Um dia, elas são filhas; no outro, esposas. Hoje, o casamento infantil é a história de uma em cada três meninas entre os países em desenvolvimento, o que equivale a um total de 150 milhões na próxima década — sobretudo na África Ocidental e no Sul da Ásia. No entanto, com a linha de frente internacional contra o casamento infantil cada vez mais forte, já há fortes sinais de mudanças em alguns países, como Zimbábue, Malawi e Gâmbia.
Em janeiro, um importante sinal do avanço da luta contra os casamentos precoces veio do Zimbábue. O Tribunal Constitucional do país proibiu a união civil para as jovens menores de 18 anos — direito que já era garantido aos rapazes. Até então, as zimbabuanas poderiam se tornar noivas a partir dos 16 anos. Para a nação africana, a mudança surge como uma verdadeira reviravolta, já que atualmente cerca de 31% das mulheres do país se casam entre os 15 e 18 anos, em especial entre as camadas mais pobres, segundo o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef).
A pobreza é o principal fator que leva os pais a casarem suas filhas na África. Com o casamento, o número de pessoas na família diminui, e a responsabilidade pelo sustento da noiva passa adiante. Não é raro que estas meninas se tornem vítimas crônicas da violência doméstica quando passam a viver com homens mais velhos. Por serem jovens, as esposas geralmente não têm voz como outros membros da família. Além disso, sofrem riscos mais altos de infecção pelo HIV e de complicações na gravidez, elevando o índice de mortalidade materna nestes países.
DILEMA CULTURAL
Segundo o Chefe de Proteção à Criança do Unicef, Cornelius Williams, a decisão do Zimbábue é uma conquista das ações da União Africana contra o casamento infantil, que ganharam força desde novembro do ano passado. Além disso, o Conselho de Direitos Humanos da ONU classificou esta prática como uma violação, traçando a ousada meta de pôr fim ao casamento infantil até 2030. Na África, as noivas crianças podem dobrar até 2050, chegando a 310 milhões, sobretudo por causa do intenso crescimento da população, que coloca em risco os avanços das últimas duas décadas.
— Estas ações governamentais são importantes porque têm o poder de mobilizar outros países e líderes locais. E são eles que enviam o sinal às suas comunidades de que é hora de mudar — diz Williams. — Muitos países africanos querem tirar suas populações da pobreza e aumentar a geração de renda. Mas como fazer isso se metade dos seus futuros trabalhadores está se casando e engravidando tão cedo, ao invés de se qualificar?
É assim que a tendência internacional de luta contra o casamento infantil ultrapassa órgãos nacionais e chega a pequenas comunidades pela África. No centro do Malawi, onde cerca de metade das mulheres se casa antes dos 18 anos, a líder local Inkosi Kachindamoto anulou, em 2015, 330 casamentos infantis para levar crianças e adolescentes de volta às salas de aula. Mais recentemente, em janeiro, outras 22 comunidades de Gâmbia declararam o abandono dos casamentos precoces e forçados, após três anos de ações sociais.
Apesar dos avanços, a boa vontade política não basta para combater o casamento infantil. A antiga tradição ainda sobrevive, principalmente, nas zonas rurais dos países africanos mais pobres. Normalmente, as noivas têm pouca ou nenhuma chance de opinar sobre a nova vida. A determinação costuma vir das famílias, a quem cabe julgar qual será o melhor caminho para suas filhas
— Combater o casamento infantil não significa sair pelas comunidades e simplesmente dizer às famílias que meninas não devem se casar antes dos 18 anos com a conversa sobre direitos humanos. É necessário garantir, principalmente, escolas disponíveis e seguras — explica. — Qual é o valor atribuído a estas meninas? Mulher e dona de casa? Ou pode ser o de impulsionadoras da economia moderna, como professoras, engenheiras e médicas?
Os desafios culturais chegam também ao Paquistão, no Sul da Ásia — região de origem da maioria das noivas precoces do mundo. Em 2016, o país vem sendo palco de intensas discussões sobre a proteção infantil, sobretudo depois que o corpo religioso do Parlamento rejeitou a elevação da idade mínima da união civil dos 16 para os 18 anos, por considerar a proposta de lei anti-islâmica. Atualmente 600 mil das mulheres entre 20 e 24 anos se casaram antes dos 15 anos. Em muitos casos, esta prática é associada à disputa entre comunidades, ao pagamento de dívidas ou à troca de meninas — frequentemente vistas como objeto de honra das famílias.
Para a especialista em direitos infantis da ONG Plan International, Samina Sardar, a falta de delimitações legais claras para o casamento precoce é um dos principais obstáculos a serem superados no Paquistão. Mas, enquanto as novas leis não chegam, a solução é trabalhar junto à comunidade para ajudá-la a desafiar as próprias tradições.
— O desafio para o Paquistão é a questão cultural e religiosa. Precisamos fazer as pessoas entenderem os efeitos sociais do casamento infantil e ajudá-las a transformar práticas. Não basta que você diga que a prática é ilegal, é necessário torná-la inaceitável.
As histórias
No vilarejo de Motonko, localizado no distrito de Moyamba, em Serra Leoa, Amina Kamara, de 15 anos, teve seu primeiro filho, Ali, de 6 meses, após se casar com seu marido Lamine. A África é um dos principais focos da luta internacional contra o casamento infantil.
Casada aos 16 anos, Nafissa engravidou três meses depois. O casamento durou apenas dez meses. Hoje está na casa dos pais, já que pela tradição, deve passar 40 dias lá após ter o bebê. Ela tem tem 14 irmãos e irmãs.
Nabila casou-se aos 14 anos, assim como sua mãe e sua avó. Deixou o marido, sem saber que estava grávida, e voltou a viver com a família. “Decidi que minha filha irá a escola”, diz a jovem, de 15 anos.
* Estagiária sob supervisão de Sandra Cohen
Fonte: O Globo