liberdade, mantendo-se, portanto, a prisão.
O caso chamou atenção desde o início pela sequência brutal de agressões praticadas pelo companheiro contra Tatiane, cenas que foram registradas por câmeras de segurança. Ela foi encontrada morta após queda do quarto andar do edifício em que residiam e Luis Felipe detido pela polícia quando já estava a 50 km da fronteira do Brasil com o Paraguai, tendo alegado que Tatiane teria se desequilibrado e caído sozinha da sacada do prédio.
Por longos sete dias de julgamento foram ouvidas testemunhas, exibidas e confrontadas provas periciais, interrogado o acusado e, ao final, os jurados acolheram a tese acusatória para reconhecer que Luis Felipe matou Tatiane, tendo ainda alterado a cena do crime, inclusive limpando vestígios das agressões.
A condenação pelo corpo de jurados formado, nesse caso, por sete homens, assim como a pena fixada pelo Juiz, precedida de fundamentação que discorreu sobre casos de feminicídio no Brasil, foi emblemática num país como o nosso, marcado por histórico padrão de tolerância e omissão nos casos de violência de gênero, que por muito tempo resultou na impunidade dos então chamados “assassinos passionais”.
Mas o julgamento do caso também acabou marcado pelo registro dos debates entre acusação e defesa, em especial, pela simulação promovida pelos advogados de Luis Felipe, reconstituindo as agressões que ele teria praticado contra Tatiane antes de sua morte.
Nas filmagens da teatralização que assumiu contornos grotescos, é possível acompanhar a sequência de puxões, chacoalhões, empurrões e até constrição do pescoço pelo advogado contra a advogada que com ele dividia a cena, tudo como recurso argumentativo para a tese defensiva de que Luis Felipe teria agredido Tatiane, sem, contudo, provocar sua morte.
Diante da repercussão negativa, tanto perante o corpo de jurados, como externamente, logo após o resultado do julgamento os advogados divulgaram vídeo justificando que a dinâmica havia sido “combinada”, portanto consentida pela advogada, para exercício da plenitude de defesa do acusado.
A questão do consentimento nesse caso já mereceria debate próprio, uma vez que consentimento válido pressupõe que o bem a ser violado seja disponível, portanto, individual. Nos casos de práticas que atentem contra a dignidade humana, como ocorrido, que representem violência simbólica contra todas as mulheres, capazes de normalizar e tornar aceitável esse tipo de agressão, não haveria que se falar em consentimento válido.
Mas, para além desse debate, o que precisa ser dito é que o avanço promovido pela legislação nos últimos anos, que resultou na qualificadora do feminicídio, proporcionando maior visibilidade sobre as circunstâncias do atentado contra a vida das mulheres por circunstâncias de gênero, também exige mudança de posturas dos integrantes do Sistema de Justiça.
O direito ao exercício da plenitude de defesa não é cheque em branco capaz de admitir verdadeiro vale-tudo no Plenário do Júri.
A plenitude do direito de defesa não se sobrepõe ao princípio da dignidade humana, não pode justificar atentado contra a memória de vítimas, emprego de linguagem discriminatória, que reforce estereótipos em desrespeito à dor de familiares; não pode admitir práticas que se afastem dos parâmetros éticos e de justiça, violadoras da dignidade das mulheres desse país.
Fonte: Marie Claire