Uma mãe solo de Santa Catarina teve sua jornada de trabalho no posto de saúde de São José de Cerrito, a 300 km de Florianópolis, reduzida em 10 horas semanais para poder se dedicar aos cuidados do filho, que é cadeirante. Ela é divorciada, recebe um salário mínimo e, portanto, não tem condições de contratar alguém para ajudá-la com o menino, que tem nove anos.
A sentença a favor de um expediente mais curto foi dada no dia 5 de janeiro pela juíza Andrea Cristina de Souza Haus Waldrigues, da 3ª Vara do Trabalho de Lages (SC), que justificou a decisão mencionando o Protocolo para Julgamentos com Perspectiva de Gênero, publicado em outubro pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
O documento de 120 páginas é direcionado a juízes e juízas e reúne orientações para que eles conduzam julgamentos e tomem suas decisões com um olhar mais amigável e empático às mulheres, além de apresentar conceitos e um passo a passo para que não interpretem casos a partir de um viés machista.
Em um caso de processo em que a mulher é acusada de alienação parental, por exemplo, é importante que a Justiça identifique se não se trata apenas de uma tentativa para prejudicá-la, como é frequente, especialmente após separação do casal. O documento também alerta os juízes sobre a violência patrimonial, citada na Lei Maria da Penha, mas que não é considerada com frequência nos tribunais, explica a advogada Mariana Tripode, professora da Escola Brasileira de Direitos das Mulheres e especialista em questões de gênero.
“O protocolo não garante que a partir de agora todo julgamento terá um olhar mais atento à perspectiva de gênero”, pondera. “Mas caberá às advogadas e advogados colocar o tema sempre em pauta e lutar contra o machismo que ainda persiste no Poder Judiciário.”
Na sentença, a juíza de Santa Catarina destacou “a necessidade de interpretar as normas trabalhistas pelas lentes da perspectiva de gênero como forma de equilibrar as assimetrias existentes em regras supostamente neutras e universais, mas que atingem de forma diferente as pessoas”.
“OAB e tribunais resistem em divulgar novo protocolo”, alerta advogada
Apesar de ter sido publicado há mais de três meses, essa é a primeira (e até agora única) decisão judicial a mencionar o documento do CNJ.
“Essa é uma ferramenta fundamental para o acesso das mulheres à Justiça”, defende Tripode. O problema, ela destaca, é que a divulgação do protocolo tem sido falha e ainda não alcançou os magistrados.
“Muitos juízes nem sabem que ele existe. Está sendo falado no âmbito na advocacia feminista, mas colegas de outras áreas de atuação sequer falam do assunto. A própria OAB [Ordem dos Advogados do Brasil] e os tribunais estão resistentes em fazer essa divulgação”, critica a advogada.
“A gente já pedia um novo olhar com perspectiva de gênero na Justiça há tempos, isto é, que magistrados, desembargadores e todo o sistema de Justiça analisem os casos sabendo que mulheres historicamente são tratadas de forma desigual em relação aos homens — desigualdade que só será minimizada quando operadores do Direito reconheceram sua existência. Mas, agora, temos o respaldo do CNJ”.
Ela conta que, desde outubro, quando o protocolo foi publicado, advogadas e advogados vêm mencionando o documento em suas petições e, em alguns casos, anexando o documento ao final do processo para garantir que o juiz ou juíza tenha as diretrizes em mãos ao tomar sua decisão.
Universa procurou o CNJ para entender como foi feita a divulgação do protocolo entre juízes e se eles podem sofrer alguma sanção por descumpri-lo, mas não houve resposta do órgão até a publicação deste texto.
Protocolo complementa Lei Mariana Ferrer
Além de orientar que juízes e juízas a decidir com uma “lente feminista”, como explica Mariana Tripode, o protocolo também orienta a condução dos julgamentos para evitar ofensas e a exposição da mulher por sua condição de gênero.
Em termos práticos, advogados e advogadas podem recorrer ao documento para pedir ao magistrado que exclua dos autos do processo evidências como fotos da mulher dançando ou saindo à noite, por exemplo, anexadas na tentativa de questionar sua conduta. Ou, ainda, pedir que sejam retiradas colocações sexistas que ofendam suas clientes, como aconteceu na audiência do caso Mariana Ferrer, em 2020.
Após o vídeo em que a vítima é ofendida pelo advogado Gastão da Rosa Filho, que representa o réu André de Camargo Aranha, foi proposta e sancionada, em novembro de 2021, a Lei Mariana Ferrer. Com a nova legislação, fica proibida manifestação sobre fatos alheios ao que se está discutindo no processo e a utilização de informações que atinjam a dignidade da vítima.
“Somando esses dois dispositivos, o protocolo e a Lei Mariana Ferrer, tentamos impedir que a violência contra a mulher continue se perpetuando no Judiciário”, fala Tripode.
Fonte: Universa