Há alguns dias tive o prazer de mediar o painel de abertura do Cannabis Thinking, evento que reuniu investidores, médicos, pacientes, empresários e entusiastas para discutir o futuro dos negócios fomentados pela cannabis no Brasil e no mundo.
O mercado canábico tem um imenso potencial. Congressos e eventos fomentados por empreendedores autônomos já estão no circuito mundial há mais de duas décadas. Os diálogos em torno da planta são de extrema necessidade por se tratar de um setor que vive inúmeros desafios, dentre eles desintoxicar a ignorância com informação de qualidade.
A plateia cheia de nomes importantes do empresariado mundial sente de longe o cheiro da oportunidade neste mercado. Apesar de todo o preconceito em torno da erva, o mercado legal de maconha faturou cerca de US$ 14,4 bilhões em 2019 e o mercado medicinal nacional promete movimentar R$ 9,5 bilhões até 2025.
Tratar de dinheiro neste promissor ecossistema é algo que brilha os olhos e abre portas. O lucro costuma ser um bom motivo para agregar vozes e engrossar o coro na pressão sobre as autoridades principalmente para que a luta de pacientes beneficiados por medicamentos à base de ativos extraídos da cannabis seja efetiva.
Antes do lucro, a vida
Mas num país de extrema desigualdade como o Brasil, antes de falarmos de lucros precisamos falar de vidas. E este foi um dos pilares discutidos na conversa que conduzi com Patrícia Villela Marinho, fundadora e CEO do instituto Humanitas 360, Patrick McCartan, CEO da Regennabis, e Keila Santos CEO da Revivid, primeira empresa a fornecer medicamentos à base de cannabis para pacientes brasileiros.
Não tínhamos nenhuma intenção de argumentar sobre o uso recreativo ou nomear quem joga fumaça pro alto, mas sim falar do alinhamento da indústria da maconha com os desenvolvimentos sustentáveis definidos pela ONU e, por consequência, das maiores vítimas da legislação anti drogas brasileira responsável pelo encarceramento em massa de homens e mulheres, na sua maioria pretos ou quase pretos.
Desde 2006, ano em que entrou em vigor a lei 11.343, que não estabelece critérios de diferenciação entre tráfico e consumo de drogas, a decisão de diferenciar traficante de usuário está nas mãos do seletivo sistema judiciário brasileiro, que vem transformando jovens brancos em consumidores e jovens negros em traficantes.
As grandes vítimas deste sistema têm sido as mulheres. O uso da prisão como uma resposta de guerra às drogas tem impactado desproporcionalmente privando de liberdade mulheres pobres e pretas por cometerem delitos relacionados a entorpecentes.
Desde o começo do milênio, o número de mulheres em situação de cárcere no país cresceu mais de 700%.
Analisando os dados do Infopen (Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias), verificamos uma população feminina marcadamente jovem, preta e de baixa escolaridade em que a maioria das mulheres privadas de liberdade se encontra em cárcere por delito de tráfico de drogas.
Estamos falando de mulheres que não representam real ameaça para a sociedade, principalmente por serem detidas com pequenas quantidades ou cometendo delitos sem uso de armas. Estas mulheres acabam sendo vítimas dos problemas sociais e por muitas vezes embarcam como uma maneira de enfrentar a pobreza ou são coagidas por parceiros ou membros da família.
Precisamos olhar para os números e reconhecer que a atual política de drogas brasileira faliu e está criminalizando de maneira excessiva o encarceramento de mulheres e promovendo consequências devastadoras para as famílias. A prisão de mulheres requer deixar em situação de abandono e marginalidade seus dependentes, filhos e idosos que possam estar sob seus cuidados.
Privando de liberdade mulheres que não representam perigo geramos um círculo vicioso que aumenta a demanda para o aparato protetor estadual que não consegue suprir as necessidades ocasionadas pelas falhas abertas a partir das desigualdades de raça e gênero de um sistema opressor.
É importante esclarecer que não estou aqui dizendo de que maneira temos que agir, mas propondo uma reflexão em prol da vida de mulheres que estão sendo relegadas ao esquecimento jurídico e social por não terem acesso econômico a mecanismos de defesa e se tornaram vítimas de um sistema judicial que condena com maior intensidade os mais pretos —quanto mais escura a tez maior a condenação.
Desde 2015 o Supremo Tribunal Federal tem protelado decisões que podem diminuir o impacto do encarceramento em massa no desenvolvimento nacional. O julgamento do Recurso Extraordinário n. 635.659, o qual se discutiu a constitucionalidade do artigo 28 da Lei n. 11.343/06, justamente o artigo que criminaliza o porte de pequenas quantidades de maconha para uso pessoal está há seis anos parado na mesa dos ministros. Não se trata de legalizar o uso, mas sim de propor medidas administrativas para lidar de maneira inteligente com o problema.
Fonte: Universa