Primeira presidenta do Banco do Brasil em 214 anos de história, Tarciana Medeiros é negra, paraibana, filha de feirante e abertamente lésbica. Nesta entrevista exclusiva, ela diz como esses marcadores de sua identidade – que num país patriarcal como o nosso afastam muitas mulheres dos altos postos de poder – farão parte imprescindível de sua gestão na estatal. Conta ainda como um país que respeita a autonomia de suas cidadãs pode prosperar
Com a demissão de Fausto Ribeiro da presidência do Banco do Brasil (BB), Lula anunciou nos primeiros dias de seu governo que o candidato ideal para a cadeira precisaria cumprir três requisitos: ter feito carreira na estatal, estar na ativa e ser mulher. “Se ele não tivesse estipulado essa exigência quanto ao gênero feminino, teríamos na fila mais de 150 homens para serem escolhidos. Mas, se tratando de mulheres, éramos não mais que 20. Assim chegaram no meu nome”, explica Tarciana Medeiros, 44 anos, a primeira mulher a ocupar o mais alto cargo da estatal em 214 anos de existência do banco.
Quando perguntamos o que fez para furar a linha sucessória até ali formada exclusivamente por presidentes homens, ela nem pisca: “Sempre acreditei que pudesse. Desde o primeiro dia em Posto da Mata, na Bahia, como escriturária [essa foi sua entrada na empresa, 23 anos atrás]”. E continua sua história: “Além do mais, passei por praticamente todas as funções do banco. Foi muito trabalho. Por último, nada teria acontecido se não fosse a disposição de ele [Lula] bancar: ‘Vai ser uma mulher’”.
Filha de um feirante e uma dona de casa, Tarciana nasceu em Campina Grande, na Paraíba, e é a mais velha de quatro irmãos. Por causa dos negócios da família, começou no mundo do trabalho ainda criança: dos 8 aos 15 anos, era a principal ajudante do pai na feira, onde comercializavam frutas e verduras compradas de pequenos produtores.
Ali, conta, aprendeu muito do que usa hoje como presidenta do Banco do Brasil, a quinta marca mais valiosa do país, estimada em R$ 10,3 bilhões, com mais de 1 milhão de acionistas.
“Na feira, todo mundo se ajuda, e todos os problemas têm solução. Por isso, sempre que perguntam como as coisas estão, digo: ‘Tudo ótimo, e o que não está, vai ficar’. Aprendi a olhar para o lado bom de tudo e levo isso para onde vou.”
A boa-fé na vida não só faz Tarciana uma resolvedora de conflitos no ambiente corporativo, mas, sobretudo, faz dela alguém que se afeta pouco, ou “quase nada”, com a censura alheia. Nesta entrevista, realizada na sede do BB no Rio de Janeiro, foi perceptível a armadura que construiu contra a misoginia, o racismo, a xenofobia e a lesbofobia. “Não houve uma situação [de preconceito] que me paralisou ou freou. Minha mãe costuma dizer: ‘Não reduza o seu espaço para caber no de ninguém. A outra pessoa que aumente o dela’.”
Mais do que primeira mulher na presidência do banco, Tarciana é ainda negra, nordestina, assumidamente lésbica e de origem pobre – isso tudo em um mecanismo que nunca tinha abrigado essa convergência de marcadores sociais em sua mais alta instância de poder.
Mais do que primeira mulher na presidência do banco, Tarciana é ainda negra, nordestina, assumidamente lésbica e de origem pobre — Foto: Luciana Whitaker
Para evitar a fadiga – afinal, sabe que os olhares estão agora todos sobre ela –, não espera que lhe leiam. Tarciana se adianta e fala sem esquivas sobre tudo, sem fugir de nenhuma pergunta feita por Marie Claire. “De onde venho, a gente não se esconde”, justifica.
Foi assim, por exemplo, quando se mostrou lésbica para seus colegas de banco. “Minha vida sempre foi muito livre. Quando me percebi gostando de outra mulher, uma colega do banco, assumi aquele relacionamento. E fui adiante. Com a Nanda, fiquei por 16 anos.” Antes, Tarciana teve um casamento – e uma filha, Yasmin, agora com 21 anos – com um homem. Depois de Nanda, conheceu Dani, com quem está casada e tem Davi, de 8. Ela também é mãe de Ruth, 30 anos, uma prima que se tornou filha de “criação e coração”.
Na entrevista a Marie Claire, a presidenta – Tarciana prefere ser tratada assim, “já que a palavra existe, ora” – volta-se a suas origens e fala da trajetória no BB, da sustentabilidade e da diversidade dentro dos planos do banco e de como a descriminalização do aborto pode ajudar a economia de um país como o Brasil.
MARIE CLAIRE O que o passado como feirante trouxe de bagagem e aprendizado para o seu trabalho de agora?
TARCIANA MEDEIROS Comecei a trabalhar com o meu pai, aos 8 anos. O trabalho na feira me trouxe praticamente tudo. Na feira, todo mundo se ajuda, se cuida, então nada é complicado. Todos os problemas têm solução. E aprendi a me colocar disponível, porque sabia que sempre ia precisar de alguém. Como eu era pequena, tinha coisas que não sabia fazer, então tinha que pedir ajuda. Nunca tive dificuldade de pedir ajuda, até hoje não tenho.
MC Você costuma falar da sua mãe, mas é a primeira vez que ouço do seu pai. Ele está vivo? Foi presente na sua criação?
Meu pai está vivo. Foi presente, sim. Eu diria que tudo o que sei fazer aprendi com o meu pai. E muito do que me tornei aprendi com a minha mãe. Por exemplo, quando fui estudar marketing e vi o conceito de “combo de produtos”, meu pai já tinha me ensinado que a gente podia colocar tomate e cebola junto e vender o quilo. Ele é um negociador nato.
MC E seus irmãos, o que fazem?
Uma trabalha na Localiza, em Campina Grande. Tenho um irmão cantor, Paulo Medeiros. E uma irmã enfermeira, que está fazendo mestrado em cuidados paliativos.
MC Em 214 anos, esta é a primeira vez que uma mulher assume a presidência do Banco do Brasil. Imagino que isso traga um senso de responsabilidade. Existe também um compromisso especialmente com as mulheres?
Ser a primeira traz todo um simbolismo. Lá em Brasília [onde fica a principal sede do banco] tem um corredor com as fotos dos presidentes do BB. São quatro fileiras de fotos em preto e branco, todas de homens. Normalmente se coloca a foto quando acaba o mandato. Desta vez, o pessoal inovou: colocou a minha antes, no dia que começou a gestão. E é colorida. Fiquei emocionada.
Sempre me questionava o porquê de não ter uma mulher ali. Chamam a atenção os 214 anos, mas a questão é mais profunda. Tivemos só uma vice-presidente mulher. Até o ano passado, a situação se replicava com as diretoras. Viam-se mais mulheres nos cargos de gerência média. Só que, dali em diante, não conseguiam passar. E por que não se somos praticamente 40% do banco?
Aí fui ver que era mais uma questão de ter alguém que colocasse em pauta nomes de mulheres. Então, assim que fui nomeada, trouxe na composição do Conselho Diretor as mulheres que estavam habilitadas para aquelas funções. Pela primeira vez na história do banco, temos três vice-presidentas.
MC E como conseguiu furar todo esse esquema e chegar à presidência?
Sempre acreditei. Desde o dia em que tomei posse como escriturária [em 2000]. Minha mãe ensinou: “Filha, tome posse de onde você está. Tenha noção do lugar que você ocupa no mundo”. E brincava comigo: “Você é a única Tarciana Medeiros do mundo, da galáxia. Não tem outra, só tem você”. Tenho 23 anos de banco. Trabalhei em praticamente todas as funções. Foi muito trabalho. E teve a disposição dele [Lula] de bancar: “Vai ser uma mulher”.
MC Foi entrevistada pelo presidente? O que chamou a sua atenção?
Sim. Lula é um excelente leitor de pessoas, como nunca vi. O que mais me chamou a atenção foi o profundo conhecimento que ele tem do país. Consegue conversar desde a necessidade de um crédito consignado para um beneficiário do INSS [Instituto Nacional do Seguro Social] até os financiamentos de infraestrutura para a reforma de estradas ou a construção de hidrelétricas.
MC Saindo um pouco da vida pública: você é mãe?
Tenho duas filhas e um filho. A Ruth, que tem 30 anos; a Yasmin, com 21; e o Davi, com 8. A Ruth é minha prima, e a crio desde que ela tem 12 anos. A Yasmin é do meu primeiro casamento. E o Davi veio do meu casamento com a Dani. A Dani me trouxe o Davi aos três anos e estamos há quatro cuidando dele.
MC Como foi conciliar essa carreira intensa com a maternidade? Precisou abrir mão de alguma coisa?
Quando se é mãe, sempre se abre mão de alguma coisa. Com as meninas, as carreguei para onde ia, algo que minha vó fez com minha mãe e minhas tias. Curso do banco, por exemplo. “Vai deixar o filho com quem?” Com ninguém, eu levava.
MC Entrando mais na sua vida íntima: se considera lésbica ou bissexual?
Hoje em dia, lésbica. Teve uma época em que me considerei bi, e penso que isso foi depois do fim do casamento com o pai de Yasmin. Naquela época, talvez tenha sido uma questão de acomodação social. Eu não estava preparada.
MC E como foi com o banco? Precisou abrir sua orientação sexual?
Nunca escondi, então não precisei abrir porque nunca foi fechado [ri]. Minha vida sempre foi muito livre. Ser livre tem consequências, óbvio. Quando me percebi gostando de uma colega do banco, assumi aquele relacionamento. Fui adiante.
Inicialmente foi complicado. Tinha aquela situação de conhecerem os nossos maridos, ela era casada e eu também. Depois, fui morar em Itabuna, outra cidade. Lá, já cheguei com a Nanda, e sempre tratei disso de forma natural. Mas percebi que em algumas situações existiam, sim, olhares e insinuações. Em alguns eventos, depois que todo mundo bebe um pouco mais, alguém fala alguma coisa que machuca, que não deveria falar. Mas, de maneira geral, o banco sempre me recebeu bem. Não lembro de ter vivido nenhuma situação constrangedora ou intimidadora.
MC Você não é apenas a primeira mulher à frente do Banco do Brasil, mas é lésbica, negra, paraibana e de origem pobre. Traz na sua história marcadores que a sociedade marginaliza. Qual mais exigiu sua resiliência?
Todas as minorias que trago na pele tiveram um peso maior ou menor. Já ouvi no feedback de um processo seletivo que eu precisava procurar um fonoaudiólogo para limpar o sotaque, por exemplo. Ser nordestino nesse país é difícil. Se é nordestino com sotaque arrastado, traz um estigma junto. As pessoas tendem a olhar e não dar crédito.
MC Destacaria um episódio de machismo que a paralisou?
É bem difícil algo me paralisar [risos]. Mas me lembro de, algumas vezes, entrar em ambientes em que eu era a única mulher. Via o colega observar de baixo para cima e virar o olhar, como se me desconsiderasse. Nesses momentos eu tendia a me perguntar: “O que é que estou fazendo aqui?” Mas sempre fui em frente. E tive certeza de que, se estava naquela sala, com aquelas pessoas, tinha feito por onde.
MC A descriminalização do aborto pode ajudar a economia de um país? Mercedes D’Alessandro, primeira diretora nacional de Economia, Igualdade e Gênero do Ministério da Economia argentino, diz que sim. O que acha disso?
Não diria apenas a descriminalização do aborto, mas a descriminalização do corpo da mulher. Para mim, a mulher deveria poder fazer com o corpo dela o que quiser. Se um país tem mulheres livres e pol’tique têm direitos sobre o próprio corpo, tem mulheres mais independentes, com melhores condições de cuidar de suas vidas. E qualquer nível de dependência que gere incapacidade de poder cuidar de si próprio prejudica a economia.
MC A fome atinge 33,1 milhões de brasileiros. Famílias chefiadas por mulheres são especialmente atingidas: 63% desses lares apresentaram alguma insegurança alimentar. Como o banco pode olhar por essas mulheres?
Nos últimos quatro anos, tivemos limitações de recursos para direcionar crédito para a agricultura familiar e, notadamente, para as mulheres. No mês passado, relançamos o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), do qual o Banco do Brasil é o grande parceiro. Também implementamos uma análise para a agricultora chefe de família. Quando essa mulher vai buscar o crédito, a gente prioriza. Também lançamos a plataforma Mulheres no Topo, com educação financeira, capacitação em relação ao empreendedorismo e, principalmente, agricultura familiar e concessão de crédito.
Quando a gente fomenta a agricultura familiar voltada para as mulheres, pode contribuir para a redução desse índice de 63%. Sonho com o dia em que a gente vai chegar a um país de novo sem fome.
MC O grande negócio do Banco do Brasil é a agricultura. Como conciliar sustentabilidade e agronegócio? Qual é o papel do banco nessa equação?
Somos, pelo quarto ano consecutivo, o banco mais sustentável do mundo. Na concessão de crédito verde, a contrapartida é o reflorestamento. Quando concedemos um empréstimo para um cliente que vai plantar soja, ele precisa garantir uma área reflorestada ou não devastada. Aquela área não devastada ou reflorestada compensa carbono.
Hoje, mais de 30% da nossa carteira de crédito é verde. Essa é uma agenda de que não pretendo abrir mão. Também lançamos uma iniciativa de preservação de florestas e áreas que podem gerar crédito de carbono. Acabamos de fazer uma captação no exterior de US$ 750 milhões, que serão destinados para a concessão de crédito verde.
MC Há economistas que afirmam que as tarefas da economia do cuidado precisam ser incluídas no PIB, o que inclui as jornadas contínuas das mulheres. O que pensa disso?
Confesso que ainda não tinha pensado por esse lado. Mas digo que esse trabalho intangível das mulheres é a base de sustentação da economia. Se nós não tivéssemos mulheres fazendo esse trabalho, o que aconteceria? O que aconteceria se tivesse uma greve geral de mães, avós e filhas que cuidam de tudo e todos, que pensam e gerem a casa e o bem-estar da família?
MC O ex-presidente da Caixa Econômica Pedro Guimarães se tornou réu por assédio sexual contra funcionárias do banco. Qual é a política do Banco do Brasil sobre assédio?
Temos um Código de Ética, e todos os anos fazemos uma reformulação. Neste ano, a primeira providência foi deixar claro, textualmente, que não toleramos violência ou assédio de nenhuma natureza, sexual ou moral. O banco nunca tolerou, mas precisa ser dito todos os dias até que o respeito permeie todas as relações e a gente não precise mais falar sobre isso.
Assédio e violência, principalmente violência contra a mulher, para mim, são algo esdrúxulo. É algo que nos reduz enquanto sociedade. Então o protocolo é o seguinte: chegou a denúncia, apura na mesma hora, e é tolerância zero.
MC O banco tem 85 mil funcionários. Como pretende trabalhar a diversidade desse quadro?
Criamos um comitê de diversidade. Percebemos avanços nas questões de gênero, mas temos muito a fazer. E precisamos avançar em raça ou identidade de gênero. A intenção é que a gente torne essa discussão no banco institucional e permanente, até não precisar mais ter um comitê.
MC A cultura é uma prioridade para o banco? Como os últimos anos impactaram a política cultural que o BB vinha fazendo?
A cultura é parte do Banco do Brasil. Apesar do que vivemos nos últimos anos, os colegas do banco não deixaram ela morrer. No dia da posse, assinei o edital da cultura e já tivemos 6.600 projetos inscritos de todos os cantos do país.
MC No seu discurso de posse, lembrou da Emma Medeiros, que foi a primeira mulher a tomar posse quando o banco retomou o concurso para mulheres, em 1924. Por quê?
Porque antes dela, as mulheres só podiam trabalhar no banco nos cargos de atendimento básico, recepcionista, telefonista… Sabe uma coisa que descobri esses dias? Fui na diretoria de tecnologia e vi uma foto de 1960 de mulheres operando uma máquina gigante, com vários botõezinhos, que parecia um código morse. Perguntei para o colega por quê só mulheres a operavam, e ele disse que os homens erravam. As máquinas exigiam mais destreza, mais atenção e rapidez de processamento, e eram só as mulheres que a operavam.