A pastora Damares Alves está à frente do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos Imagem: Gabriela Biló/Estadão Conteúdo
Mesmo com o risco do aumento da violência contra a mulher durante a pandemia, o governo federal registra o menor investimento em programas para a população feminina desde, pelo menos, 2015, quando a área perdeu o status de ministério e se tornou uma secretaria no governo de Dilma Rousseff (PT). Atualmente, a Secretaria de Políticas Nacionais para Mulheres é vinculada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, comandado por Damares Alves.
Segundo levantamento do Inesc (Instituto de Estudos Socioeconômicos) obtido com exclusividade por Universa, em 2020 a secretaria teve o maior valor autorizado para ser gasto desde 2017, R$ 124,3 milhões, mas a verba efetivamente usada foi de R$ 36,5 milhões, a mais baixa em cinco anos. E, segundo a pesquisa, 2021 caminha para alcançar um patamar ainda menor. Nos primeiros seis meses deste ano, foram gastos R$ 13,9 milhões, 11 pontos percentuais a mais do que no mesmo período do ano passado, mas R$ 1,47 milhão a menos.
Uma das principais políticas públicas na área, a Casa da Mulher Brasileira foi a que mais sofreu impacto, recebendo somente 2,6% da verba autorizada para 2021 até agora: dos R$ 25,5 milhões disponíveis, foram gastos R$ 672 mil.
A análise foi feita a partir de levantamento de dados disponíveis no portal Siga Brasil, sistema de informações sobre orçamento público federal disponível no site do Senado. Todos os números tiveram inflação corrigida pelo IPCA (Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo), para garantir que os dados fossem comparáveis.
“Mesmo com pandemia e aumento do feminicídio, dinheiro não foi gasto”
Responsável pelo levantamento, Carmela Zigoni, doutora em antropologia social e assessora política do Inesc, afirma que, na prática, o baixo índice de gastos significa que não houve repasses para que estados e municípios pudessem investir em programas para mulheres, principalmente os de combate à violência de gênero.
“Estamos vivendo uma pandemia, mulheres estão presas em casa com seus agressores. Os municípios já estão sufocados pelo teto de gastos, pela crise sanitária, qualquer recurso do governo federal faria muita diferença. A autorização para usar esse dinheiro existe, mas a verba não está sendo repassada”, afirma Zigoni.
Em São Paulo, maior cidade do país, a Casa da Mulher Brasileira foi inaugurada em novembro de 2019 e só recebeu repasses federais até outubro de 2020. “É o município que está bancando”, explica uma funcionária do local que prefere não se identificar.
“Há várias maneiras de fazer esse recurso chegar na rede de enfrentamento à violência. Poderiam criar parcerias com organizações da sociedade e com universidades. Mas nada disso foi feito”, diz Zigoni.
“Houve inserção na mídia, cartilha sobre violência doméstica em PDF para ler no celular. Mas isso não chega na mulher pobre e periférica, por exemplo, que já precisa se preocupar em mexer no aplicativo para conseguir auxílio emergencial. O ministério diz que faz um trabalho de conscientização, mas que público é esse que eles estão visando?”
A pesquisadora ressalta que neste ano a execução do orçamento está pior do que no ano passado. “E 2020 já foi complicado porque, com R$ 124 milhões disponíveis, só 30% foram executados. Ou seja, mesmo em um ano de pandemia e com aumento do feminicídio, tinha dinheiro e não foi gasto.”
Dados da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, ligada ao ministério, mostram que em 2020 o número de denúncias de violência contra a mulher feitos por meio de ligações ao Disque 100 e ao Ligue 180 — o primeiro voltado a crimes contra direitos humanos e, o segundo, contra mulheres — foi de 105 mil, 25% a mais do que em 2019, que teve registro de 85 mil denúncias computadas apenas pelo Ligue 180.
Segundo o Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, divulgado em 15 de julho, no ano passado houve uma chamada à Polícia Militar por emergência envolvendo violência doméstica a cada minuto, um aumento de 16% em relação a 2019. Em relação a feminicídios, houve aumento de 1% na comparação com o ano passado, com uma mulher sendo morta por questão de gênero a cada sete horas.
“Não há estratégias adequadas para ajudar mulheres”, diz pesquisadora
O maior investimento do governo em políticas para mulheres nos primeiros seis meses de 2021 foi para o Disque 180, que recebe denúncias e dá orientações para situações de violência de gênero. Dos R$ 24,8 milhões, foram gastos R$ 10,4 milhões até junho. Essa foi uma promessa de investimento do governo em relação à pandemia que tem sido cumprida.
Para Michelle Fernandez, especialista em políticas sociais e pesquisadora na UnB (Universidade de Brasília), há diversas outras estratégias, porém, que já deveriam estar em andamento. Levantamentos, por exemplo, relacionados às necessidades específicas de grupos de mulheres, e não apenas voltados para violência.
“Sem sombra de dúvida o combate à violência é muito importante, mas, paralelo a isso, há outros pontos. Em 2021 tivemos a questão das mães solo com auxílio emergencial suspenso. Seria fundamental que essa secretaria desse apoio para essas mulheres que entraram num grupo de ainda mais vulnerabilidade social com a pandemia, que têm filhos para criar”, pontua Michelle. “Mas esse assunto não está na agenda do ministério, não entra nem em discussão. Os números mostram que a população feminina não é prioridade do governo.”
Ministério afirma que gasto em 2020 foi “o maior dos últimos cinco anos”
Procurado pela reportagem, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos refuta os dados divulgados publicamente pelo Siga Brasil de que a pasta executou apenas 30% do orçamento em políticas para mulheres no ano passado. “A execução de 2020 para as políticas públicas voltadas para as mulheres foi a maior dos últimos cinco anos, alcançando 98%”, afirma o MDH.
Para este ano, o ministério de Damares diz ter empenhado R$ 11,2 milhões para “a construção de novas unidades da Casa da Mulher Brasileira, a aquisição de viaturas para patrulhamento especializado e cursos de qualificação profissional no âmbito do Projeto Qualifica Mulher”. Depois de um pedido de descrição das ações por parte da reportagem, informou que o valor refere-se apenas a “gastos de diárias/passagens” e “execução do Disque Direito Humanos (Disque 100) e da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180)”.
Afirma ainda que a Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres tem realizado ações que não necessitam de recurso direto, entre elas o projeto Maria da Penha Vai à Escola, de divulgação da Lei Maria da Penha entre os profissionais da educação, para chegar a crianças e adolescentes em ambiente escolar. Até agora, a proposta começou a funcionar apenas no Acre.
A pasta informa também que vai investir todo o orçamento disponível até dezembro no programa profissionalizante Qualifica Mulher, nas Casas da Mulher Brasileira, nos Núcleos Integrados de Atendimento à Mulher e no Plano Nacional de Enfrentamento ao Feminicídio, sem dar detalhes sobre ações específicas e datas de repasses.
Por fim, diz que foi repassado à Casa da Mulher Brasileira de São Paulo o valor de R$ 500 mil no dia 5 de maio deste ano e que há previsão de liberação de mais R$ 5 milhões. Sobre as 23 casas que ainda serão entregues, afirmam que uma, em Uberaba, ficará pronta em dezembro de 2021; outras 18 serão entregues em 2022 e, as demais, em 2023.
Fonte: UOL