“Este lugar é nosso por direito”, disse, sob aplausos, Conceição Evaristo em sua fala inicial na mesa “Amadas”, que a homenageou neste domingo, encerrando a programação oficial da 15ª Flip (Festa Literária Internacional de Paraty).
A escritora de 70 anos agradeceu “intensamente, particularmente” à curadoria de Josélia Aguiar pela busca da diversidade e da inclusão nesta edição do evento. E frisou que não podia “deixar de afirmar que não foi concessão”.
“Este momento significa, acho que para todos nós, a comprovação da força coletiva. Nós só estamos aqui em consequência de trabalhos que foram feitos desde o ano passado pedindo a presença de escritoras e escritores negros na Flip”, disse Evaristo.
“Eu não estou aqui sozinha, eu não cheguei sozinha, eu cheguei por força de coletiva de homens e mulheres negras, notadamente de mulheres negras.”
A plateia, possivelmente a mais negra do Auditório da Matriz nesta edição, estava lotada e assim permaneceu durante mais de uma hora em que a autora de “Becos da Memória” e “Ponciá Vivêncio” conversou com a também escritora Ana Maria Gonçalves (“Um Defeito de Cor”). Do lado de fora a praça estava igualmente cheia com um público diverso.
O encontro foi conduzido por uma sequência de fotografias da vida de Evaristo, mas de forma alguma ficou limitado ao registro biográfico, que serviu de fio para que a escritora abordasse questões de criação literária e da importância da representatividade negra, sobretudo da mulher negra, na literatura.
Ao falar da foto que abriu o encontro, a da autora em sua primeira comunhão, o tema do catolicismo negro e da fé motivou Evaristo a falar de como a cultura de matriz africana se entranhou na fé cristã.
Mencionou suas “protetoras”, que cultiva “por medida de segurança” —Imaculada Conceição, à qual deve o nome, santa Rita de Cássia, mas também Iemanjá e Oxum e a escrava Anastácia, figura de culto popular, representada com uma mordaça.
“O silêncio de Anastácia reverbera em grito”, disse a homenageada. “Mais do que nunca, acho que ele simboliza o silêncio que é imposto aos povos dominados e que nós aprendemos a falar através da máscara. E tem horas que a gente fala com tanta veemência, que nós falamos pelos orifícios da máscara e nos estilhaçamos a máscara.”
A educação inclusiva foi tema, com Conceição Evaristo rememorando sua experiência como aluna de uma escola pública frequentada pela elite em sua Belo Horizonte natal e de como ela se refletiu em suas escolhas como educadora já no Rio, onde vive.
“A gente não pode ter muita ilusão de que essa educação fornecida pelo Estado não é uma educação que realmente pretende atingir as classes mais baixas. A boa educação, de qualidade, vai ser sempre de pertença de certas classes sociais.”
MATERNIDADE
A afetividade amorosa e familiar como sustento diante da criminalização do negro e também o machismo do homem negro foram contemplados na fala, passando em seguida a um dos momentos literariamente mais interessantes do encontro.
Diante de uma foto em que aparece grávida de sua filha, Ainá, a escritora tratou da questão da maternidade em termos pessoais e nas artes.
“As personagens antológicas da literatura brasileira são estéreis, não têm prole, não fecundam. Se a gente for pensar em Rita Baiana, em Bertoleza, em Gabriela, essas personagens criadas nessa literatura canonizada, ou elas não têm filhos, ou não dão conta de seus filhos.”
“A gente vive uma cultura judaico-cristã e, nessa cultura, duas mulheres têm papel central”, disse, citando Eva, a “perdição”, e Nossa Senhora, a “salvação da humanidade”, que se dá através da maternidade.
“Se nós vivemos sob orientação desse mito cristão e a literatura brasileira não consegue criar personagens negras fecundantes, o corpo dessa mulher negra é sempre colocado no lugar do mal. É como se o corpo da mulher negra não tivesse salvação. É um corpo estéril, é um corpo para o prazer.”
Evaristo, que por muito tempo produziu permanecendo inédita —seu “Becos da Memória”, por exemplo, foi escrito em 1987 e só saiu em 2006—, falou da dificuldade em publicar.
Alguém poderia dizer que “para qualquer pessoa inédita” é difícil ser publicado. “Mas para algumas pessoas se torna mais difícil ainda. Para mulheres negras é muito mais difícil”, disse, pelo lugar que ocupam no imaginário nacional.
“No imaginário brasileiro, nós, negras, cantamos, dançamos, cozinhamos, cuidamos bem de uma casa”, disse. “Somos capazes, sim, de cozinhar, de lavar, de passar, de dar aula, de exercer a medicina, de sermos professoras, damos conta de tudo de que outras mulheres também dão.”
Um bloco foi dedicado à escritora Carolina Maria de Jesus (1914-77) e à recepção de sua obra, que foi marcante para o início da carreira de Evaristo, com a leitura de “Quarto de Despejo”, que ela leu e compartilhou, em serões de leitura, com sua família.
“O que Carolina passava nas ruas de São Paulo, a minha família passava em Belo Horizonte. A gente lia Carolina Maria de Jesus como uma igual. Nós éramos Carolina. Até hoje eu leio Carolina e fico muito feliz quando me filiam a uma tradição de Carolina, muito por causa de ‘Becos da Memória’.”
Mas, disse ela, a leitura rasa que se faz da obra da escritora a incomoda muito.
“É como se nós, mulheres negras, só tivéssemos a carência material; toda vez que eu abrir a boca é porque eu não tenho um prato de comida. Não conseguem ter a percepção da angústia de Carolina, da solidão de Carolina. Por que que todo mundo lê Clarice Lispector e consegue perceber que Clarice Lispector está falando de uma dúvida existencial, que está falando da solidão, das angústias humanas, e não percebem isso em Carolina?”
“Ela é uma grande escritora brasileira e sempre usam a desculpa de que ela feria as normas cultas da língua. Eu tenho dito que são normas ocultas da língua, porque só determinadas categorias sociais conseguem se apropriar dessas normas ocultas da língua”, disse, com que a audiência veio abaixo em aplausos.
ESCREVIVÊNCIA
Ao final, a mesa contemplou o conceito de “escrevivência”. “Quando usei o termo, eu não sabia que estava criando um conceito”, disse. “Tudo que eu escrevo é profundamente marcado pela minha condição de mulher negra brasileira”, o que marca sua escolha temática e formal.
“Eu quero escrever um texto que se aproxime o mais possível de uma linguagem oral, é uma escolha consciente que eu faço. Ninguém chora diante de um dicionário. Ele tem lá palavras belíssimas, mas ele não comove, porque você pensa num dicionário como uma situação estática. Quero essa palavra dinâmica, e para mim ela é a que está mais próxima ao povo do que a que está mais próxima à academia, a um texto teórico, à gramática.”
O público lamentou o fim do tempo destinado ao encontro. A curadora informou que todas as perguntas remanescentes enviadas pelo público seriam entregues a Evaristo, e a plateia aplaudiu de pé ainda antes das considerações finais da homenageada.
“Agora a Flip não tem jeito. Nós não vamos abrir mão do que foi conquistado”, disse, sob aplausos, agradecendo de novo à curadora pelo convite —no que foi secundada por Ana Maria Gonçalves pedindo por “Josélia 2018”.
“Nós vamos continuar estilhaçando os orifícios dessa máscara. Vamos continuar afirmando que subalterno pode falar. Se a gente pensa que o espaço da literatura, da criação literária, do discurso literário é um espaço de revelação, de identificação nacional, a nossa identificação não
pode mais ficar fora da literatura brasileira.”
Fonte: Folha de São Paulo