Profissionais de saúde estão cada vez mais atentos aos protocolos de prevenção de múltiplas doenças. Na ponta da língua, estão as medicações e as mudanças do estilo de vida necessárias para a manutenção da saúde e para a evitar o surgimento de doenças como hipertensão, diabetes, depressão, infecções sexualmente transmissíveis, entre outras. Porém é comum que jovens e adultos, homens e mulheres das mais variadas idades, saiam dos consultórios de seus médicos e enfermeiros sem que se saiba qual é o método contraceptivo que usam (se é que usam e sabem usar corretamente), se desejam ter filhos e quando planejam tê-los. Se este é um questionamento pouco feito às mulheres, aos homens, é raríssimo. No Brasil, a responsabilidade da contracepção é atribuída quase que de forma exclusiva às mulheres.
Sendo uma gestação não planejada uma situação frequentemente causadora de inúmeros conflitos familiares, sérias dificuldades financeiras e até de adoecimentos potencialmente graves, é razoável pensar que profissionais de saúde deveriam perguntar ativamente para homens e mulheres em idade reprodutiva qual o método contraceptivo estão usando e se estão adaptados e satisfeitos com ele, certo? Isso deveria acontecer em toda consulta, mesmo que o que tenha levado o paciente ao consultório seja uma dor de coluna. Negligenciar este aspecto do cuidado do paciente é perigoso, mas ainda é recorrente.
Se uma gestação se inicia em período de dificuldades financeiras, de problemas de saúde da mãe ou de familiares ou em momento de instabilidade emocional e até de rompimento de um relacionamento, a chegada do bebê pode ser um gatilho para situações potencialmente graves. Dentre as preocupações de um profissional que cuida de uma mulher que vivencia uma gravidez não planejada e nem desejada, estão o risco de complicações graves e morte em abortos clandestinos, da negligência com os cuidados relacionados ao pré-natal, os episódios de depressão pós-parto, a agudização de situações de miséria econômica, o aprofundamento de situações de violência doméstica, o cuidado insuficiente para com a criança que nasce, entre outras.
Pensando de forma bem prática, uma mulher pobre, vivendo situação de violência doméstica, por exemplo, tendo apenas um ou dois filhos, coloca cinco trocas de roupa numa mochila e procura abrigo na casa de familiares ou amigos. Uma mulher com seis filhos, além de não conseguir sair, vai sentir muito mais dificuldade para encontrar ajuda para todos.Um casal pobre com um, dois, três filhos, consegue alimentá-los de forma adequada, consegue ter tempo e disposição para brincar com eles, para passear. Um casal com oito filhos provavelmente não vai conseguir.
O senso comum, principalmente das classe mais privilegiadas, quase sempre aponta que a culpa de uma mulher “escolher” ter muitos filhos é de um histórico de pouco acesso à educação formal e à cultura. Como era de se esperar, as coisas não são tão simples. Há uma complexidade de fatores envolvidos nessa suposta “escolha”, por exemplo, a dificuldade de acesso efetivo ao sistema de saúde, a escolaridade, o contexto familiar, o acesso a planejamento familiar de qualidade, o acesso a métodos seguros e eficazes, os efeitos colaterais dos métodos e a tolerância de cada mulher a esses efeitos.
Já está superada a ideia de que planejamento familiar se trata do simples controle do número de filhos. Quando uma mulher pode de forma autônoma escolher quantos filhos quer ter, quando e com qual parceiro os terá, o resultado são famílias financeiramente mais saudáveis, mulheres mais saudáveis, crianças mais bem cuidadas, recebendo mais tempo e atenção, alimentando-se melhor, vestindo-se melhor, recebendo uma educação melhor.
A imensa desigualdade social brasileira nos traz os cenários mais diversos e estarrecedores possíveis: de mulheres jovens com 8 filhos, proibidas de frequentarem a Unidade de Saúde de seus bairros e de usarem qualquer método contraceptivo, mesmo morando na segunda maior cidade do país, à adolescente de 16 anos do interior de Minas Gerais que descobriu a gravidez no quarto mês pois nunca havia sido orientada por absolutamente ninguém sobre as formas de se prevenir e os sinais do corpo com o passar das semanas.
Como médica de família nestes cenários extremos, tenho observado a potência de um planejamento familiar eficiente, especialmente se considerarmos a ampliação do acesso ao DIU de cobre através do sistema público de saúde. Trata-se de um método com pouquíssimas contraindicações, livre de hormônios, com durabilidade de até 10 anos, que não depende da memória de quem usa, que é facilmente inserido em consultório médico, sem necessidade de internação hospitalar, com custo/efetividade muito atraente, que pode ser usado por adolescentes, por mulheres que nunca tiveram filhos, por mulheres hipertensas, diabéticas, por mulheres com mais de 40 anos e inclusive por mulheres que acabaram de parir. Apesar disso, no Brasil, menos de 2% das mulheres usam o DIU de cobre. Em países desenvolvidos, este número chega a quase 15%.
Diante de tantas e tão relevantes vantagens, por que não temos em cada unidade do SUS um profissional médico ou enfermeiro para realizar o procedimento de inserção do dispositivo nas mulheres interessadas sem burocracias desnecessárias, sem exigências infundadas e sem dificuldades? Eu também não sei.
Mineira de Belo Horizonte, Júlia Rocha nasceu em uma família de músicos e médicos e decidiu conciliar as duas paixões também em sua vida. Tornou-se médica com a mesma naturalidade com que se tornou cantora. Júlia se apresenta como “especialista em gente, médica de família e comunidade”.
Um espaço para refletir sobre a importância da humanização do atendimento médico e sobre questões da vida em geral, afinal, a saúde vai muito além de diagnósticos e receituário
Fonte: UOL