BRASÍLIA – O principal programa do governo federal de combate à violência contra a mulher ficou sem um único centavo no ano passado. A ‘Casa da Mulher Brasileira’ tinha como objetivo inicial construir ao menos uma unidade de atendimento integrado, por Estado, para aquelas que sofrem com agressões físicas e psicológicas. Lançado ainda na gestão de Dilma Rousseff, em 2015, o programa apoia mulheres que sejam alvo de violência causada por desconhecidos, companheiros ou familiares. Até agora, no entanto, apenas cinco unidades estão funcionando. Em São Paulo, a estrutura local teve de contar com investimento privado para que a obra fosse concluída.
Embora a ministra Damares Alves já tinha admitido que sua pasta não tem condições de manter e custear o programa, a justificativa do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos para a paralisação total no ano passado foi a falta de acordo com a Caixa Econômica Federal para a construção de novas unidades. O contrato com o banco só foi assinado em dezembro de 2019.
Para este ano, o ministério de Damares promete uma “reformulação” da Casa da Mulher. A ideia é mudar o nome do programa e levá-lo para 25 municípios a um custo mais baixo, além da alternativa de usar espaços cedidos ou locados, em vez de construir um novo prédio do zero. Entre os municípios citados pela pasta, entretanto, foi incluída a cidade de Brasília, que já possui uma unidade há cinco anos e que está fechada desde 2018 por necessidade de reparos na estrutura. O governo do DF promete que a reforma será concluída ainda no primeiro semestre deste ano.
A falta de recursos para o programa ilustra a falta de prioridade do governo para políticas públicas voltadas para mulheres. Entre 2015 e 2019, o orçamento da Secretaria da Mulher, órgão do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, foi reduzido de R$ 119 milhões para R$ 5,3 milhões. Levantamento feito pelo Estado aponta que, no mesmo período, os pagamentos para atendimento às mulheres em situação de violência recuaram de R$ 34,7 milhões para apenas R$ 194,7 mil.
No Brasil, uma mulher é agredida a cada quatro minutos, segundo dados do Ministério da Saúde. Os índices de feminicídio também vêm em uma crescente nos últimos anos, mas, na política, o tema não ganha prioridade. Em conversa com o Estado, a ministra Damares Alves reclamou que o orçamento do seu ministério é “pequetitico”.
A pasta é uma das que menos recebeu recursos entre janeiro e dezembro de 2019 – foram R$ 240 milhões executados (de um total de cerca de R$ 500 milhões que estavam previstos) – atrás apenas do Ministério do Turismo. Apesar disso, ela justifica que o seu ministério não é “finalístico”, e sim de “articulação”, por isso depende da destinação de emendas parlamentares e de parcerias público-privadas para funcionar.
“Manter a Casa da Mulher (Brasileira) pelo ministério é impossível”, disse Damares, em abril do ano passado, durante audiência na Comissão de Defesa dos Direitos da Mulher da Câmara dos Deputados. “Temos que encontrar uma alternativa, mas o Ministério não tem como custear”, afirmou na ocasião.
No combate à violência contra a mulher, o foco de maior investimento da pasta no último ano foi o aperfeiçoamento do atendimento às denúncias, com a integração do Disque 100 e do Disque 180.
Para este ano, o ministério depende da negociação com parlamentares para cumprir promessas e realizar pagamentos. A secretária nacional de Políticas para Mulheres, Cristiane Britto, afirmou que a pasta enfrenta dificuldade para convencer os congressistas a destinarem a verba.
Normalmente, as emendas feitas pelos parlamentares para o Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos não chegam a 1% do total de recursos disponíveis em cada ano. Para 2020, somente 0,8% das emendas apresentadas foram para o Ministério da Mulher. No ano anterior, a quantia representou 0,5%.
Ex-ministra da Secretaria de Políticas para Mulheres no governo Dilma Rousseff, a socióloga Eleonora Menicucci lamentou a falta de recursos para a Casa da Mulher Brasileira, que classificou como um “desastre”. Segundo ela, o programa é inovador ao integrar serviços de atendimento e capacitação para emprego e geração de renda, a fim de ajudar a quebrar o chamado ‘ciclo da violência’.
“Quando o assunto é violência contra as mulheres, não importa a classe social, o governo que está, pois ela é sistêmica do patriarcado. E hoje estamos sem nenhuma política concreta de combate a essa violência”, avaliou Eleonora.
Na semana passada, uma auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) revelou deficiências nas políticas públicas voltadas ao alcance da igualdade de gênero e do empoderamento das mulheres. Entre os pontos destacados pela corte, estão a falta de transparência orçamentária nas ações com o tema, além de mecanismos de articulação inoperantes e problemas de coordenação entre os órgãos que trabalham com as políticas de gênero. A pesquisa também mostra que os cortes na Secretaria da Mulher não são uma novidade. O TCU destaca que, entre 2015 – início da vigência da Agenda 2030, compromisso assumido por líderes de 193 países – e 2018, houve redução de 80% da dotação orçamentária da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres (SNPM) e de 42,3% do quadro de pessoal do órgão.
A mulher segurava a filha de apenas oito meses no colo, com toda a força. A vontade que tinha, diz ela, era fazer com que a criança “coubesse” dentro de seu corpo, para que ficasse protegida. A outra alternativa era se jogar pela janela. Pouco tempo antes, o marido ordenou que ela se despedisse da menina, sob a ameaça de que iria matar a esposa naquela mesma noite.
A cena ocorreu após horas de agressões, que eram recorrentes na rotina do casal. A professora de Educação Física passou mais de dez anos recebendo socos, marteladas e golpes com chave de fenda. Algumas marcas podem ser vistas até hoje, cerca de quatro anos depois.
A história só teve fim após ela decidir denunciar o então companheiro e passar três meses em uma Casa Abrigo, mantida pelo governo do Distrito Federal, com uma medida restritiva.
Hoje, quando ouve falar de histórias de outras mulheres, algumas vítimas de feminicídio, conta que não se comove. “Quando eu vejo um feminicídio, sinto que já passei por todos eles. Só não tive a minha casa queimada. De resto, passei por tudo”.
Após o abrigo, a mulher reclama da falta de apoio para encontrar um emprego e uma creche para a filha estudar. Ela conta que assistiu a muitos casos em que outras vítimas acabaram optando por voltar para o agressor, por não ter para onde ir. Foi o que ocorreu com a maioria das suas companheiras no período de acolhimento. E muitas vezes ela ouviu a orientação para fazer o mesmo.
Ainda assim, são poucas as mulheres que conseguem ter algum tipo de acolhimento após sofrer agressões. Uma pesquisa de Informações Básicas Municipais do IBGE, divulgada em setembro do ano passado, revelou que, mesmo previsto na Lei Maria da Penha, criada há 13 anos, o acolhimento em casas-abrigo de mulheres ameaçadas de morte só é realidade em 2,4% das cidades brasileiras. Ao todo, são 153 instalações.
O governo federal é responsável pelas diretrizes das casas-abrigo, mas a gestão e a manutenção dos espaços são feitas pelos governos estaduais e municipais.
As Casas da Mulher serviriam para suprir essa lacuna. Além do acolhimento, a proposta é reunir, no mesmo espaço, acolhimento e triagem, apoio psicossocial, delegacia, Juizado, Ministério Público, Defensoria Pública, promoção de autonomia econômica, e cuidado das crianças (brinquedoteca), além de alojamento e uma central de transportes. / COLABORARAM CAMILA TURTELLI E DANIEL WETERMAN
Fonte: Estadão