Asalea de Campos Medina, 75, de Belo Horizonte (MG), entrou para a história do futebol mundial como Lea, apelido pelo qual prefere ser chamada. Em 1971, ela se tornou a primeira mulher árbitra do Brasil e, do que se tem notícias, do mundo. Viajou representando o país em torneios oficiais, e virou, em campo, uma atração.
Nesta sexta-feira (7), participa da cobertura da Globonews da abertura da Copa do Mundo de Futebol Feminino da FIFA, que acontece na França. Mas, antes de conquistar seu lugar na história, ela teve que ralar muito. E não foi só para passar no exaustivo teste físico pelo qual todo árbitro é submetido.
Por quarenta anos, mulher foi proibida de jogar futebol no Brasil. De acordo com o artigo 54 do Decreto-lei 3.199, de abril de 1941, não era permitido à população feminina a prática de esportes “incompatíveis com as condições de sua natureza”. Segundo teorias médicas da época, esportes de contato poderiam impedir que mulheres engravidassem. A proibição vigorou até 1983.
No entanto, não foi apenas a lei. Lea Campos teve que bater de frente com muito homem que achava um absurdo ter mulher em campo. Segundo a jornalista de formação, o próprio João Havelange, que foi o presidente da Confederação Brasileira de Desportos de 1958 até 1975, fez de tudo para que ela não se tornasse uma árbitra. “Ele dizia que, enquanto fosse dirigente, mulher nenhuma estaria metida com futebol”, Lea conta à Universa.
Aos 75 anos, Lea Campos mora nos Estados Unidos e vai participar da cobertura da Globonews da abertura da Copa
Imagem: Livia Wu
Atualmente moradora dos Estados Unidos, a mineira teve que apelar diretamente para Emílio Garrastazu Médici, que, em 1971, era o presidente do Brasil da Ditadura Militar. “Entreguei para Havelange uma carta escrita a mão pelo Médici para que ele pudesse liberar o meu diploma de árbitra”, narra.
À Universa, ela narra abaixo a sua trajetória completa, que também está disponível no Museu do Impedimento, um site colaborativo fruto da parceria entre Google Arts & Culture e Museu do Futebol:
Como surgiu o interesse por futebol
“Sempre gostei de futebol. Quando era pequena, meu pai fazia bolinha de meia para eu jogar com os meninos na escola. Ser árbitra, no entanto, foi uma consequência da vida. Aos 23 anos, gostava muito de ir ao Mineirão ver jogos, mas não entendia muito bem as regras. Não deixava meu namorado ver os lances porque ficava perguntando tudo. O jeito que ele descobriu para me ajudar foi um curso para árbitros na Federação Mineira de Futebol. Em 1967, eu fiz a minha matrícula. Foram oito meses de curso, incluindo o treinamento físico, que era feito toda quinta-feira, no colégio Santo Agostinho. Era a única mulher na turma, mas todo mundo me respeitava e ajudava.”
Na formatura, vários obstáculos
“Ao entrar no curso, a minha intenção era abrir uma porta para que outras mulheres pudessem apitar. Esta era a minha meta. Achava um absurdo a gente poder ter um filho, mas não poder estar envolvida em futebol. Se a mulher pode parir, não há o que ela não pode fazer. Por que o homem quer reduzir o nosso espaço?
A Tradicional Família e Propriedade de São Paulo fez um abaixo-assinado para não liberarem o meu diploma. Ligavam também para as rádios reclamando, dizendo que era um absurdo eu ser mulher e árbitra. No entanto, a imprensa e meus próprios colegas de arbitragem buscavam me incentivar. Eu não pensava em ser a primeira da história, eu pensava em ser árbitra.
Por isso, quando João Havelange disse que não me daria o diploma, eu não cedi. Bati de frente. Foram quatro anos insistindo para poder me formar.”
Os argumentos da CBD
“Inicialmente, Havelange e a CBD argumentaram que eu não poderia ser árbitra por causa da constituição óssea da mulher, que seria inferior ao do homem. Provei com relatórios médicos que isso não era verdade. Depois, questionaram como eu faria nos dias em que eu estivesse menstruada e tivessem jogos marcados. Respondi que isto não era impeditivo.
Perguntaram, também, como eu me portaria com 22 homens em um campo de futebol. Falei que seria da mesma forma que estava me comportando com a própria CBD: quando precisasse ser agressiva, eu seria agressiva. Se eu precisasse ser passiva, eu seria passiva. Eles argumentaram, ainda, usando a lei que proibia mulheres de jogar futebol para barrar a emissão do meu diploma. Levei um jurista para provar que o texto não impedia mulheres de serem árbitras de futebol.
Por fim, Havelange disse que, enquanto ele fosse presidente da CBD, mulher não estaria metida com futebol.”
Carta do presidente
“Em 1971, a Fifa organizou o primeiro mundial de futebol feminino. Como mulher não podia jogar no Brasil, eles me convidaram para apitar um jogo para representar o país, mas precisava do meu diploma de árbitra.
Tive muita sorte porque, em 1971, a imprensa do mundo todo estava no país para a despedida do Pelé da Seleção Brasileira, que teria um amistoso no Maracanã, no Rio de Janeiro (RJ). Aproveitei esse barulho para falar com os jornalistas e fazer pressão.
Lea teve uma carreira de três anos como árbitra, quando sofreu um acidente que a tirou de campo
Imagem: Arquivo
Mas para eu conseguir apitar um jogo, tive que apelar para o presidente da República durante o governo militar. Como eu já tinha sido a Rainha do Exército em Belo Horizonte (MG), consegui, com a ajuda dos meus contatos, uma entrevista com o presidente Médici, em Brasília (DF). Contei a minha história e ele escreveu uma carta de próprio punho dizendo para que Havelange liberasse o meu diploma de árbitra.”
Carreira curta em campo
A partir daí, comecei a viajar representando o Brasil. Apitei em Portugal, na Itália, na Franca. Mas, infelizmente, a minha carreira foi curta. Foram apenas três anos. No dia 27 de fevereiro de 1974, sofri um acidente de ônibus. Estava a caminho de São Paulo (SP) para assinar um contrato para apitar no campeonato argentino. Minha perna esquerda foi reimplantada, tive que fazer 102 cirurgias para voltar a caminhar. Passei dois anos e meio em uma cadeira de rodas. Voltei a andar, mas ainda sinto dor até hoje. Por causa do acidente, não pude mais correr e, consequentemente, não voltar a apitar.
Atualmente, moro nos Estados Unidos desde que casei. Estou fazendo de tudo para resgatar a minha história e de outras mulheres do futebol que ficaram esquecidas principalmente pela CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Estou aqui, empurrando para não ser empurrada. Este sempre foi o meu lema.”
Fonte: UOL