A antropóloga Beatriz Accioly, autora do livro “Caiu na Net: Nudes e Exposição de Mulheres na Internet”Imagem: Divulgação
A produção de nudes femininos muitas vezes envolve um desejo de conhecer melhor o próprio corpo e um exercício de autoestima. O que começa como uma forma de prazer, no entanto, pode se tornar um pesadelo quando o companheiro rompe o combinado, vaza as fotos e destrói a vida de uma mulher.
É sobre essa ambiguidade, a linha tênue que envolve a produção e o compartilhamento de nudes, que a antropóloga Beatriz Accioly escreve no livro “Caiu na Net: Nudes e Exposição de Mulheres na Internet”, que acaba de ser lançado pela editora Telha.
Doutora e mestra em Antropologia Social pela USP (Universidade de São Paulo), Accioly é coordenadora de Pesquisa e Impacto do Instituto Avon. Ela é ainda autora do livro “A Lei nas Entrelinhas: a Lei Maria da Penha e o Trabalho Policial” (Ed. Unifesp, 2018) e coautora de “Diferentes, não Desiguais: a Questão de Gênero na Escola” (Reviravolta, 2016).
Em entrevista a Universa, Accioly — que em sua pesquisa entrevistou vítimas, especialistas e participou de grupos secretos de compartilhamentos de nudes — fala sobre risco, consentimento e a durabilidade das imagens digitais, o que prolonga o sofrimento das mulheres.
UNIVERSA – Você começa o livro discutindo o uso do termo “pornografia de vingança” no caso de vazamento de nudes. Por que ele não colou no Brasil?
Beatriz Acciolly – Eu nunca ouvi a frase “eu fui vítima de pornografia de vingança”. O que elas diziam era “o que aconteceu comigo não tem nome”, “vazaram meus nudes”. O silêncio e a dificuldade de nomear foram as primeiras coisas que encontrei. Quando eu comecei a pesquisa, em 2013, o assunto ganhou a mídia com dois casos bastante trágicos, que terminaram com as meninas tirando suas próprias vidas. Nesse momento, percebi que o uso do termo “pornografia de vingança”, uma tradução do inglês [“revenge porn”], não colava nas pessoas que passavam por isso.
O principal motivo é que “pornografia”, para muitas mulheres, está associado à prostituição, ao comercializável, ao imoral, algo de mau gosto e até esteticamente feio. Na maioria dos casos, no entanto, o nude é produzido para ser aprazível, um olhar para si, que não deve sair da relação de confiança. Então chamar isso de pornografia era visto como ofensivo, ainda mais na situação de mulheres que foram filmadas ou fotografadas à sua revelia. Elas recusam o termo pela ideia de “pornografia”, mas também de “vingança”, que pressupõe uma reação, que você fez algo a alguém que vai se vingar.
Você também discute como a produção do nude tem esse caráter do erotismo, de exercício da sexualidade feminina, da câmera do celular como um espelho…
Eu comecei a pesquisa pensando sobre o uso violento do nude e, com o tempo, percebi que boa parte das trocas dessas imagens não nasciam como uma violação. Daí a importância de pensar a produção dessas imagens também fora da chave do erotismo, do nude como um exercício de autoestima, uma nova relação com o corpo, um olhar para si como um espelho, em que eu escolho como irão me ver, o ângulo, a iluminação. Muitas vezes essas imagens não são pensadas para serem enviadas para ninguém, são de prazer, que não necessariamente precisam do outro, que nem sempre tem um sentido erótico.
O que acontece quando o nude é vazado?
Isso acontece quando alguém trai o acordo, às vezes explícito, às vezes tácito, de que era para aquela pessoa e naquele momento, não poderia circular. Há também as situações de invasão do dispositivo. O mais comum, no entanto, é que envolva um ex-companheiro, ex-namorado ou ex-marido que queria dar vazão a uma insatisfação e acabou trazendo um malefício para aquela mulher. É uma temática comum aos casos de violência doméstica: o momento de rompimento é o mais crítico em uma relação violenta.
Então o nude tem essa ambivalência: está entre o prazer e a violência?
De modo geral, essa ambivalência faz parte das práticas de sexualidade, que estão entre o saudável e o nocivo, o sadio e o violento, o consensual e o abuso.
Para as mulheres, a sexualidade está sempre nessa zona onde prazer e perigo convivem e não são autoexcludentes. Então o nude está aí também.
Uma relação sexual que começa consensual pode virar uma violação em algum momento. Do mesmo modo, o nude pode passar de um exercício de prazer para se transformar em crime com consequências muito graves para as mulheres.
Existe nude 100% seguro?
É possível o exercício da sexualidade 100% seguro? Essa é a primeira pergunta que eu faço. Porque a partir do momento em que algo depende de duas pessoas, alguém pode trair os termos estabelecidos. Como a violência é quase sempre uma decisão do outro, você não tem como garantir que não vai acontecer.
A tecnologia tenta se antecipar com a criação dos aplicativos que destroem a imagem, mas quem garante que outra pessoa não fotografou o aparelho?
Tem dicas para ter o cuidado de não mostrar o rosto, sinais e tatuagens, mas isso acaba sendo pouco eficiente na discussão. A do nude é que ele sirva para que você se reconheça, então, para muitas mulheres, não pode ser um corpo abstrato.
Então não existe sexualidade 100% segura, ainda mais em uma sociedade tão desigual para homens e mulheres. Você não tem como garantir, mas pode conversar sobre direitos e deveres, sobre consentimento, que é uma negociação constante. É possível e desejável uma experiência com nudes, assim como a sexualidade em geral, que seja sadia, consciente, livre, consensual e mutuamente prazerosa.
Acabou a relação, mas você ainda tem conteúdo dessa pessoa. O que vai ser feito com esses materiais? Uma postura ética e cuidadosa é fundamental, especialmente porque os conteúdos digitais duram.
Você pode falar mais sobre a discussão sobre consentimento na produção e na divulgação de nudes?
O consentimento é o início de uma conversa longa, muito complexa. Ele não é binário, não é só sim e não, não é agora e acabou. Ele pode ser revogado em qualquer momento. O consentimento produzido em uma situação de medo, de pressão ou de falta de lucidez não é um consentimento. O “sim” de uma mulher embriagada, medicada, acuada, com medo é “não” também. O consentimento é uma negociação constante e infinda. Isso é um complicador.
Qual é o papel da sociedade nesses casos?
Nesse tipo de violência, atravessado pelo digital, você precisa de outros personagens, além da vítima e do agressor.
Se a pessoa que recebe o vídeo parasse, não encaminhasse, não teria o efeito social que tem. Essas pessoas são espectadoras e cúmplices, porque precisa de muita gente para que se torne uma tragédia.
Essa é uma violência com caráter privado, muito íntimo, de uma relação afetiva a dois; mas também pública, porque muita gente se envolve.
Quais são as especificidades desse tipo de violência?
Reproduzir ou representar mulheres em imagens sem saber se elas tinham autorizado não é uma coisa do nosso tempo. Nos anos 1960, a Playboy publicou na capa fotos da Marilyn Monroe pelada, que tinha feito ainda jovem, sem sua autorização. Nos anos 1980 e 1990, havia vazamentos das sex tapes, feitas com fitas VHS, e revistas pornográficas com sessões em que os leitores enviavam fotos de suas companheiras sem que elas soubessem.
A novidade são os fluxos das tecnologias digitais, a velocidade e o tamanho da comunicação, com quantas pessoas você consegue falar e a durabilidade do digital, o que tem consequências muito graves.
A gente tem um desafio tecnológico que é a impossibilidade da retirada total de conteúdos no universo digital. O grande desejo dessas mulheres é que isso desapareça, justamente o que a gente não consegue fazer.
A gente tem mecanismos para a regulação ou punição das plataformas que compartilham esse material? Eles funcionam?
Desde 2014, o Marco Civil da Internet Brasileira atribui algumas responsabilidades a provedores e empresas. Em seu artigo 21, ele diz que uma página, uma vez acionada, tem que tirar em 24h a imagem se a pessoa disser que foi feito à sua revelia. Isso está na lei, mas eu nunca vi acontecer.
Acompanhei várias mulheres que acionaram Facebook, Twitter e Instagram. Não recebemos nem resposta nem conseguimos derrubar o conteúdo. Pior ainda quando as imagens vão parar em plataformas de pornografia, porque muitas delas sequer têm escritório no Brasil.
Ao mesmo tempo, algumas redes sociais retiram fotos de mães amamentando com o argumento de nudez. Ou seja, tecnologia para fazer isso existe, me parece, mas a boa vontade e o interesse, não.
Fonte: UOL