Proposta discutida por parlamentares confronta deliberações sobre verba, tempo de TV e cotas
A PEC da Anistia, que avançou nesta semana na Câmara e perdoa partidos que não cumpriram cotas de gênero e raça nas eleições, choca-se com um conjunto de decisões dos tribunais superiores que visam o fortalecimento de candidaturas de mulheres e negros no país.
São deliberações tanto no STF (Supremo Tribunal Federal) quanto no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), envolvendo a destinação de recursos do fundo eleitoral, além do tempo de propaganda gratuita na TV e no rádio, e do mínimo de 30% de candidaturas femininas por partido ou coligação.
Apoiada pelo PT de Lula e pelo PL de Jair Bolsonaro, entre outros, a proposta recebeu nesta semana o aval de 45 deputados da CCJ, com 10 votos contrários na terça-feira (16). Caso aprovada na Câmara e depois no Senado, ela pode promover o maior perdão da história a partidos políticos.
Especialistas ouvidos pela reportagem reiteram o caráter permissivo da PEC em relação às medidas sobre gênero e raça, além do descrédito gerado ao processo eleitoral do país.
Se aprovada, a proposta consolida a impunidade ao descumprimento generalizado dessas cotas, que entraram em vigor vagarosamente ao longo do tempo visando estimular a participação de mulheres e negros na política.
As políticas afirmativas nos pleitos vieram por meio de legislação em 1998, quando começou a valer a obrigatoriedade de no mínimo 25% de candidaturas femininas nas disputas proporcionais.
Em 2000, esse número subiu para 30%. Apesar disso, as siglas não precisavam distribuir de forma equânime os valores entre concorrentes.
Vinte anos depois, o Supremo definiu a necessidade de repassar verba de campanha às mulheres proporcionalmente ao número de candidatas —ou seja, pelo menos 30% do valor.
A deliberação, entretanto, levou a pleiteantes laranjas, como revelou a Folha no caso do PSL, então partido do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).
Em 2020, o TSE decidiu pela obrigatoriedade de repasses proporcionais do fundo eleitoral à quantidade de negros e brancos, aplicando a regra também ao tempo de exposição nos meios de comunicação. Surgiram, entretanto, registros irregulares, inflando o número de pretos e pardos na Câmara.
No ano passado, a Justiça Eleitoral ainda aprovou regra para a antecipação do repasse de verba destinada às cotas raciais e de gênero, visando evitar o esgotamento destas campanhas por falta de dinheiro.
Análise feita pela Folha da prestação de contas feita por partidos e candidatos antes do primeiro turno revelou, porém, que nenhum dos dez maiores partidos do Brasil cumpriu a determinação.
Estas resoluções foram ignoradas pelas legendas, que depois se autoanistiaram por uma emenda ao texto constitucional no ano passado, evitando sanções pelo descumprimento das regras eleitorais.
Mais recentemente, julgamentos concluídos pelo TSE das contas partidárias de 2017 mostram que todas as 35 legendas existentes à época (hoje são 31) não comprovaram a aplicação do mínimo estabelecido em lei na promoção de atividades que estimulem a participação da mulher na política.
Além disso, a corte eleitoral reprovou as contas daquele ano de 19 siglas, e aprovou com ressalvas as de 16 delas.
Entre os casos, o mais emblemático é o do Pros, que usou a verba para a construção de uma piscina e a realização de reformas na casa do presidente do partido, Eurípedes Jr., além da compra de uma máquina industrial de polimento de pisos, gastos com compra e manutenção de avião e helicóptero, e a aquisição de máquinas, utensílios, pessoal e insumos típicos de um restaurante profissional.
Ivair Augusto Alves dos Santos, cientista político e ex-assessor da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, afirmou que o perdão às irregularidades das siglas é um ataque a democracia, e sinaliza desprezo dos parlamentares aos direitos da população negra e das mulheres.
Ele diz que, para além do desrespeito sistemático das regras, também se impõe um descredito ao processo eleitoral do país, já que os dirigentes partidários podem usar os recursos como querem, aumentam as chances de determinados candidatos à eleição, e depois, são perdoados de irregularidades.
“Essa PEC é a demonstração concreta de que a democracia é para alguns. Vocês [pessoas negras e mulheres] servem para lutar, mas não para serem votados”, disse o pesquisador.
Ivair argumenta que o Planalto não se pronuncia de forma incisiva sobre o projeto pela fraca base que possui —como a tendência é perder no plenário e expor mais uma derrota, o Executivo calcula ser melhor não se envolver no assunto e evitar perdas em futuras negociações com o Legislativo.
Tainah Pereira, cientista política e do movimento Mulheres Negras Decidem, diz que o governo federal não toma uma posição contundente em relação à proposta de emenda à Constituição pelo consenso formado entre os partidos políticos para a aprovação da medida.
Segundo a pesquisadora, para que os direitos estabelecidos pelas cortes superiores sejam efetivados, a própria classe política deve chegar a consensos em torno de premissas reais e comprováveis, como a sub-representação das mulheres e das pessoas negras.
“A criação de leis pelo nosso Congresso que promovam a diversidade que reconheçam a sub-representação de determinados grupos sociais, como no caso das mulheres negras, é urgente. Esse é um debate que precisa acontecer, e precisa construir consenso dentro da classe política.”
Segundo o texto aprovado para o pleito de 2020, não são aplicadas sanções de qualquer natureza às legendas que não respeitaram as normas nas eleições passadas, inclusive devolução de recursos, multa ou suspensão do fundo partidário.
A emenda livra de punição partidos que não aplicaram ao menos 5% do fundo partidário em programas de incentivo às mulheres ou que não direcionaram o dinheiro do fundo eleitoral de forma proporcional às candidaturas de negros e de mulheres.
Neste ano, a proposta ainda permite a volta do financiamento empresarial para quitação de dívidas anteriores a 2015. Até agora, 184 deputados a assinaram, incluindo os líderes do governo, José Guimarães (PT-CE), e da oposição, Carlos Jordy (PL-RJ).