Números divulgados pelo Ministério a Saúde mostram que houve 3.526 casos de estupros coletivos no ano de 2016 no Brasil. Ou seja, um a cada duas horas
Na semana em que se comemora o Dia Internacional da Igualdade Feminina, celebrado em 26 de agosto, dados alarmantes sobre a violência contra a mulher no Brasil chegam como um choque de realidade. O Ministério da Saúde informou à Marie Claire ter registrado 1 caso de estupro coletivo a cada duas horas e meia ao longo de 2016 no país –ao todo foram 3.526 ocorrências. Depois, um levantamento feito pelo jornal “Folha de S. Paulo”, por meio da lei de acesso a informação, mostrou que houve 1 caso de feminicídio a cada 4 dias em 2017 no estado de São Paulo.
“As mulheres estão morrendo e parece que ninguém de importa”, desabafa a promotora de justiça, Gabriela Mansur, à Marie Claire. Para ela, é necessário haver políticas de enfrentamento à violência e investimento de recursos na rede de proteção às mulheres para que este cenário assustador possa mudar.
Seu discurso, porém, já vem sendo feito há muito tempo, sem que haja mudanças significativas promovidas pelo governo, como pela cúpula da justiça, conforme conta nesta entrevista. “As pessoas estão gritando as mesmas coisas há 10 anos. Temos que mudar essa realidade”.
Marie Claire – Um caso de feminicídio a cada 4 dias no estado de São Paulo é um número assustador. Esta informação te surpreendeu?
GM – Sim, é muito assustador. Porém, para nós, operadores de direito, não é uma novidade. Nós entendemos que as mulheres estão vivendo um retrocesso em relação aos seus direitos. Está acontecendo um desmantelamento da rede de enfrentamento das mulheres pelos governos atuais. Além disso, há a sensação de impunidade dos agressores, e isto encoraja os homens a terem posturas mais violentas, chegando a matá-las na frente dos filhos, com crueldade e frieza. O machismo mata e a gente tem que ataca-lo, descontruindo este tipo de comportamento.
MC – Como acha que esta situação poderia ser mudada?
GM – É preciso haver investimento financeiro na justiça para a contratação de operadores de direito que sejam sensíveis à causa e capacitados para trabalhar com mulheres. É importante também haver programas de ressocialização dos agressores e sensibilização dos homens de maneira geral. Eles precisam se envolver na causa, inclusive aqueles que estão no poder. Também é crucial que tenhamos mais mulheres no poder. Elas têm um espaço que deve ser ocupado. A representatividade importa.
MC – Os dados de feminicídio mostram que a maioria das vítimas tinha entre 18 e 25 anos e era branca. Esses números saem um pouco do estereótipo de vítima.
GM – Todas as mulheres estão sujeitas à violência, tanto as escolarizadas e ricas, como aquelas com menos privilégios. Mas estatisticamente há um número maior de negras que sofrem violência. Isso é um fator de dupla discriminação, o fato de ser negra e ser mulher. Muitas têm vergonha de pedir ajuda, romper um relacionamento e ser julgada pela família. Digo sempre que buscar ajuda não é sinônimo de vergonha, mas de dignidade e sobrevivência.
MC – O Brasil teve um estupro coletivo a cada 2 horas e meia, segundo dados do Ministério da Saúde com base no ano de 2016. Houve um aumento do crime ou das denúncias?
GM – Como eu trabalho na linha de frente, atuando com este tipo de processo, tenho a impressão de que há cada vez mais crimes desta modalidade. Por outro lado, o aumento pode estar relacionado com o fato de que há mais e mais mulheres denunciando. Se esse número assusta, digo que ele é bem maior, porque há muitos casos subnotificados. Nem todos eles chegam a justiça. A mulher sempre procura o SUS quando é violentada, mas nem sempre vai à delegacia.
MC – Por que?
GM – Por conta da culpabilização. Quando busca ajuda, perguntam onde estava, qual roupa usava, se havia bebido. A mulher sempre é julgada. Muitas não vão à delegacia, mas recorrem ao apoio de coletivos feministas. Outras, nem têm onde pedir ajuda.
MC – Com esses números, fica claro que há uma cultura de estupro no Brasil.
GM – Sim. Na verdade, é uma cultura de violência contra a mulher. Quando elas se dispõem a concorrer a cargos políticos, sofrem ataque na sua liberdade sexual, na honra ou moral. Isso as afasta dos cargos públicos. Tem que haver uma revolução para isto acabar. É inaceitável um índice tão alto e ninguém fazer nada.
MC – A primeira delegacia da mulher foi criada há mais de 30 anos no Brasil. Ela tem ajudado a reverter este número?
GM – Primeiro precisamos avaliar algumas questões. Como é oferecido esse espaço para a mulher? Está preparado para acolhê-la? Não adianta abrir uma delegacia da mulher apenas, é preciso saber como este serviço será prestado e quem são os especialistas? Tudo isso tem que ser observado. Não queremos mais equipamentos “para inglês ver”, queremos a efetividade dos serviços. O mesmo vale para todo o sistema de justiça. Se tivermos cada vez mais homens no Ministério Público e no judiciário teremos cada vez mais decisões machistas. As mulheres têm que ocupar todos os espaços de maneira igual. No Ministério Público há menos de 30% de mulheres trabalhando. E praticamente nenhuma em cargo de liderança, apenas 2%. No judiciário não há nenhuma! As que entram ficam na base da instituição. Elas não conseguem chegar aos cargos de liderança. Quantas mulheres estão no órgão especial do tribunal de justiça? Nenhuma! Quantas estão na procuradoria e subprocuradoria do ministério público? Nenhuma! É muito desigual a situação do homem e da mulher na carreira jurídica e isso sem dúvida se reflete na sociedade.
Fonte: Marie Claire