O olhar crítico de juristas, de parlamentares e da sociedade civil em geral sobre as leis que tocam no debate sobre representatividade feminina na política tem sido fundamental para se refletir profundamente sobre a efetividade das tais leis e suas lacunas. A atuação de mulheres feministas em espaços decisórios tem contribuído para mudanças reais, com a adequação da legislação à realidade político-partidária do Brasil.
Um caso emblemático ocorreu no último 15 de março, no Supremo Tribunal Federal, quando foi votada a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 5617, que considera inconstitucional o teto de 15% no repasse do total do Fundo Partidário às atividades femininas relacionadas à participação política (o teto consta no texto da Lei 13.165/2015). Julgada procedente pelos ministros, numa votação de 8 votos a 2, a ADI também definiu que o repasse deve ser de pelo menos 30%. A advogada Lígia Fabris foi uma voz importante naquele dia. A professora da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas, doutora pela Universidade de Humboldt (Alemanha), esteve na sessão como amicus curiae (amigo da corte), após escrever com um grupo de alunos da FGV memorial aceito pelo relator e ministro do STF Edson Facchin. Representando a CEPIA – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, entidade com ações que visam a igualdade de gênero, Lígia Fabris realizou sustentação oral. Abaixo, ela fala a Gênero e Número
Por Giulliana Bianconi
Gênero e Número – Na sessão que votou essa questão tão relevante para o ano eleitoral e para a condição das mulheres na busca por espaço político, sua sustentação oral foi muito contundente a respeito do Fundo Partidário não ser exatamente um benefício da forma como estava estabelecido na lei até então. Além da análise mais macro, quais foram os aspectos pesquisados que mostraram a desvantagem das mulheres diante dessa limitação de até 15%?
Ligia Fabris – A desvantagem mais evidente é a estabilização de uma imensa desigualdade. Colocar um parâmetro máximo para as mulheres inferior a 50% já seria problemático, um tão baixo é acintoso. É dizer: homens receberão, no mínimo, 85% das verbas de campanha. E note que a lei mencionava que um de seus objetivos é incentivar a participação de mulheres na política! Ela representa, na verdade, uma tentativa de legalizar a exclusão das mulheres na esfera política, de consolidar o imenso déficit de representatividade que temos. Isso afronta diretamente o princípio fundamental da igualdade entre homens e mulheres previsto em nossa Constituição.
Consta que o pedido amicus curiae foi formulado pelo Núcleo de Prática Jurídica da Escola de Direito da FGV-Rio e representado pela CEPIA (Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação, importante entidade com ações que visam a igualdade de gênero. Foi de sua autoria?
Lígia – O memorial foi elaborado por mim e por onze alunas e alunos da FGV Direito Rio, como resultado de minha atividade letiva. O Núcleo de Prática Jurídica é o espaço em que esse tipo de atividade tem lugar na faculdade de Direito. Essa foi, assim, uma atividade de Prática Jurídica, onde o/a professor/a leciona e supervisiona atividades de alunos (nesse caso: pesquisa, debate, seleção e construção de argumentos) que têm impacto no mundo real, e isso é bem visível no caso desse amicus. Essa é uma atividade didática. Os alunos aprendem sobre pesquisa bibliográfica (teórica e empírica), conteúdos de direito constitucional, eleitoral, de estudos de gênero (aplicados ao direito, à ciência política e à sociologia), e aprendem alguns elementos de pesquisa empírica, como coleta de dados primários e elaboração de gráficos. As alunas e alunos que dividem comigo a co-autoria desse memorial são: Bruna Diniz Franqueira, Júlia Brandão, Lorena Bitello, Maria Beatriz Gomes, Natália Bahury, Pedro Henrique Costa, Sofia Mandelert , Vanessa Tourinho, Vinicius da S. Cardoso, Yasmin Curzi e Bernardo Sarmet.
Eu representei a CEPIA nessa ação no STF na qualidade de advogada. Pedi seu ingresso no processo na qualidade de amicus curiae, diante da relevância e impacto social da matéria, e da sua representatividade e legitimidade para opinar sobre questões que envolvem direitos das mulheres e sua capacidade de contribuir para o debate da matéria.
Quais foram as principais referências usadas para o seu argumento durante a sustentação no Supremo?
Ligia – Utilizamos como referência muitos trabalhos acadêmicos, teóricos e empíricos. Clara Araújo desenvolve há muitos anos um trabalho crucial, e tem vastíssima produção sobre esse tema. Ela demonstra empiricamente não apenas a centralidade dos recursos para as chances de candidatas mulheres serem eleitas, como quantifica a partir de que valor as mulheres deixam de estar suscetíveis a um viés discriminatório de gênero e passam a ter mais chances. Teresa Sacchet e Bruno Speck também têm trabalhos empíricos fundamentais, assim como nos foi de grande importância um outro artigo empírico de Vitor Peixoto, Nelson Goulart e Gabriel Tisse da Silva. Há autores que usamos como referencial das discussões teóricas: Flávia Biroli e Luis Felipe Miguel, por exemplo. No Direito, nos apoiamos sobretudo no trabalho de Silvia Pimentel. Além disso, também fizemos nossa própria pesquisa e coleta de dados primários.
Como você tem atuado na pesquisa desse tema? Houve algum momento de pesquisa diretamente com as mulheres nos partidos para entender se havia um uso indevido sendo feito do que deveria ser o repasse de fundo partidário?
Ligia – Não houve esse momento, nossa pesquisa foi basicamente bibliográfica. Procuramos estudos teóricos e empíricos, assim como coletamos dados diretamente do site do TSE. Mas tenho interlocução com organizações que fazem um trabalho importantíssimo com mulheres que estão na vida política, como o Instituto Alziras, que trabalha diretamente com as prefeitas eleitas em todo o país
Sabemos que ocorre em alguns partidos acúmulo do montante do fundo partidário que deveria ir para as mulheres e muitas vezes não é sequer utilizado para atividades relacionadas às mulheres. Como isso poderá ser observado e regulado agora que falamos em um mínimo de 30% para campanhas delas?
Ligia – Coletamos dados a respeito da destinação, pelos partidos, das verbas referentes à “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”, que corresponde a 5% do Fundo Partidário: muitos partidos descumprem sistematicamente a obrigatoriedade de destinar verbas para esses programas de formação, uma obrigação que está no art. 44, V da Lei 9.096/95. Outros nem sequer especificam destinação. Se somarmos os partidos que não alocam esses recursos na proporção que deveriam e aqueles que nem prestaram essas informações, temos um descumprimento de mais da metade dos partidos. Acredito que o cumprimento dessa regra será assegurado se o TSE editar uma resolução que estabeleça os procedimentos que os partidos devem cumprir para a concretização dessa norma, além do controle rigoroso no momento da apreciação das contas.
Atualmente, o que vemos é uma dificuldade imensa de as mulheres nos partidos acessarem as contas, os valores, entenderem quanto é 5% do total, pois muitas vezes sequer sabem quanto é o total recebido do Fundo Partidário pela legenda. Neste ano, o mínimo a ser investido é 30%. Você acredita que há chance de isso ser cumprido?
Ligia – Como disse, acredito que é importante que o TSE edite uma resolução sobre isso: que os valores para campanhas de homens e mulheres sejam depositados em contas específicas, por exemplo, para que as candidatas e o próprio TSE sejam capazes de avaliar se isso está ou não sendo cumprido. O financiamento de campanhas hoje no Brasil é predominantemente público, isso tende a facilitar o controle. Acredito que se o TSE sinalizar que essa é uma questão importante para o qual está atento, que terá impacto direto na aprovação das contas dos partidos, isso será efetivado.
Qual seria um caminho possível para que essa conquista por meio da Ação Direta de Inconstitucionalidade pudesse ter uma influência também no Fundo Eleitoral, aprovado em 2017, e que destinará R$ 1,7 bilhão para os partidos?
Ligia – O ministro Facchin, relator do processo, afirmou que a ação afirmativa deve vigorar pelo tempo em que permanecer a desigualdade e esse entendimento foi vencedor. Agora, foi aberta uma consulta ao TSE que pergunta se os parâmetros fixados pelo STF no julgamento da ADI 5617 sobre o Fundo Partidário se aplicam também ao Fundo Eleitoral. Acredito que o TSE responderá que sim. Como em quase todas as democracias do mundo a entrada de uma maior proporção de mulheres na política se deu por meio de ações afirmativas, fico otimista. Acredito que temos potencial de mudar esse quadro de brutal exclusão, a partir da garantia do financiamento de campanhas de mulheres.
Fonte: Gênero e Número