Uma análise crítica sobre a reserva de cadeiras no Parlamento à luz da Constituição
A presença reduzida de mulheres no Parlamento brasileiro contrasta com sua maioria demográfica na sociedade, evidenciando um desequilíbrio estrutural que compromete a efetividade da igualdade de gênero na representação política. Essa desigualdade é fruto de obstáculos históricos, culturais e institucionais que ainda restringem o acesso das mulheres aos espaços de poder.
Diante desse cenário, propostas de ações afirmativas vêm sendo discutidas como forma de corrigir distorções persistentes e promover uma inclusão mais justa. A simples igualdade formal de direitos não tem sido suficiente para assegurar uma paridade efetiva nos processos de decisão política.
Nesse contexto, o Projeto de Lei Complementar (PLP) 112/2021, que propõe reservar 20% das cadeiras parlamentares para mulheres nos cargos preenchidos pelo sistema proporcional, exige uma análise cuidadosa à luz da Constituição Federal. Embora tenha como objetivo legítimo ampliar a participação feminina, a proposta interfere diretamente na lógica do sistema proporcional, ao vincular a distribuição de assentos a critérios identitários predefinidos.
Este artigo propõe uma reflexão crítica sobre esse mecanismo de ação afirmativa, considerando seus impactos jurídicos, os fundamentos teóricos que o sustentam e os desafios práticos de sua implementação. A intenção é compreender as implicações dessa medida na dinâmica democrática e na legitimidade da representação política.
Representação: identidade ou mediação?
A reserva de cadeiras pode ser vista como uma afronta ao princípio da soberania popular e da liberdade de voto, previstos na Constituição. Diferente das cotas de candidatura — que atuam na fase pré-eleitoral para ampliar o acesso ao processo político — a reserva de assentos interfere diretamente no resultado das eleições, limitando os efeitos da escolha do eleitor.
A ideia de que apenas mulheres podem representar mulheres, associando representação política à identidade de gênero, simplifica excessivamente um fenômeno complexo. Como destacou a teórica Hanna Pitkin, a representação deve ser compreendida como uma relação institucional baseada na atuação em nome do outro, com responsabilidade e compromisso com o interesse público — e não como um espelho da composição social.
Experiências internacionais mostram que a reserva de cadeiras pode aumentar a presença feminina no Parlamento, mas não necessariamente garante diversidade ou atuação efetiva. Países como Ruanda, Tunísia e Argentina registraram aumento na quantidade de parlamentares mulheres, mas com forte presença de candidaturas ligadas às elites partidárias e baixa renovação. Isso demonstra que a paridade formal, sem democratização interna dos partidos, não assegura pluralismo nem inclusão de mulheres de grupos marginalizados.
Caminhos constitucionais para uma inclusão efetiva
A superação do déficit de representação feminina deve respeitar os princípios constitucionais e preservar a integridade do processo democrático. Em vez de impor reservas compulsórias de cadeiras, o foco deve ser a efetivação das normas já existentes, promovendo igualdade política e respeito à soberania popular.
Um caminho viável é fortalecer a democracia dentro dos partidos, criando regras que incentivem a alternância de gênero nas listas e invistam na formação de novas lideranças femininas. A renovação real passa por essa democratização interna e pela criação de oportunidades efetivas de participação, especialmente para mulheres de grupos historicamente excluídos.
Além disso, a fixação de um percentual mínimo de cadeiras pode, paradoxalmente, se tornar um teto simbólico. Em vez de estimular a participação feminina, pode fazer com que os partidos se acomodem ao mínimo exigido, reduzindo os incentivos para promover mais candidaturas de mulheres.
Modificar a lógica eleitoral para corrigir resultados com base em identidade de gênero fere princípios estruturantes da Constituição de 1988, como a liberdade de voto e a proporcionalidade. A promoção da igualdade exige o fortalecimento das etapas pré-eleitorais, como o apoio à formação de lideranças femininas e a democratização dos partidos, e não a intervenção direta no resultado das urnas.
Incluir grupos historicamente marginalizados não representa uma ameaça à democracia, mas um passo fundamental para torná-la mais representativa e responsiva. No entanto, essa inclusão precisa respeitar os fundamentos do sistema representativo e os direitos constitucionais.
O debate sobre justiça representativa deve ir além da mera contagem de cadeiras, buscando promover uma participação política qualificada. Só assim será possível alcançar uma democracia verdadeiramente plural, que reflita as diversas vozes da sociedade de forma legítima e responsável.
Fonte: Jota