“Um sistema para fomentar a participação feminina não pode deixar de levar em conta a fonte mais expressiva de dinheiro”, diz Silvana Batini, da FGV.
Um dos países na lanterna da representatividade feminina na política, o Brasil corre o risco de dar mais um passo atrás. Sem uma mudança no TSE (Tribunal Superior Eleitoral), a aplicação de 30% do Fundo Partidário para candidaturas de mulheres corre o risco de ser descumprida.
A decisão foi considerada um avanço para as mulheres, mas enfrenta barreiras para sua aplicação. O TSE não tem previsão de quando a nova norma será regulamentada. Hoje, o tribunal não tem informações oficiais de gastos de partidos com candidaturas femininas.
De acordo com a pesquisa “Cotas e mulheres nas eleições legislativas de 2014”, de Vitor de Moraes Peixoto e Nelson Luis Motta Goulart, em 2014, apenas 9,7% das despesas de campanhas foram para mulheres que disputavam um cargo na Câmara dos Deputados, apesar de elas serem 27,7% das candidatas para o posto. Para o cargo de deputada estadual, por sua vez, os 27,3% de candidaturas femininas tiveram 15,6% dos recursos.
TSE deve criar regras para fiscalização
Na avaliação de especialistas, o TSE deveria determinar que cada partido tenha uma conta só para candidaturas femininas e esses valores serão repassados para cada candidata.
“Seria aplicar a regra que já existe para Programas de participação de mulheres para campanhas eleitorais de mulheres”, afirmou a professora de direito da FGV-Rio Ligia Fabris, ao HuffPost Brasil.
A Lei dos Partidos determina que no mínimo 5% do Fundo Partidário deve ser destinado à “criação e manutenção de programas de promoção e difusão da participação política das mulheres”. Pela norma, a legenda deve transferir o saldo para conta específica.
A especialista alerta que a falta de regulação pode colocar em risco a aplicação da decisão do STF. “Se isso não estiver claro, há o risco de que não se consiga fiscalizar o cumprimento dessa norma”, constata Fabris.
Outra indeterminação trata de quais valores do Fundo Partidário considerar, uma vez que eles são transferidos pela Justiça Eleitoral às siglas mensalmente. As primeiras parcelas de 2018 já foram pagas e as últimas serão repassadas após as eleições.
Na avaliação da professora de Silvana Batini, também professora de direito da FGV-Rio, deverá ser considerado o percentual anual para que a medida seja efetiva no incentivo à representatividade das mulheres na política.
O percentual deverá ser distribuído ao longo do ano, sob pena de propiciar a fraude. Se o objetivo é incentivar candidaturas femininas, de nada adiantará que estes valores cheguem somente após a eleição.
Para a especialista, um partido que cumprisse a cota apenas com uma candidatura à Presidência, por exemplo, não estaria cumprindo o espírito da Lei. “Este raciocínio que prima pela literalidade e desconsidera o objetivo da norma propiciou as candidaturas fakes de mulheres que, embora atendessem ao percentual exigido, não tinham substância. Um mínimo de lealdade com o objetivo da lei é o que se espera dos partidos”.
Fundo Eleitoral deve ter cota para mulheres
Na avaliação das especialistas, o TSE também deve determinar que 30% do Fundo Eleitoralseja destinado a candidaturas femininas. Uma consulta sobre o tema foi protocolada no tribunal em 20 de março e está sob relatoria da ministra Rosa Weber.
“Essa é uma medida de equidade mínima. Qualquer medida que negue isso afronta o princípio constitucional da igualdade, que exige que se tome medidas ativas para mitigar as desigualdades existentes na sociedade brasileira em geral, e na política em especial”, diz Ligia Fabris.
Para Silvana Batini, apenas a cota para o Fundo Partidário é insuficiente. “O modelo de financiamento brasileiro hoje é predominantemente público e um sistema que pretenda fomentar a participação feminina não poderá deixar de levar em conta a fonte mais expressiva de dinheiro. A vinculação só fará sentido se for estendida ao Findo Eleitoral”, afirma.
Criado pela reforma política em 2017, o Fundo Eleitoral foi uma solução do Congresso Nacional para o financiamento de campanhas, após o STF proibir, em 2015, as doações empresariais. O valor total é de R$ 1,7 bilhão. Em 2018, o Fundo Partidário soma outros R$ 888,7 milhões.
Representatividade feminina na política
O Brasil está na 161ª posição de um ranking de 186 países sobre a representatividade feminina no poder Executivo. A classificação é do Projeto Mulheres Inspiradoras, com dados do TSE, da Organização das Nações Unidas e do Banco Mundial.
Em 2014, 10% das cadeiras na Câmara dos Deputados foram para deputadas. No Senado, o percentual foi de 18%. As deputadas estaduais, por sua vez, somaram 11%. No Executivo, havia apenas uma mulher eleita entre os governadores. Já nas eleições municipais de 2016, as cadeiras femininas representaram 13,5% das vereadoras e 12% das prefeitas.
A cota de 30% para candidaturas de um dos gêneros, por sua vez, tem sido sistematicamente descumprida pelo uso de “candidatas laranja”. Em 2016, de acordo com o TSE, 14.417 das 158.453 25 candidaturas femininas não obtiveram nenhum voto, cerca de 9% do total.
Na avaliação da cientista política e professora da UnB, Flávia Biroli, apesar de ainda precisar de avanços, “a decisão de que 30% do fundo partidário deve ser dirigido às candidaturas femininas são um avanço” e mostra ganho de legitimidade na crítica histórica aos obstáculos à participação das mulheres na política.
“Os partidos políticos permanecem masculinos e operam numa lógica de reposição do caráter masculino na política”, afirma. “É fundamental abrir a direção dos partidos à participação de mulheres. Sem paridade na organização partidária, fica difícil caminharmos para a paridade na política”.
Para Biroli, é preciso olhar para o processo mais amplo de construção das democracias e indagar o que ele significa para a participação das mulheres. “Torna-se cada vez mais importante discutirmos o que estamos disputando. Se pensamos nas mulheres, na maioria das mulheres brasileiras, a disputa política vai além da conquista de cargos e depende da retomada da própria democracia”.
Em 2014, entre os candidatos colocados dentre os 10% com menos votos, as mulheres representavam 75%. Naquele ano, 11 dos 32 partidos analisados pelo Cepia – Cidadania, Estudo, Pesquisa, Informação e Ação descumpriram a cota de 30%. Foram eles DEM, PCO, PDT, PHS, PROS, PRTB, PSDC, PSol, PTdoB, PTB e SD.
Também houve descumprimento no mínimo de 5% para manutenção de programas de promoção e de difusão da participação política das mulheres, norma prevista desde 2009. Em 2012, ano com melhor resultado, apenas 72% cumpriram a exigência. O número é reduzido a 53% ao considerar que siglas que não forneceram a informação também descumpriram a regra.
O resultado é uma perda equivalente a R$ 28.518.975,71 desde que a norma está em vigor até abril de 2017, segundo levantamento do Cepia com base em dados da Justiça Eleitoral.
A punição para quem descumpre essa lei é acrescentar 2,5% dos recursos que recebeu do Fundo Partidário para programas de promoção e difusão das mulheres na política, mas decisões do próprio TSE não são rígidas sobre a medida.
Na decisão na Prestação de Contas nº23167/DF , o TSE tratou a inobservância da destinação dos 5% do Fundo Partidário como uma simples “impropriedade”, incapaz de ensejar a desaprovação das contas partidárias.
A jurisprudência do tribunal é distinta, por exemplo, para a aplicação de 20% das cotas recebidas do Fundo Partidário na criação e manutenção de instituto ou fundação de pesquisa e de doutrinação e educação política. Neste caso, a punição é mais grave do que no descumprimento da cota para incentivo das mulheres.
Fonte: HuffPost