A cientista social Ellen da Silva, cofundadora da Mahin Consultoria Antirracista, organização focada em formar lideranças com compromisso de equidade racial, avalia em entrevista ao GLOBO que é preciso ampliar a presença de mulheres, especialmente negras, em cargos de confiança e entre servidores do governo federal. Um levantamento publicado pelo GLOBO, com base em dados do Ministério da Gestão, mostrou que o governo Lula mantém o mesmo percentual de mulheres em postos comissionados que a gestão anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro. Além de espelhar a população brasileira, que é em sua maioria feminina e negra, a medida traz ganhos para a qualidade dos serviços ofertados pelo setor público. Veja os principais trechos da entrevista.
- Dados: Governo Lula mantém representação feminina do mesmo tamanho que a gestão Bolsonaro; veja setores mais desiguais
- Alvos de loteamento: Dnit e Dnocs estão entre os órgãos com menos mulheres em cargos de confiança no governo Lula
A permanência do quadro de mulheres nomeadas em cargos de confiança no governo Lula na mesma proporção da gestão anterior, de Jair Bolsonaro, indica que há fatores estruturais que dificultam o acesso a essas funções, independentemente de os governos sinalizarem apoio à agenda?
A vontade política que o atual governo tem demonstrado é o primeiro passo para enfrentar esse desafio, mas acredito que, considerando o poder de influência dos partidos políticos na indicação para cargos de confiança, ainda temos muito a avançar. O que temos percebido ao longo das décadas é um baixo comprometimento com a participação de mulheres e também de pessoas negras. Podemos usar como exemplo o que tem ocorrido nos cargos eletivos. No caso das mulheres, as cotas estão em vigor no Brasil desde 1996. Naquela época, 6% das pessoas eleitas para o Parlamento eram mulheres, hoje, depois de quase 30 anos de política, somos apenas 17% na Câmara Federal. A maioria dos países da América Latina implementou a política ao mesmo tempo e obteve resultados bem mais expressivos. A Costa Rica tem 45% de mulheres no Legislativo Nacional. O fato é que no Brasil, essa política não vingou.
Vários dos outros países da região têm desenhos institucionais que facilitam a implementação, como a lista fechada. Mas uma das razões cruciais para a política de cotas não funcionar no Brasil é o direito de mulheres se verem representadas nos espaços de decisão não ser prioridade para os partidos. Eles têm consistentemente não cumprido o que está na lei, colocando candidaturas laranjas, fazendo menos investimento nas campanhas. Eles foram multados por não cumprirem a legislação, mas este ano foram anistiados. Considerar este precedente do engajamento dos partidos com diversidade na política eleitoral é desanimador e nos faz supor que o mesmo pode ocorrer nos cargos de confiança. No entanto, o custo de indicações para cargos de confiança é relativamente mais baixo do que apoiar uma candidatura, então considero fundamental a sociedade civil, de maneira geral, pressionar partidos de todo o espectro ideológico a priorizar o direito de todos os grupos sociais de se verem representados nos espaços de tomada de decisão.
Como os partidos políticos podem ajudar?
No momento eu diria que o principal é fazer a escolha política de fazer uma busca ativa por profissionais e não indicar as mesmas pessoas de sempre, usualmente homens brancos… A ideia não é limitar a possibilidade de os partidos indicarem pessoas com alinhamento político e ideológico. Não é sobre isso, mas sobre apostar em mulheres e pessoas negras que têm esse alinhamento. Nós somos capazes de ocupar os cargos. E, nos casos em que falta algum conhecimento técnico ou relacional, o partido pode investir em um trabalho de formação nos quadros partidários que já existem. Eles têm recursos previstos para isso. Quando nós não diversificamos as pessoas que estão tomando decisões, o custo para as políticas públicas é alto. Os teóricos da burocracia representativa dizem que a confiança da população no serviço público tende a aumentar quando há pessoas com as mesmas características sociodemográficas como lideranças públicas.
Além das mulheres, é muito importante considerar a questão racial neste ponto. Muitas vezes, há pessoas que estão tomando decisões que nunca tinham pisado em uma escola pública, ou nunca usaram o Sistema Único de Saúde (SUS). Cerca de 80% das pessoas que usam exclusivamente o SUS são pessoas negras. A gente sabe como o sistema funciona do ponto de vista do usuário, a gente sabe o que é enfrentar o racismo no atendimento em uma UBS. Podemos compor o time de servidores que vai pensar soluções para isso. É o momento de superar a narrativa de que não é possível recrutar mulheres e negros por não terem pessoas qualificadas. No caso dos negros, com a política de cotas no ensino superior, tem um contingente cada vez maior de pessoas formadas e capazes de trazer uma carga de vivência que outros perfis não trazem. A gente só precisa que apostem em nós.
As mulheres estão mais presentes em pautas ligadas a áreas como direitos humanos e educação, e menos nas relacionadas à segurança, economia e relações exteriores. O que contribui para essas diferenças entre setores?
Tem uma raiz histórica profunda que associa as mulheres a tudo o que tem a ver com cuidado ou áreas que exigem menos raciocínio, como se nós estivéssemos sempre conectadas às emoções e os homens à razão. É uma concepção equivocada, mas muito enraizada na sociedade. Os estereótipos de gênero acabam se traduzindo nas escolhas das profissões, e até mesmo na experiência educacional das crianças ao longo da vida. Temos meninas muito jovens que já começam a experimentar dificuldades nas disciplinas de exatas. É possível, inclusive, que professores tenham expectativas menores para mulheres, e menores ainda para mulheres negras. Isso vai abrindo um ciclo de desengajamento com o que é entendido como mais “racional”. Este é um trabalho de longo prazo que vamos ter que fazer para mudar isso nas próximas gerações. Mas, no curto prazo, há muito por fazer. Certamente o começo é uma busca ativa por profissionais. Ainda que tenhamos menos mulheres nessas áreas, elas existem. Lideranças que podem escolher quem vai ocupar seu segundo ou terceiro escalão não podem escolher na pressa e no que já conhecem. Para transformação social, é preciso busca ativa.
Isso passa também por mudanças nos concursos para essas carreiras?
Concursos públicos de carreiras em áreas como segurança, economia e relações exteriores têm majoritariamente a presença de homens brancos entre os aprovados, mesmo com ações afirmativas. A gente tem um desafio grande que tem a ver com os estereótipos de gênero que mencionei antes, mas nesses casos também é preciso rever a forma que temos feito as provas. Usualmente são concursos com muito conteúdo que as pessoas decoram, que exigem muito investimento de tempo e financeiro para entrar. Considerando que as mulheres ganham menos, e as mulheres negras têm menos ainda, as mulheres já estão largando de lugares diferentes. Para o Instituto Rio Branco, por exemplo, é caríssimo. Elês tem uma bolsa de preparação focada em alunos negros desde 2001 e, ainda assim, não têm conseguido aumentar substancialmente os números.
A questão do tempo é crucial também. Mulheres, especialmente as mulheres negras, infelizmente ainda contam com uma jornada dupla e tripla, trabalhando fora e ao mesmo tempo sendo responsável pela casa e pelos cuidados com companheiros, filhos ou idosos. Isso tudo é uma carga material e mental que vai retirando tempo em que você poderia se dedicar a estudar para estes concursos supercompetitivos. Uma questão que se coloca quando debatemos este assunto é: então, a gente vai “baixar a régua” para inserir diversidade? Não é abaixar a régua, é mudar a premissa e considerar que diversidade produz políticas públicas melhores. Não é para privilegiar indivíduos, é para tornar o serviço público mais conectado com a população que ele serve. Como está agora, não se recruta, necessariamente, pessoas com vínculo e vocação para o serviço público. Muitas vezes são recrutados concurseiros que querem estabilidade e o maior salário possível. Se a gente quer resultados diferentes, é preciso recrutar de forma diferente.
Quais são os benefícios para as políticas públicas, quando se pensa no avanço de mulheres, sobretudo negras, em cargos de confiança do serviço público?
Reforço o que mencionei antes: a presença de mulheres e de pessoas negras produz organizações melhores. Na verdade a de outros grupos também. Ter pessoas com deficiência, pessoas LGBTQIAP+, pessoas de diferentes territórios… Tudo isso importa. O valor da diversidade tem sido muito discutido no setor privado, em que empresas mais diversas faturam mais, e no setor público também, em que o indicador de sucesso é a qualidade dos serviços públicos. Uma pesquisa do Insper mostrou que ter mulheres e negros na política pode reduzir até mesmo a corrupção. E não é porque intrinsecamente a gente tem algum gene que nos torna menos corruptas, mas é porque o sistema foi organizado ao longo das décadas de forma que homens brancos estão em posições de tomada de decisão. A possibilidade de ser corrupto e estar imbricado nessa máquina é maior. Renovar os atores políticos pode nos ajudar a renovar as formas de fazer política pública.
E para a qualidade dos serviços?
O benefício de trazer perspectivas de pessoas que não estiveram inseridas no debate público ao longo das últimas décadas, isso é possibilitar a inovação, as agendas que podemos levar a frente não só sobre discriminação, mas ligadas ao direito à infância, o cuidado de pessoas vulneráveis e políticas de saúde e educação. Todos estes temas estão no cotidiano de mulheres negras, por exemplo. Ter esta experiência cotidiana nos qualifica muito para identificar quais são os desafios e ser protagonistas no desenho de possíveis soluções.
Fiz uma pesquisa sobre mulheres na política na Costa Rica e que elucida muito o que quero dizer. Em uma das conversas que tive com uma deputada, ela falou sobre um debate que ela participou de uma decisão de uma rodovia que ia passar no meio de uma comunidade. Quando a discussão estava concentrada nos homens, o orçamento e até mesmo os materiais da obra eram alvo do debate. Quando mais mulheres entraram na discussão as perguntas passaram a ser: e as passarelas para pedestres? Qual a distância de uma para outra? O fato é que as passarelas iam cortar a comunidade, e de um lado ia ficar o hospital e uma escola. Estava previsto um espaçamento grande de quilômetros entre uma passarela e outra. As mulheres tiveram a preocupação de inserir mais passarelas. Por quê? Porque na nossa sociedade, infelizmente, as políticas de cuidado ainda estão muito concentradas nas mulheres.
Elas que usualmente levam ou têm a carga mental de refletir sobre a ida de crianças na escola e de doentes aos hospitais. São perguntas que aparecem por conta da prática de vida. Do ponto de vista pragmático, a gente precisa de mulheres, e em especial de mulheres negras, nessas tomadas de decisão principalmente em políticas que são mais estruturantes, como educação, saúde e segurança, porque no dia a dia carregamos o imenso fardo do mal funcionamento dessas políticas.