Família recorda com orgulho ato pioneiro, em 1928, da professora Celina Guimarães Viana
(O Globo, 15/04/2018 – acesse no site de origem)
A luz do sol permeia todo o cômodo onde o médico Pedro Wilson Viana mantém uma biblioteca particular. É ali que ele aperta os olhos ao virar, página a página, um álbum de família. Aos 87 anos, a vista já não é a mesma. A memória, no entanto, não falha. Guarda com minúcias detalhes do que ouviu da mãe, a professora Celina Guimarães Viana. Retratada nas fotografias em preto e branco, sobre as quais Pedro desliza a mão com carinho, Celina faz parte não apenas de uma história da família, mas do Brasil. Foi a primeira mulher a votar no país, em 5 de abril de 1928.
Era uma época em que o voto feminino era motivo de zombaria ou utopia. Ainda assim, diante de uma lei de outubro do ano anterior, o Rio Grande do Norte se estabeleceu como o primeiro estado brasileiro em que não haveria distinção de sexo para o exercício do sufrágio. Foi aí que Celina se alistou, aos 29 anos, para votar em Mossoró, cidade distante 272 quilômetros de Natal.
— Acho interessante a evolução mental dela de pensar uma coisa dessa de votar quando as mulheres não pensavam nisso. Ela pensou, se alistou e realmente conseguiu — conta, orgulhoso, Pedro, destacando o fato de a mãe ter sido precursora, mesmo morando fora dos maiores centros urbanos.
Enquanto as mulheres permanecem em busca de direitos iguais e mais respeito, o feito de Celina cumpre 90 anos. Pioneirismo que permanece vivo, não só nos museus e escolas potiguares, nos quais a professora é homenageada, como na memória dos familiares, todos residentes em Belo Horizonte.
— Ela abriu caminho para a gente. Temos hoje direito ao voto porque uma mulher teve coragem de aceitar. Ela fazia reuniões para dizer às mulheres que elas não tinham só o status de votar, mas que deviam ir votar. Isso faz a diferença — conta Gina Viana, neta mais velha de Celina.
DO RIO GRANDE DO NORTE A MINAS GERAIS
Gina tinha apenas 10 anos quando a avó morreu por complicações na saúde, em 1972, aos 81 anos. Celina viveu na casa onde até hoje o filho Pedro reside. Depois de rodar algumas cidades, foi em Belo Horizonte que a família se estabeleceu após ser obrigada a deixar o Rio Grande do Norte por perseguição política de Getúlio Vargas. O marido da sufragista, o advogado Elyseu de Oliveira Viana, foi escorraçado do Palácio do Governo do Rio Grande do Norte por ter resistido à revolução de 1930.
O casal rumou para o Rio e, em seguida, se estabeleceu em Minas, em razão de uma indicação do governador Benedito Valadares para Elyseu assumir um cargo de promotor no interior do estado, na cidade de Teófilo Otoni, no então longínquo Vale do Mucuri. O que é dado como certo pelos familiares é que o feito de Celina teve um empurrão do próprio marido, um homem de mente aberta para a época.
Pedro já nasceu quando a família vivia em Minas, e a mãe já tinha feito história como uma das 20 mulheres que votaram pela primeira vez no Brasil, o que a transformou num símbolo da luta feminina pelo direito de participar da vida política.
— Ela falava com orgulho de ter sido a primeira mulher a votar. Mas nem precisava falar nada, porque todos já chegavam lembrando deste marco histórico — relembra Pedro.
Vivendo em uma casa de paredes rosas, varanda e jardins bem cuidados, que resistiu aos prédios em um dos metros quadrados mais valorizados da capital mineira, Pedro tem o cuidado de guardar recordações da mãe. A parte da casa que ele mais gosta é a biblioteca, onde estão os retratos e folheia os livros dedicados a Celina, e na qual mantém uma fotografia dela sobre a mesa.
A primeira mulher a votar no país é descrita como alguém com muito talento para contar histórias. As mais repetidas referiam-se à época em que andava a cavalo pelo interior pouco desbravado do Rio Grande do Norte, percorrendo fazendas e recitando poesia na casa dos fazendeiros. Nos álbuns de família, os hobbies da avó estão imortalizados nas imagens em preto e branco. As letras eram uma de suas paixões, razão pela qual escolheu a arte de lecionar como profissão. Amor que tomou três dos netos que seguiram a mesma carreira da avó.
PIONEIRISMO TAMBÉM NO FUTEBOL
Descrita pelos historiadores como uma mulher batalhadora e determinada, Celina Guimarães Viana foi pioneira não só pelo voto. O futebol chegou a Mossoró em 1917 e, no mesmo ano, Elyseu Viana fundou a Liga Desportiva Mossoroense. Na ocasião, cada bairro organizou um time. Com um livro de regras na mão e um apito de boca, Celina foi a árbitra do jogo.
Determinada a fazer com que a partida ocorresse, Celina sugeriu que colocassem duas pedras, numa distância de quatro metros de cada lado, delimitando os gols, e passou a dividir a garotada: 11 para cada lado. Por falta de uniformes, decidiu que um time jogaria com camisas, e o outro sem camisas, para diferenciar. A bola de couro havia sido comprada pelos pais dos garotos. Além de explicar como se jogava, teve ainda a missão de explicar o que era off-side, corner-kick, foul, referee, fire-kick e field. Os termos não tinham sido traduzidos para o português.
— Ela tinha mesmo essa vontade de fazer o melhor, o que ela podia e era do conhecimento dela — diz Gina.
Eram sobre as atividades de lazer e a profissão as histórias que os netos mais ouviam sobre Celina. O primeiro voto feminino não era tão mencionado na família. Fato que só ganhou a devida dimensão quando o filho de Celina foi convidado para uma homenagem à mãe no Rio Grande do Norte.
— A gente já sabia que ela tinha sido a primeira eleitora, que tinha conseguido o direito de votar. Mas a gente não tinha a noção dessa grandiosidade que ela tinha, do pioneirismo da mulher, da importância do voto — contou Gina. — Depois disso, descobrimos sua influência. As bisnetas dela souberam na escola do protagonismo da avó em uma aula que se falava sobre as mulheres pioneiras do Brasil.
A neta de Celina destaca que a situação das mulheres ainda não avançou o suficiente:
— Os anos se passaram, mas a mulher está na luta de todos os dias, dos direitos iguais. São 90 anos que não parecem nada.
Aura Mazda, Juliana Castro e Maria Clara Prates
Fonte: Agência Patrícia Galvão