O exame de mamografia repetido a cada ano andava em dia. O último dizia que estava tudo em ordem. Por isso o susto quando, ao tomar um banho, a mão sentiu o caroço.
Depois veio a incredulidade, o medo, tudo despencando sobre sua cabeça como a água do chuveiro. Mesmo assim, Eleni Bianchi, de 66 anos, pensou: “Vamos fazer o que tem de ser feito”. E marcou a consulta no mastologista para o dia seguinte. Isso foi em outubro do ano passado.
Naquele mesmo mês, Isabel Cristina Quintino Leite, a Bel, que prefere não revelar a idade, também fazia a mamografia de rotina. E foi durante o exame que ela estranhou. “É normal aquele pedido de vira-pra-cá e vira-pra-lá para ajeitarem a mama na máquina. Mas, naquela vez, foi muita ordem para eu mudar de posição”, ficou com a impressão.
No final, a moça que realizava o procedimento comentou: “Se o doutor achar que precisa, a gente refaz”, o que não é nada incomum. Mas o coração de Bel saltou —”sempre fui medrosa”, justifica. E ele quase saiu pela boca quando, na despedida, escutou um “boa sorte”. Cismou: “Pronto, eu estava acabada”.
Em casa, ficava de olho na internet a todo instante, querendo ver se o resultado tinha saído. E ele não deixou dúvida: “Não adiantava eu me enganar, entendi o que significava”, diz. Tremendo, marcou o médico.
Bel e Eleni, o que ambas têm em comum, além do diagnóstico de um câncer de mama em fase mais inicial, é que ouviram do mastologista Afonso Nazário, do HCor (Hospital do Coração) em São Paulo, que estavam começando um estudo multicêntrico, ao lado da Escola Paulista de Medicina na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), onde ele é professor, e do Hospital Israelita Albert Einstein.
A ideia dele e dos mastologistas Silvio Bromberg e Vanessa Sanvido — ele, do Einstein e ela, do HCor e da Unifesp— era testar a crioablação no tratamento da doença e, desse modo, usar temperaturas extremamente frias para destruir as células mamárias malignas.
“Isso já vem sendo feito em vários tumores, como o de ossos e o de rins”, diz Nazário. “Aliás, a crioablação tem sido empregada até mesmo em nódulos benignos de mama. Mas, para combater o câncer nessa glândula, ela é algo bem recente, que começou em Israel, depois passou a ser feita no Japão e em alguns poucos centros dos Estados Unidos.”
No Brasil, o estudo é inédito. Diga-se, existem boas chances de ser o primeiro assim em toda a América Latina. O professor brinca: “Se me perguntarem o futuro do câncer de mama, diria que é entrar em uma gelada.”
E, com seu jeito tranquilo, explicando tudo direitinho, ofereceu essa possibilidade à Bel e à Eleni, até porque as duas se encaixavam nos critérios para alguém participar da investigação: “O tumor precisa ser único e não ter mais do que 2,5 centímetros de diâmetro para garantirmos que ele inteiro sairá congelado”, esclarece o mastologista.
Por razões um pouco diferentes, ambas aceitaram participar na mesma hora.
No dia do procedimento
Ao chegar no HCor, Eleni achou que todo o preparo parecia com o de uma biópsia. “Parece mesmo”, concorda o professor Nazário. “Mas o que se assemelha a uma agulha de punção é, no caso, uma sonda que, guiada pela imagem de ultrassom, introduzida no tumor. Ali, ela produz um frio gigantesco, fazendo tudo ao seu redor ficar entre 130 °C e 140°C negativos”, diferencia.
A temperatura mais baixa já registrada naturalmente na Terra foi de menos 89 °C na Antártida. Ou seja, podemos dizer que o câncer é submetido a um frio de outro mundo. “A expectativa é de que as nossas células não consigam resistir a ele”, informa o médico.
“Foi tudo muito rápido, não fiquei nem três horas na sala do procedimento. O mais demorado foi regularem a máquina de nitrogênio que produz aquele frio todo”, diz Bel, que gosta de ser lembrada como “a paciente número 1”.
Na realidade, ela foi a primeira mulher que tratou o câncer de mama com crioablação no Brasil vinda da rede privada de saúde. Algumas pacientes do hospital público da Unifesp fizeram esse tratamento poucas semanas antes. O estudo só irá terminar quando analisar o resultado de 60 casos. Até o momento, já são 16.
A emissão dos jatos gelados, em si, consome uns 20 minutos. “Ficamos congelando determinado ponto do tumor por 6 minutos. Descongelamos durante 4 minutos e, daí, congelamos por mais 6 minutos de novo, porque essa oscilação ajuda ainda mais a matar as células malignas”, explica Nazário.
“Na hora é engraçado: a sensação é de estão caindo floquinhos de neve dentro de você”, descreve Eleni. Dor? Tanto ela quanto Bel garantem que só sentiram a picada da anestesia local. Faz sentido, já que o próprio frio é analgésico.
No final, o que resta é uma bola de gelo na mama, guardando as células necrosadas do tumor e as de uma margem de segurança. Ela leva incríveis 15 dias para se desfazer de vez. “O corpo não aquece algo que ficou a menos 140°C de uma hora para outra”, nota Afonso Nazário.
Nesse meio-tempo, Bel até achou que a mama, durinha de tão gelada, ficou mais bonita, empinada. Já Eleni reparou que a bola de gelo pesava um pouco, mas isso não atrapalhou quando, em 18 de novembro passado, ela embarcou para Itália, um passeio que tinha programado com Adélia, a médica que é sua companheira há quarenta anos.
Estranhei a data, que era a mesma na qual a crioablação foi feita. Mas estava certa. Levando sua “bola de gelo”, entre risos e lágrimas, Eleni voou na mesma noite.
Cirurgia e radioterapia depois
Passadas de duas a quatro semanas da crioablação, as pacientes do estudo são operadas. Eleni e Bel, por exemplo, tiraram o quadrante onde, no lugar do antigo tumor, os médicos acharam a massa necrosada pelo frio. Elas ainda fizeram 15 sessões diárias de radioterapia.
“Após a crioablação, seguimos com o tratamento que seria feito normalmente para aquele câncer”, esclarece Nazário. Portanto, existem participantes do estudo com tumores mais agressivos que chegaram a precisar de quimioterapia.
Esse, aliás, era um dos maiores medos de Bel: se ver fragilizada e sem cabelos. Mas, no caso dela, a químio já seria descartada. De todo modo, Bel foi contagiada pelo otimismo do marido Hércules. “E o melhor foi ouvir o doutor Nazário falar no final da crioablação: ‘Pelo que a gente enxerga, o tumor está morto'” Era o que ela mais queria, morrer depressa com o assunto.
O que os pesquisadores querem
No entanto, para checar se o tumor está morto pra valer — e, portanto, se a crioablação foi efetiva — , os médicos realizam uma biópsia de parafina durante a cirurgia. O exame é o padrão-ouro para o patologista esmiuçar o tecido e ver se sobraram células malignas por ali.
Um segundo objetivo do estudo é ver se dá para prever o resultado da crioablação antes de o bisturi entrar em cena. “Para isso, fazemos uma ressonância magnética no intervalo entre a crioablação e a cirurgia”, diz Nazário. Na imagem, as células malignas que eventualmente tivessem restado apareceriam realçadas.
Qual a ideia: conferir se, quando esse exame de imagem não mostra nada de errado, isso bate com o resultado da biópsia realizada na operação. Se for assim, no futuro uma ressonância que não acuse resquícios do tumor poderá liberar da cirurgia boa parte das mulheres que se submeteram à crioablação. Isso já acontece lá fora. Aliás, existem centros estudando a liberação até mesmo da radioterapia, feita para dobrar a segurança.
Pelas pesquisas até o momento, a eficácia da crioablação chega a 94%. Ou seja, ela faz a maioria dos cânceres entrar numa fria. Se o estudo brasileiro apontar resultados semelhantes, o professor Nazário e seus colegas gostariam de iniciar um outro trabalho com o PROADI (Programa de Apoio ao Desenvolvimento Institucional do Sistema Único de Saúde), visando beneficiar as pacientes da rede pública.
“Seria um sonho se as mulheres atendidas pelo SUS conquistassem a mesma possibilidade que eu tive”, pensa Bel. “Um tratamento como a crioablação ajuda, inclusive, a tirar o medo da mamografia. Porque, no fundo, a gente teme o que pode vir depois do exame, embora o câncer de mama seja curável quando descoberto cedo”, diz ela que, agora, pretende encontrar um maior equilíbrio entre a carreira de analista fiscal e a vida pessoal, até para deixar para trás o sedentarismo que, segundo pesquisou, é um dos fatores de risco para a doença.
Já para Eleni, que hoje se dá “ao luxo de ficar em casa depois de anos trabalhando com decoração”, a inspiração veio da filha Samara, fruto de um relacionamento anterior, e da neta Catarina, que hoje está com 15 anos. “Ela foi um bebê extremamente prematuro. Eu a vi pequenina lutando para viver em uma UTI”, conta.
Por isso, no exato instante em que ouviu falar da pesquisa, antes mesmo de conseguir entender as possíveis vantagens do tratamento, ela aceitou participar. “Só pensei que ajudaria outras mulheres, como minha própria filha e neta, fazendo parte disso”, garante. Não seria ela, Eleni, que cortaria esse círculo feminino de força.
Fonte: Viva Bem UOL