Relatório divulgado pelo Banco Mundial constatou que trabalho doméstico e violência de gênero impactam nos índices globais de desigualdade
O relatório “Women, Business and Law 2024”, conduzido pelo Banco Mundial e divulgado no mês de março, destacou que as desigualdades de gênero globais são ainda mais acentuadas do que se pensava. Em nenhum lugar do planeta, literalmente, as mulheres desfrutam das mesmas oportunidades econômicas que os homens.
Trata-se de um cenário estarrecedor, preocupante e, sobretudo, limitador, uma vez que a redução das desigualdades de gênero no mercado de trabalho poderia aumentar o PIB de economias em desenvolvimento em até 8%. Num cenário ideal, com as desigualdades totalmente eliminadas, as economias poderiam crescer até 23%.
Entre os fatores que dificultam a paridade econômica de gênero se sobressai o trabalho de cuidado desempenhado pelas mulheres. Para Louisa Acciari, pesquisadora sênior na University College London e coordenadora de projetos da Federação Nacional das Trabalhadoras Domésticas, e Glaucia Fraccaro, professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e autora do livro “Os Direitos das Mulheres – Feminismo e Trabalho no Brasil” (FGV Editora), o capitalismo sempre lucrou com as desigualdades de gênero, utilizando a força de trabalho não remunerada das mulheres dentro de suas casas para reproduzir a mão de obra inserida no mercado do trabalho.
É o que autoras feministas como Silvia Federici e Heleieth Saffioti chamam de reprodução social: para o trabalhador sair de casa e ir trabalhar todos os dias, ele precisa ter comido, ter seus filhos cuidados e sua casa limpa.
“Quem faz esse trabalho, na maioria das vezes, são as mulheres, que cumprem essas tarefas sem remuneração nenhuma. Dentro dessa lógica, parece não haver motivos para as grandes empresas ou as instituições que servem o mercado reduzirem as desigualdades, já que conseguem dois trabalhadores pelo preço de um”, sustentam Louisa e Glaucia.
Segundo Isabela Duarte Kelly, pesquisadora do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre), a divisão desigual das tarefas domésticas nos lares gera uma intensa carga mental e impacta negativamente no crescimento profissional e financeiro das mulher porque, muitas vezes, elas não conseguem estar no mercado de trabalho de forma integral.
“Elas acabam tendo que buscar profissões que permitam equilibrar o trabalho remunerado, o do mercado, com o trabalho não remunerado doméstico e de cuidados. Isso dificulta acessar posições de maior nível hierárquico, que em alguns casos demandam tempo além do expediente”, comenta.
Além disso, a dinâmica em relação aos cuidados com os filhos, por exemplo, é outro entrave, uma vez que creches públicas são escassas e o custo elevado das particulares nem sempre acaba compensando financeiramente para a mulher.
“Isso afeta justamente a economia já que elas não conseguem maiores remunerações porque sempre estão buscando ocupações mais flexíveis e que permitam o equilíbrio entre o mercado de trabalho e as tarefas do lar e de cuidados”, diz Isabela.
Violência doméstica e questões raciais
De acordo com Louisa Acciari e Glaucia Fraccaro, há uma conexão entre os papéis sociais em torno do cuidado, a baixa remuneração das mulheres e a questão da violência de gênero. “A violência doméstica funciona como constante ameaça a todas as mulheres em geral. No caso de não cumprir o que se espera, ou seja, a reprodução da vida e o papel doméstico, o horizonte é o assassinato. Essas dimensões estão interconectadas e para que as mulheres tenham maior poder de decisão para sair de uma situação de violência, elas precisam ter acesso a serviços públicos e de uma certa autonomia financeira. Assim, os mecanismos que as mantêm em situação desigual no mercado no trabalho também favorecem a violência de gênero”, explicam.
Já Luciene Morandi, coordenadora do Núcleo de Pesquisa em Gênero e Economia da Universidade Federal Fluminense (NPGE/UFF) pontua que a desigualdade de gênero não existe sozinha. “Ela existe junto com a desigualdade racial e junto com a desigualdade social. No Brasil, a pobreza é feminina e é negra, pois quando olhamos as estatísticas percebemos que as mulheres têm menos renda que os homens, as pessoas pretas e pardas têm menos renda que as pessoas brancas e as mulheres pretas e partas são as mais vulneráveis em todo esse contexto. Então, reduzir a desigualdade de gênero é, ao mesmo tempo, reduzir desigualdade racial e social”, pondera.
Ações individuais e coletivas
Ainda conforme Luciene, buscar eleger representantes políticos que se importem de fato com questões de gênero, suas intersecções e a equidade é fundamental para começar a promover a mudança.
“Mas também há coisas que nós podemos fazer na nossa vida individual mesmo, que é ensinar nossos filhos e nossas filhas que o trabalho doméstico precisa ser dividido entre todos na família”, diz Cristina Scheibe Wolff, pesquisadora do Instituto de Estudos de Gênero da Universidade Federal de Santa Catarina (IEG/UFSC). “Não é simplesmente ir lá e lavar uma louça, mas pensar mesmo em termos de responsabilidades de cada pessoa dentro da casa e da família”, argumenta.
Cristina lembra relevância da Lei de Igualdade Salarial (Lei nº 14.611/2023), aprovada recentemente, mas reforça que o Estado precisa fiscalizar a questão na prática. Outros pontos primordiais levantados pelas especialistas ouvidas nesta reportagem são a importância de as mulheres se sindicalizarem e negociarem salários maiores.
“Um dos motivos pelos quais as mulheres ganham menos é também, entre outros fatores, porque pedem salários mais baixos e são menos inclinadas a pedir uma promoção. Não se desvalorize, exija o mesmo salário que seu colega homem!”, sugere Louisa. “E quem for empregador ou empregadora, remunere melhor suas trabalhadoras, inclusive as trabalhadoras domésticas. Aumente os salários, cumpra com a legislação sobre igualdade salarial, e se for empregador doméstico, assine a carteira e pague acima do mínimo a mulher que trabalha na sua casa”, completa.
Ampliar programas como Bolsa Família ou Minha Casa minha Vida também são ações que não devem ser encaradas como gasto público, mas como investimento num futuro menos brutal para as mulheres e, portanto, mais igualitário. O acesso à propriedade é um elemento fundamental na luta contra as violências domésticas. Em caso de relação abusiva, com a casa estando no nome da mulher ela tem maior capacidade de ação para poder se separar e mandar embora o seu agressor.
Fonte: Terra