Profissionais omitem o fato de que interrupção da gestação, em ambiente hospitalar, é mais segura do que levar a gravidez adiante
A demora na realização do aborto legal da menina grávida após ser estuprada pela segunda vez no Piauí revela uma sucessão de violências, que vai além do abuso sexual.
Vítima de estupro aos dez anos, ela teve o aborto negado na primeira gestação. Abandonou a escola, tornou-se arredia e se nega a falar com psicólogos sobre o assunto.
Em setembro último, uma nova gravidez de 12 semanas foi confirmada, e a menina foi encaminhada para um abrigo, com o filho de 1 ano da primeira gestação. Desde então, aguarda pela interrupção da gestação a que tem direito. Oito semanas se passaram, e o drama continua.
Nem mesmo um desnecessário aval judicial para o aborto previsto em lei, expedido há mais de uma semana, resolveu a situação. A mãe da menina, que antes havia autorizado o procedimento, agora, aterrorizada pela fala de duas médicas, teme pela vida da filha e se coloca contra a interrupção.
O pai, favorável ao aborto, denunciou ao Conselho Municipal da Criança e do Adolescente que foi coagido a assinar um documento na maternidade pelo impedimento da interrupção. Em razão do impasse, a menina tem sofrido crise de ansiedade e está sendo medicada.
Pelo relato da mãe, é possível deduzir que as profissionais que disseram que a menina pode morrer se fizer o aborto, superdimensionaram os riscos de um procedimento realizado em ambiente hospitalar e omitiram o fato de que, nessas condições, a interrupção é mais segura do que levar a gravidez adiante.
As evidências científicas mais recentes mostram que um aborto com acompanhamento médico é o evento reprodutivo muito seguro, segundo profissionais que atuam na área, como ginecologista e obstetra Cristião Rosas, de São Paulo.
O risco de óbito nesses procedimentos é de 0,5 para cada 100 mil casos. No parto com feto vivo, esse risco de morte é de 7 para cada 100 mil.
Objeção de consciência, razões religiosas, desconhecimento, medo de eventuais processos administrativos, falta de treinamento? São várias hipóteses que poderiam explicar os motivos que levam profissionais da saúde a negar reiteradamente o direito de meninas e mulheres adultas ao aborto legal.
É fato que durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) houve retrocessos que dificultaram ainda mais o acesso, como a publicação da portaria do Ministério da Saúde de 2020 que mudou as regras para acesso ao aborto legal.
Ela instituiu, por exemplo, a orientação para que médicos avisem a polícia quando uma gestante diz ter sido vítima de violência sexual, o que foi criticado por ferir a previsão de sigilo e por empurrar para o aborto ilegal mulheres com medo de denunciar seus agressores.
Vários estudos demonstram que a gravidez resultante de estupro deixa sequelas emocionais irremediáveis à vida de muitas mulheres, com quadros de depressão e ansiedade e tentativas de suicídio.
À luz de um estado laico, serviços de saúde deveriam estar mais bem preparados, com equipes mais capacitados para esse tipo de atendimento. Não só do ponto de vista técnico, científico e jurídico, mas, sobretudo, humanístico.
Fonte: Folha de S. Paulo