Fomos até uma penitenciária do Paraná e ouvimos o que as mulheres presas ainda querem dar à sociedade.
Fotos cedidas pelo projeto Help-Portrait Curitiba.
Quando o “bonde” chega trazendo as novas detentas, tudo para. É necessário um procedimento padrão de ingresso. No caminho silencioso que percorrem – com os braços para trás e a cabeça baixa – entre a saída traseira do furgão e a entrada da penitenciária, vão deixando para trás filhos, amores, casa, sonhos, a própria identidade.
Trocam a calça jeans justa pela cinza larga. A blusa estampada da moda pela camiseta branca e o moletom laranja. Os cabelos longos, a partir de agora, devem ficar presos. Aprisionados tal qual a essência delas.
Essa distância de si dificulta a recuperação dessas mulheres. A Penitenciária Feminina do Paraná (PFP), uma das de segurança máxima do Brasil e que tem servido de modelo para o país no quesito olhar humanitário sobre as detentas, abriu os seus portões de ferro para o projeto internacional Help-Portrait, que busca tornar visível o invisível, resgatar a autoestima e a identidade de pessoas em vulnerabilidade social, por meio da produção fotográfica (incluindo maquiagem, cabelo e troca de roupa). Os voluntários acreditam que, desta forma, contribuem para que o indivíduo se reconheça como ser humano de valor. A foto – que é entregue para o retratado – é a tradução de quem realmente essas pessoas são, além do uniforme ou do crime que cometeram, no caso das detentas.
Há quem diga que passar um batom ou um lápis no olho é futilidade, que querer se ver bonita é pecado e que uma foto não lhes servirá para nada. A verdade é que essas ações despertam nelas uma auto-percepção, uma reflexão sobre a própria trajetória. Consequentemente, as portas para uma mudança pessoal se abrem.
O projeto Help-Portrait está entre as atividades realizadas pelo Programa Ciência e Transcendência: educação, profissionalização e inserção social, que atua na penitenciária do Paraná desde 2012, apostando em ações de desenvolvimento humano para a recuperação efetiva das presas, preparando-as para o retorno à sociedade. O Programa é uma parceria entre a Pontifícia Universidade Católica do Paraná e a Secretaria da Justiça, Cidadania e Direitos Humanos do estado.
Vale até ir pra tranca
Privação de quem se é não está previsto em lei, mas para que o sistema funcione, existem regras coletivas. Só na PFP estão presas 460 mulheres. As centenas anulam a individualidade. A autopercepção vai esmaecendo assim como a memória da própria imagem, que se perde devido à ausência de espelho no cárcere – uma vez que é considerado um objeto perigoso.
Aí, a necessidade dá lugar à criatividade. Uma caneca de plástico preto envolta por papel filme (o mesmo no qual veio embrulhado o pão do café da manhã) vira espelho. Sim! Elas dizem que conseguem se ver neste “reflexo”. O cortador de unha também corta o cabelo. A linha do uniforme faz de depilação da perna a desenho da sobrancelha. E até para a calça larga tem jeito. “A gente abre a costura e ajusta tipo legging”. E deixam? “Na verdade não. A gente até pode ser penalizada por isso e ir pra tranca. Mas, pelo menos, eu me sinto melhor. Vale o risco”.
De olhos fechados, enquanto são maquiadas, elas parecem estar decifrando a textura de cada produto em seus rostos. O toque nos cabelos reaviva memórias. Na hora do clique, há risos, por vezes lágrimas. Há olho no olho. “Eu me sinto viva de novo. Eu gosto do jeito que vocês me olham. Vocês me olham como gente”. E que elas possam ser gente aos olhos de todos.
A seguir, elas mostram a cara e falam dos sonhos: acreditam que ainda têm o que dar à sociedade quando saírem em liberdade. Aqui, vocês as vêem além do crime: as vêem como quem são.
- “Eu queria me matar. Eu já tinha planejado. Eu ia fazer isso hoje de manhã. Mas, depois do que eu vi hoje, da forma como eu me vi hoje, eu não quero mais. Da mesma forma que eu ouvi uma voz dizer para mim que eu deveria morrer, que eu não valia nada, hoje, eu ouvi: “Você está viva. Tem vida aí dentro e é vida em abundância”. Eu quero mandar essa foto para os meus filhos, para eles se orgulharem de mim e verem que a mãe deles ainda existe. Eu não quero mais viver com a culpa que eu carrego. Eu quero viver e fazer diferente.”
- “Eu estou me descobrindo aqui dentro. Eu me pergunto toda noite: “por que Deus fez isso comigo?” A resposta é que eu precisava aprender muitas coisas. Lá fora, eu estava livre, mas prisioneira dos meus vícios. Só quando eu vim parar aqui, eu entendi o valor da família.Eu errei e estou pagando pelo o que eu fiz. Quem me ouvir falando pode não acreditar, mas eu estou aprendendo aqui. Eu quero mudança para mim e para os meus filhos.Me vendo assim já dá para ver a mudança. Ninguém nunca ia me imaginar assim. Ninguém nunca me disse que eu era bonita. Mas olha a pessoa maravilhosa que eu sou! E eu posso mudar muito ainda. Basta querer.”
- “Eu achei que eu estava apagada, morta, um nada. Hoje, eu vi que dentro de mim tem uma mulher que é guerreira, batalhadora. Algo foi ressuscitado em mim.Quando eu cruzar esse portão, eu quero só acertar. Hoje, eu penso nos outros, eu tenho projetos que incluem a minha família. Eu penso em fazer um curso técnico de fotografia, em terminar os meus estudos aqui e fazer uma faculdade. Eu tenho que fazer a diferença por mim mesma e por aqueles que me esperam lá fora.Se meus filhos estivessem aqui, eu gostaria de pedir perdão por ter sido uma mãe ausente. Gostaria que eles soubessem que vou fazer a diferença junto com eles.”
- “Eu sou quieta e as pessoas nem acreditam quando eu começo a orar em voz alta. Quando eu vejo, estou com a cabeça para fora, naquela portinha, orando pelas mulheres e falando palavras de apoio. Hoje, eu estou rouca de tanto orar. Eu faço campanha de oração por todas, inclusive pelas agentes. Eu acho que eu tenho sido usada para ajudar as presas da minha galeria. Agora, eu pedi para trocar de cubículo, porque eu quero poder ajudar as mulheres das outras alas.”
- “Aqui dentro, eu procuro dar força para quem precisa. A minha sentença é de 20 anos. Eu tento sempre dar uma palavra de carinho e de conforto para as pessoas que estão aqui. Tenho certeza de que aqui é um aprendizado.Minha maior vontade é sair e conquistar tudo o que eu perdi. Na verdade, conquistar mesmo, porque o que eu tinha não era meu. Eu espero que as pessoas possam ultrapassar as barreiras da vida de uma forma diferente da minha. Tem gente que vai e não volta. Eu estou voltando e voltando melhor.”
- “Com o sofrimento, eu aprendi a superar os meus medos e a ter mais ânimo para correr atrás do meu futuro. Eu busco todo dia proporcionar coisas boas para as pessoas que estão ao meu redor. E estou feliz apesar de estar neste lugar. Hoje, eu não peço para ir embora. Eu peço para ir só quando eu estiver preparada para enfrentar o mundo lá fora. Agora eu tenho sonhos. Eu quero sair, ter a minha casa, dar orgulho para a minha família e conquistar o carinho da minha filha.Hoje, ela chama a minha ex-sogra de mãe. Ela está no lugar de mãe, graças a Deus, mas isso dói muito. Independente do que eu já fiz, eu posso reverter isso para algo bom. Tem alguma coisa boa em mim.”
- “Eu levantei braba e estressada e nem queria participar dessa atividade de fotografia. A guarda até ficou nervosa comigo. Eu pensei: eu não vou, não. Mas eu vim e comecei a pensar diferente. A gente fica aqui meio desleixada. Quando eu me vi assim arrumada, eu pensei: “Olha aí, a Cirlene de volta!”Eu quero contar para os meus netos uma história boa. Eu quero ouvir eles dizerem: a minha vó é uma pessoa boa, é brincalhona.”
- “Aqui a gente não tem o toque, não abraça ninguém, não pode nada. Quando chega esse monte de gente diferente (voluntários) aqui, renova a minha vida. Vocês não têm nojo de nós. Eu quero procurar ter esse gesto que vocês têm aqui comigo com outras pessoas. Quem sabe com crianças ou idosos?Quando eu sair daqui, eu quero recuperar as pessoas que eu destruí. Eu quero comprar uma chácara e ajudar essa gente. Dar para eles o que eu tirei. Eu fiz muita mãe chorar. Se eu tiver essa oportunidade, eu quero fazer isso.”
- “Quando eu estava na rua, eu achava que na cadeia só tinha gente ruim, mas não é assim. Eu achava que nunca viria parar aqui. Nunca diga nunca.Aqui eu estudo. Eu estou fazendo um curso profissionalizante. Eu quero sair daqui e fazer o bem sem saber a quem. Eu aprendi isso na cadeia.O meu sonho é ter uma pousada com restaurante. Já tem até nome: Cantinho do Brasil.Eu tenho um caderno onde eu escrevo as minhas metas. É a única coisa que eu vou querer levar daqui quando eu sair.”
- “Eu não tenho vontade de apagar a minha história. Eu sou professora de educação física e dava aula para adolescentes. Eu sei que a minha experiência pode servir de exemplo para eles. Eu sou a prova de que uma decisão errada tem consequências graves. Eu acho que através de mim, eles podem pensar mais antes de fazer algo errado. Quero também que a minha história seja de que é possível mudar.Quando colocaram uma algema em mim, eu passei a ser vista como um lixo. Eu quero ensinar para os meus alunos sobre igualdade e diversidade, sobre olhar para todos como seres humanos.”
Fonte: AZMina