Os profissionais da Redes da Maré, organização da sociedade civil sediada no conjunto de favelas mais populoso do Rio de Janeiro, testemunham todos os dias a erosão da segurança pública e a endêmica violência contra mulheres e meninas.
Cerca de 140 mil pessoas vivem no complexo da Maré, distribuídas em 16 favelas. Esses profissionais tentam produzir e disseminar conhecimento no local, numa tentativa de romper com os usuais preconceitos e estereótipos que prevalecem sobre as pessoas que vivem ali.
Entre os muito projetos para os moradores estão iniciativas específicas para mulheres, que têm ajudado a combater a violência por meio da abordagem de gênero.
São muitos os projetos em segurança pública e direito das mulheres, entre os quais se destaca o Maré de Sabores, que trabalha exclusivamente com elas, treinando-as para serem chefes de cozinha e oferecendo às participantes autonomia financeira e um ofício.
A medida trabalha com a independência e autoestima das mulheres. Deu tão certo que também tem ajudado quem sofre com violência doméstica a deixar seus parceiros agressores.
Há ainda o programa “Legítima Defesa”, que oferece um espaço permanente para o diálogo sobre segurança pública. Trata, especialmente, dos direitos de todos os residentes, inclusive das mulheres, à segurança, e mobiliza ainda uma série de campanhas sobre cidadania para todos.
A Redes reconhece, porém, que tem de aprender mais sobre a violência contra mulheres e meninas – está em busca de evidências sobre essas experiências para entender como as mulheres pensam e sugerir formas eficientes de combate à violência que as aflige.
Pensando justamente nisso, uma importante iniciativa está acontecendo nesse momento na Maré, e exemplifica bem o propósito da Redes da Maré de investir na melhoria da condição de vida das mulheres que vivem no complexo.
Batizado de “Cidades Saudáveis, Seguras e com Igualdade de Gênero: Perspectivas Transnacionais Sobre a Violência Urbana Contra Mulheres e Meninas (VCMM) no Rio de Janeiro e em Londres”, o projeto é uma parceria que envolve a Universidade Queen Mary, de Londres, o People’s Palace Project do Reino Unido, a Universidade Federal do Rio de Janeiro e a Redes da Maré.
Os conhecimentos e ações produzidas por essa parceria serão, sem dúvida, de grande relevância para um melhor entendimento do papel que o município do Rio de Janeiro pode ter na garantia do direito à segurança pública e combate à violência contra mulheres e meninas nas cidades brasileiras.
Isso porque explora soluções de combate à violência sob a perspectiva da própria vítima. O projeto pretende enfatizar o papel essencial do município na redução da violência contra mulheres e meninas, aprendendo com elas.
Avanços e desafios
Nos últimos anos e até recentemente, o Brasil avançou de forma significativa, a partir da ação de diferentes atores institucionais, em relação à redução das desigualdades socioeconômicas, à inserção de dezenas de milhões de pessoas no mercado de consumo e saída da linha da pobreza.
Da mesma forma, foi ampliada a presença e a relevância do país no cenário internacional; a estrutura econômica cresceu e se diversificou, além de terem sido ampliados os direitos de determinadas parcelas da sociedade, como os negros e os homossexuais, por exemplo.
A questão da segurança pública, todavia, de forma geral não foi devidamente enfrentada na sociedade brasileira no período.
Assim, a melhoria dos indicadores sociais e econômicos não se refletiu numa melhoria global dos indicadores de segurança pública, em especial o mais grave e perverso dos fenômenos: a violência contra as mulheres e os jovens negros das favelas e periferias.
Dados macabros
O Mapa da Violência do Brasil de 2014 apresenta dados macabros: são 154 homicídios diários, totalizando 56.337 assassinatos anuais – cabendo ressaltar que muitas pessoas, aparentemente desaparecidas, não entram nessa conta.
Apesar desse grave quadro, estamos longe de ver soluções estruturais e consistentes para a garantia do direito à segurança pública no Brasil. Um dos principais limites para isso é o fato da Constituição do país definir o tema como uma atribuição basicamente dos governos estaduais.
Com isso, durante anos os outros entes federativos – União e municípios – evitaram se envolver com o tema, temendo, em geral, sofrer o desgaste decorrente de sua complexidade e magnitude. Logo, uma mudança na legislação, contemplando a atuação de todos os entes federativos no tratamento da segurança pública, de forma diferenciada e integrada, é urgente.
A partir de 2003, o governo federal pareceu que iria enfrentar de forma mais global o problema, construindo um programa que buscava integrar a questão da segurança pública e a cidadania – que ganhou o nome de Pronasci.
Na perspectiva de uma segurança cidadã, ações de prevenção, de inteligência, integração entre os operadores da Justiça e do Direito e melhor estrutura para as forças policiais foram assumidas sob coordenação do Ministério da Justiça.
Esse esforço, já a partir do governo Dilma, foi reduzido, e com o atual governo tem sido sinalizada uma postura profundamente conservadora, com ênfase no armamento policial e aumento das ações repressivas, além do fortalecimento da “Guerra às Drogas”.
O papel dos municípios
O país, por sua vez, vive uma eleição municipal que elegerá o novo prefeito e a Câmara de Vereadores em todas as cidades brasileiras. Uma das novidades dessa campanha – especialmente no caso do Rio de Janeiro, onde a crise de segurança pública tem se agravado -, é o fato de que o tema tem sido debatido, assim como o papel que o município poderia ter em relação a esse direito.
Já não era sem tempo: a violência e os crimes ocorrem de maneira direta nas cidades, que é onde as pessoas vivem; eles afetam de forma intensa o cotidiano dos seus moradores. Logo, não há como buscar soluções para a redução das taxas de criminalidade sem envolver a participação dos prefeitos e legislativos municipais no processo.
No entanto, uma posição que nos parece absolutamente equivocada tem dominado alguns debates: a defesa de que a guarda municipal seja equipada com armas de alta letalidade.
Essa medida tem sido proposta pelo atual prefeito de Niterói e por alguns candidatos a prefeito no Rio de Janeiro, apesar do secretário de Segurança do Estado já ter se declarado contra essa posição, pois isso tenderia a aumentar as situações de enfrentamento no cotidiano da cidade.
Prevenção como estratégia
Ao contrário dessa perspectiva, acreditamos que o eixo central da ação dos municípios deve ser a prevenção.
Para isso, um primeiro passo seria preparar a prefeitura para que tenha condições técnicas de realizar diagnósticos das dinâmicas de violências e criminalidades características nos seus territórios.
O planejamento e definição de prioridades de investimentos no campo da prevenção teriam como base as avaliações decorrentes das demandas, de usuários e agentes, no campo da segurança.
Em sequência, devem ser criados gabinetes de gestão integrada para unir atores de diferentes órgãos, que utilizariam os dados para construir a intervenção global nos territórios.
Por fim, os gestores das diferentes áreas do governo poderiam assim incorporar em suas ações nos territórios – especialmente nas áreas de educação, saúde, desenvolvimento social e cultura – iniciativas que levem em conta a segurança como um tema atinente ao seu trabalho.
Essas iniciativas integradas, com objetivos e metas, colocariam a questão da segurança pública em um patamar de acordo com sua gravidade e importância no cotidiano dos moradores da cidade.
É, portanto, evidente o papel de liderança que um prefeito pode cumprir junto à segurança pública. Basta assumir que isso é uma questão que lhe compete e que só pode ser efetivamente tratada com sua contribuição objetiva.
O que nos parece essencial é que as experiências com a das mulheres atendidas pela Redes da Maré, por exemplo, sejam levadas em conta explicitamente nessas iniciativas integradas.
As mulheres constituem mais da metade da população brasileira e sofrem desproporcionalmente uma série de impactos da insegurança pública e da violência. Isso é importante, sobretudo, em cidades como o Rio de Janeiro, onde 17 mulheres, por dia, são vítimas de homicídio, tendo como razões diretas a questão de gênero e a violência sexual.
*Esse é o quarto de uma série de artigos que será publicada pela BBC Brasil em parceria com o Urban Transformations Network e o UK Economic and Social Research Council (UT-ESRC) sobre presente e o futuro das cidades brasileiras. Os artigos publicados não traduzem a opinião da BBC.
Fonte: BBC