Eu fiz um aborto. Um não, uns.
Lembro do dia em que me descobri “grávido” pela primeira vez. A namorada, trêmula, confirmou a suspeita. Ela menor de idade, eu recém-chegado à idade adulta. Juntamos os cacos, juntamos dinheiro, o pouco que tinha. Contamos com amigos, rezamos bastante e chegamos à clínica assustados, sem saber o que viria.O procedimento foi relativamente rápido. Em menos de uma hora, recebi a informação de que ela já estava fora de perigo, mas ainda dormindo, sob efeito dos medicamentos. O susto passou, a gravidez passou. Só não passou a sensação de que fui beneficiado por ter acesso a recursos e apoio emocional para lidar com a situação.
Isso tem mais de 20 anos — e não me arrependo. Quando “engravidei” do Miguel, anos depois, tive certeza que queria ser pai. Mas tive o direito de escolher.
1 milhão de abortos por ano
De acordo com a Pesquisa Nacional do Aborto, feita pela Universidade Federal de Brasília (UnB) com o apoio da Agência Ibope Inteligência e do Ministério da Saúde, um milhão de abortos são feitos por ano no Brasil — e a cada dois dias morre uma mulher vítima de procedimento clandestino no país. Uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 anos já fez ao menos um aborto na vida. Se restringirmos a faixa etária e focarmos nas mulheres entre 35 e 39 anos, essa proporção sobe para uma em cinco.
Com base nesses números — e na repercussão da campanha #meuprimeiroassédio, que levou diversas pessoas a relembrarem casos de abuso e assédio sexual cometidos por familiares, amigos, chefes, profissionais da área médica e desconhecidos — um grupo de mulheres, profissionais de várias áreas, lançam esta semana a campanha #Meuaborto. A ideia é coletar, através de uma página no Facebook e de um e-mail próprio, depoimentos que ajudem outras mulheres a relatarem seus casos e jogar luz sobre o tema — que também é alvo de debates no Congresso Nacional, com a proposta do presidente da Câmara, Eduardo Cunha, que criminaliza a indução ao aborto e exige da vítima a apresentação de exame de corpo de delito e boletim de ocorrência para comprovar a violência sexual. A Assembleia Legislativa do Rio (Alerj) também discute um retrocesso na política sobre o aborto: no relatório final da CPI sobre o tema, foi aprovadaa obrigatoriedade de os hospitais notificarem a polícia todos os casos de aborto que eles atenderem, até mesmo os permitidos por lei ou os espontâneos.
#Meuprimeiroassédio ajudou
“A campanha #meuprimeiroassédio sacudiu as relações das pessoas, não sabíamos que eram tantos e tantas à nossa volta com casos para contar, uma verdadeira epidemia. Queremos tirar do armário essa discussão tão importante sobre o aborto, dando a ela o peso que ela merece ao fazer o debate”, avalia a poetisa Maria Rezende, uma das protagonistas da ideia. “Queremos a possibilidade de aborto legal, seguro e gratuito para todos. Propostas como as de Cunha no Congresso Nacional e dos deputados da Alerj só pioram a situação”.
O movimento vai ganhar força nesta quarta-feira à tarde, em um protesto marcado nas escadarias da Alerj, com o sugestivo nome “Ato das mulheres belas, recatadas e do lar: Fora Cunha, Fora Bolsonaro e Fora Pedro Paulo”. Além dos coletivos feministas presentes na atividade e de testemunhos de mulheres que se submeteram a abortos clandestinos, o grupo espera que os homens também se mobilizem, dando seus testemunhos sobre o procedimento.
“Queremos saber como os homens se colocam nessa questão. Até porque a responsabilidade também é deles”, argumenta Maria. “Quem sofre mais com isso tudo é a mulher. E quem luta pelos direitos das mulheres são as mulheres, claro. Mas os homem podem e devem apoiar a luta de várias maneiras, inclusive compartilhando algum relato”, reforça a jornalista Fabiane Pereira, outra idealizadora da campanha.
Os depoimentos já começaram a chegar, e estão sendo organizados sob a hashtag#Meuaborto:
Mulheres de todas as idades colaboram com exemplos de vida para o debate:
Além de testemunhos pessoais, a campanha também conta com depoimentos de quem acompanhou mulheres e casais no procedimento abortivo:
No início do mês, a polícia do Rio invadiu e fechou uma clínica clandestina de aborto em Copacabana. Os médicos foram presos. A gestante que se submetia ao procedimento também foi considerada uma criminosa. A campanha tem o objetivo de democratizar histórias de vida e demonstrar que a possibilidade do aborto deve ser uma opção para todos — e não só para quem pode pagar bem por isso. Logo, histórias de quem escolheu não fazer o procedimento também podem — e devem — ser contadas.